94 - O desfecho da batalha
Gálius teve um pouco de dificuldade para recolher a silfina que ainda estava cravada no corpo do demônio. Depois, arrancou os espinhos da mão e foi verificar o estado de Kerdon e Arifa. Ambos estavam muito mal. O demônio estava derrotado, mas a batalha ainda seguia intensa lá embaixo. O pior é que o fogo finalmente atingiu a parte posterior do palácio e agora muita fumaça subia. Gálius levou Arifa e Kerdon para o outro lado do terraço, de onde o vento vinha removendo um pouco da fumaça, mas era difícil escapar dela, que já vinha de tantas direções e diversos prédios que tornava-se quase uma névoa densa ali no alto.
Gálius tossia e tinha lágrimas saindo de seus olhos.
— Ainda consegue nos tirar daqui com aquelas suas janelas?
Kerdon conseguiu responder entredentes — Acho que sim. — Vamos sair ali. — apontou para o caminho entre os jardins na lateral do palácio. Ali estava praticamente deserto, toda a batalha ocorria do outro lado do palácio.
Kerdon acionou o portal e entrou, foi seguido por Gálius que levava Arifa. Ela delirava de dor em seus braços.
Pronto estavam embaixo. Desceram a rua e Gálius avistou uma casa com um pequeno jardim frontal que não tinha sido atingida por nenhum incêndio. Ele chutou o portãozinho que cedeu e deitou Arifa na grama atrás da mureta.
— Fique aqui e cuide dela. Eu vou lá para o outro lado, ajudar na batalha.
Kerdon concordou e sentou-se ao lado dela, procurando ficar fora de vista.
Gálius correu circulando o palácio em chamas. Tentou não pensar no Rei-Deus morto, lá em cima. Nem nos jardins do terraço e estufa seriam certamente consumidos pelas chamas que subiam, saindo forte pelas janelas em todos os andares abaixo.
Então ele viu a turba. Uma grande confusão diante de si.
Ele sacou a silfina com a mão esquerda, sendo que a Espada de Tarquis já estava acomodada na destra. Algo estranho fluía dentro de si. Não memórias, mas um saber, um conhecimento. Ao estar imbuído do poder do Rei-Deus, sentia-se capaz de usar as duas espadas ao mesmo tempo, como se fosse ambidestro. Talvez, tivesse sido canhoto, ou destro diversas vezes em outras vidas.
E também, fora guerreiro em algumas delas. A intuição básica disso, o instinto, se manifestou assim que se chocou contra os mortos-vivos. A força sobre-humana e a habilidade de uso das lâminas fizeram que ele avançasse em meio aos inimigos como os próprios braços da morte, ceifando os corpos, partindo-os no meio como se fossem uma plantação pronta para ser colhida.
Ele avançou, incansável derrubando inimigos e formando um rastro atrás de si. Avançou um quarteirão inteiro procedendo desta maneira até que ouviu, do outro lado da turba compacta, gritos de guerra.
Gálius bem que poderia ser confundido com um demônio enlouquecido devido ao tom rubro de sua pele. Alguns espectros que lideravam uma tropa de zumbis e esqueletos enxamearam-se ao seu redor, mas suas lâminas encantadas, girando velozes, os dispersaram tão depressa quanto faziam com os demais desmortos.
Logo abriu espaço e se encontrou com a tropa de estrangeiros que avançava com uma muralha de escudos segurando o avanço da turba. Por cima dos escudos, flechas eram disparadas e também algumas magias como labaredas de fogo e raios que fritavam os oponentes.
Gálius seguiu avançando sobre o que restava da tropa de mortos-vivos, pegando-os agora todos pelas costas ou flancos. Aquele grupo que restava, de menos de uma centena, logo foi derrotado. Um homem alto e forte, também segurando duas espadas, veio até Gálius e o cumprimentou.
— Ótimo trabalho! — disse em lacorês.
Gálius embainhou a silfina e usou a mão livre para tirar pedaços de carne e sangue de cima de seu rosto e de seu peito.
— O trabalho ainda não terminou — Gálius conseguiu responder.
— Sim, vamos reagrupar e voltar para ajudar do lado de lá — ele apontou com a espada e depois colocou-a na bainha. — Sou Syrun, a propósito.
— Gálius — ele cumprimentou-o com um aceno curto da cabeça.
