96 - O contrato
Lacoresh ia mal antes daquela ambiciosa expedição, e agora iria de mal a pior. A missão havia fracassado. O Rei-Deus fora morto, sua fonte de poder, destruída e com ela as esperanças do povo lacorês. Quase metade dos homens que batalharam em Tleos haviam perecido e notícia aquela derrota amarga terminaria o serviço de enterrar Lacoresh. Era só uma questão de tempo para os demônios destruírem tudo.
Arifa estava acomodada na nau capitânia, seu braço enfaixado e deitada no leito da cabine que partilhava com o rei. Ela ainda sentia dores, mas a aparência dele era pior que a dela. Estava derrotado. Arifa não gostava nada de vê-lo naquele estado.
— Talvez a única alternativa seja fugirmos. Construir mais navios e buscar refúgio em Dacs. As terras deles são longe o bastante. Talvez haja esperança de vida para nosso povo lá.
— Não fale uma coisa dessas Ed! O que seu avô ia pensar se ouvisse você falando assim?
Aquilo foi um soco no estômago do monarca.
— Você tem razão... Isso que acabei de dizer foi uma tolice.
— Você tem que ser forte Ed! Forte pelo povo. Forte por todos nós.
— Por que você sempre tem razão?
— É um talento natural — ela conseguiu rir, apesar de tudo. — Venha, deite-se aqui ao meu lado. Você precisa descansar. Precisa estar forte para quando retornarmos.
Edwain concordou e tirou as botas, o cinto e a túnica.
— No fim, Calisto morreu, mas nunca encontramos o corpo de Bérin. Eu meio que esperava por uma traição vinda de Calisto, mas... acredita que Bérin possa ter nos traído?
— Traído como, Arifa?
— Não sei, mas não consigo parar de pensar nisso. E se ele achou o Coração de Tleos e fugiu para ficar com o poder só para ele?
— Acredito que nunca vamos saber.
— Você interrogou Syrun, como eu pedi, Ed?
— O questionei, sim, mas não fui além disso.
— Ed, o que foi que você disse agora a pouco, hein?
— Que era melhor fugir?
— Não seu tonto! Que eu sempre tenho razão, não é mesmo?
— É... Eu não achei apropriado invadir a mente de um aliado assim...
— Ed, aquele maldito não é nosso aliado! É nosso empregado. Assim que o contrato acabar, ele bem poderia assumir um novo e vir cortar a sua cabeça!
— Tá bom, Arifa... Eu vou interrogá-lo...
— E vai usar o dragão!
— Nossa, você é uma megera mandona!
— E é exatamente por isso que você me ama, bobinho. — Arifa inclinou-se sobre ele e o beijou.
Apesar da derrota e tudo mais, Edwain ainda se considerava sortudo.
***
— Muito obrigado pelo convite, Majestade — Syrun inclinou-se para fazer um vênia.
— Ora, eu não tive a oportunidade de agradecê-lo propriamente pelos ótimos serviços prestados.
Antes de sair de Tleos, a frota lacoresa foi reabastecida. Ainda havia muita confusão na cidade, mas o rapaz que havia conhecido, Gálius, estava à frente de um conselho temporário que estava organizando um governo para a cidade. A forma que lutou para defender a cidade rendeu-lhe uma fama ainda maior do que a que possuía anteriormente e graças ao bom relacionamento com ele, conseguiram firmar um acordo comercial com Tleos. Isso tudo levou ao abastecimento dos navios da frota com especiarias e produtos raros, ou mesmo desconhecidos em Lacoresh. Era uma dessas iguarias tleonianas que estava sendo servida naquele almoço especial que o rei solicitou.
— Sente-se. Você é axiano, não é mesmo?
— Sim... As pessoas falam, né?
— Eu tive um ótimo professor de esgrima axiano. Você acharia interessante conhecê-lo.
— Bom, tenho minhas dúvidas se ele iria gostar de me conhecer. Não era muito popular em minha terra natal.
Edwain fez um sinal para o criado servir o vinho.
— Beba — Edwain pediu. Seria mais fácil sondar a mente do mercenário caso estivesse embriagado. Outro conselho útil de Arifa que vinha insistindo com ele nessa história de sempre ter razão. Ela estava observando tudo, é claro, sentada perto da parede num cômodo contíguo através de frestas na parede.
— Aquela sua garota é mesmo muito bonita, e corajosa. O senhor tem muita sorte por tê-la.
— É... Me disseram que você tem várias esposas. Isso é mesmo aceitável?
— Bom, mais uma razão para eu não ser uma pessoa popular. Não tenho nação, ou juro lealdade a rei algum. Vive-se bem do trabalho mercenário... É um bom negócio e também oferece suas vantagens.
— É verdade que Lady Josselyn vai se casar com o senhor?
Syrun riu. — Bem, eu gostaria que sim. Mas ainda estou esperando por sua resposta.
Edwain colocou os dois braços sob a mesa tocou a cabeça do dragão negro. A partir de agora queria sondar os pensamentos superficiais do mercenário.
— Diga-me, Syrun, sobre o mago, Bérin, quando o viu durante a batalha, pela última vez, vocês conversaram, não é mesmo?
— Sim, alteza, questões táticas... E então o maldito não voltou mais. Só posso supor que tenha sido devorado por inteiro, aquele pirralho desgraçado!
Edwain percebeu que ele não mentiu quando disse serem questões táticas, mas que tática seria aquela?
E depois, todo seu comentário parecia uma forma de desviar o foco do assunto. Então captou "Esse rei é mesmo um paspalho... Fica com essa conversinha, blá, blá... Nunca vai tirar nada de mim." Mas para sua surpresa, não escutou apenas os pensamentos de Syrun, havia mais duas mentes junto a ele. "O rei deveria atirá-lo ao mar, enquanto pode. Eu aposto que ele poderia matá-lo só para obter o objeto de sua cobiça." Outra voz respondeu. "Não seja tolo! Ele está sob contrato, sabe como ele é com essas coisas..."
Edwain ficou olhando para Syrun boquiaberto.
— Algum problema, majestade?
Edwain sacudiu a cabeça. — Ora, nenhum! Eu só fiquei imaginando que tipo de questão tática vocês discutiram.
— Essas coisas, ter visão sobre o progresso do inimigo... Decidir onde atacar...
Aquilo soou obviamente como mentira.
— Lamento que você não esteja sendo sincero comigo.
— Como assim, alteza? O que está sugerindo?
Edwain colocou o braço sobre a mesa e puxou a manga da camisa revelando o bracelete do dragão negro.
— Está vendo isso aqui? — Edwain apontou para a cabeça do dragão — Esse bracelete, muito útil, me permite saber se alguém está mentindo para mim, meu caro.
Syrun engoliu em seco, procurando reavaliar a situação.
"Ele vai cortar a cabeça dele, eu aposto!" disse uma das vozes. "Não vai não, idiota."
Edwain estava confuso, mas gradualmente compreendeu o que estava acontecendo. As duas espadas mágicas que Syrun sempre carregava consigo, tinham espíritos aprisionados, assim como o medalhão que ele utilizava. Sim, fazia sentido. Agora podia escutar com clareza distinguindo cada uma das vozes-pensamento.
— O senhor tem razão, não fui sincero e peço desculpas por isso.
— Pode me dizer por que não foi sincero?
Syrun pensava em como escapar daquela situação. Tinha esperanças de ocultar fatos se soubesse escolher bem como responder às perguntas do rei.
— Em primeiro lugar, devo dizer que Bérin nunca foi um membro do Bando de Valéria. Ele não possui contrato conosco, exceto como cliente.
— Então ele tinha um contrato com vocês, estou certo?
— Sim, um contrato de natureza confidencial. Eu sou muito rigoroso quanto ao cumprimento de meus contratos, então, devo informar que não poderei responder a nenhuma pergunta específica quanto aos termos do mesmo.
— Certo, mas também está sob contrato comigo, correto?
— Sim.
— Diga-me, os termos de meu contrato seriam conflitantes com os termos de seu contrato com o mago?
Syrun parou um instante para raciocinar. É claro que em se tratando de contratos, muita coisa dependia de interpretação. O que estava escrito, estava escrito, mas nas entrelinhas havia espaço para manobrar...
— Não de forma explícita.
— Mas existiu uma contradição indireta, não é mesmo?
— Sim.
— O senhor tem conhecimento do desaparecimento de um dos navios da frota que transportava seus homens.
— Sim, dois, na verdade.
— Eu me refiro ao que estava atracado no cais em Tleos, mas que partiu antes dos demais. Ouvi a história de que alguns tleonianos desesperados teriam tomado a embarcação para fugir. Essa história é verdade?
— Não.
— Então o senhor sabe que o navio partiu levando Bérin.
— Não posso afirmar que Bérin estivesse a bordo.
— Mas poderia estar?
— Qualquer um não poderia?
— Bem eu vou lhe dizer o que penso. Penso que o pirralho, como você gosta de chamá-lo, estava à busca de algo em Tleos e queria levar consigo. Então ele o contratou para que alguns de seus homens proporcionassem a fuga dele em um de meus navios.
— Bem, não... Não foi isso que aconteceu.
— Eu não vou ficar dando voltas aqui com você, então pode ir... Já sei o suficiente agora. — mentiu Edwain e então procurou um espaço dentro da mente do mercenário. Havia muita coisa por ali. Coisas desagradáveis que Edwain teve que ignorar, então ele viu.
Bérin, Calisto e Syrun sentados fechando um acordo. Bérin iria simular a morte de Calisto e fugir com ele levando o tesouro de Tleos. A parte de Syrun era colocar alguns de seus navegadores e uns poucos soldados a serviço da dupla, para poderem evadir de Tleos. Isso assumindo que conseguiriam obter o tesouro. A parte de Syrun, além de um generoso adiantamento, ainda o esperava em Lacoresh! Então soube que o navio voltaria para sua cidade, por algum motivo. E uma esperança se reacendeu na mente do rei.
Syrun sentiu-se zonzo ao levantar e disse — Obrigado majestade... Esse vinho é mesmo muito forte... Eu vou saindo então. Peço desculpas por qualquer inconveniente, mas, negócios são negócios...
Edwain o dispensou com um aceno de mão preguiçoso. Teve que segurar a raiva e vontade de mandar seus homens prendê-lo, mas perderia a oportunidade de encontrar Calisto, ou Bérin, se não fingisse ignorância.
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