Nesse momento, se aproximou um anão de pele branca e perebenta que Gálius achou muito esquisito. Ele chegou perto de Syrun falando tão baixo que o homem teve que se inclinar para ouvir. Ele falou numa língua que Gálius não compreendia.
Em seguida, o pequenino sussurrou algo e girou as mãos fazendo um brilho sutil surgir ao redor de suas pernas. Ele saltou da rua para cima de um dos sobrados na lateral da rua, como se fosse um gafanhoto.
— Mas que diabos! — Gálius ficou atônito.
— Não ligue para ele... É só o meu mago mascote.
— O que uma mascote é?
— Ah, deixa pra lá! Vem comigo Gálius, vou te levar para onde ainda tem trabalho inacabado.
***
O grupo de Syrun acompanhado de Gálius flanqueou outra turba de mortos-vivos. Do outro lado, estavam as tropas lacoresas provenientes de Whiteleaf. Atacados por duas frentes, os inimigos não demoraram a serem derrotados. Ainda mais com Gálius lutando ao lado deles. Muitos começaram a chamá-lo de Ciclone Vermelho, ou Morte Vermelha. Aquela capacidade bruta de combater mortos-vivos deixou a todos impressionados e chegou até mesmo a despertar uma pontada de ciúmes em Syrun, afinal havia alguém lutando melhor que ele, chamando mais atenção que ele. Syrun nunca reclamou, é claro, a ajuda dele foi essencial para que alcançassem a vitória. Só mais tarde, Gálius cruzou com as tropas que seguiam o Rei Edwain.
— É o rei dos Lacoreses? O líder seu? — Gálius indagou a um Edwain exausto e pálido. O rei precisava se apoiar em um de seus cavaleiros para conseguir andar.
— Sim, Edwain Kaman. Me contaram que sua ajuda foi de grande valia nessa batalha.
— Eu só estava protergendo minha cidade, mas vocês? Realmente salvaram nós!
— Como se chama? — Edwain indagou.
— Gálius Blackwing.
— Aquele nome causou grande impressão em Edwain. Será possível? É mesmo o filho de Kyle Blackwing?
— Sim. Nunca pensei que o de meu pai, o povo, surgiria para ajudar nós, num momento tão sombrio. Especial agradecimento devo a dois soldados de seu reino, sem eles eu não estaria aqui. Ardifa e Keldon.
— Arifa e Kerdon? Você esteve com eles?
— Isso, desculpe, mas nomes estranhos são... Perdoe meu lacorês, difícil está de falar.
— Estou te entendedo bem, Gálius. Mas onde eles estão? Estão bem?
— Muito feridos, os dois, mas acredito que bem devem estar. Os três de nós derrotamos aquele grande demônio em chamas.
— Pelos deuses! Que proeza!
Então o rei tocou a manga de blusa sob a armadura e fechou os olhos por alguns instantes.
— Falei com Arifa, Gálius. Ela está bem.
— Falou?
— Por telepatia... Enfim, será que pode nos levar ao seu rei? Eu tenho um pedido de ajuda a fazer.
Gálius olhou para baixo, muito triste e teve que limpar uma lágrima que queria escapar.
— O Rei-Deus morto está. O demônio enorme o matou.
— Pelos deuses! Sinto muito!
Gálius virou o rosto e procurou se recompor.
— E agora? Será que toda nossa empreitada foi em vão? — deixou escapar Edwain.
— Que desejavam vocês aqui?
— Não mentirei, não depois dessa batalha. Não depois de tudo que passamos. Fui aconselhado a vir aqui para tomar a fonte de poder mágico do rei de vocês, mas nunca gostei desse conselho, na verdade. O que eu pretendia fazer, se as circunstâncias fossem outras, era pedir ajuda, ou se isso falhasse, persuadir seu rei a nos ajudar. Havia uma lenda sobre uma gema poderosa, um antigo artefato chamado de Coração de Tleos, já ouviu falar nela?
Aquele rei parecia sincero, mas Gálius não confiou nele imediatamente.
— Infelizmente — Gálius preferiu mentir — estava lá no palácio. — apontou para o que restava do edifício, envolto em altas chamas. — Certamente destruída está, mas depois do fogo passar, não vejo problema se vocês por ela prorcurarem.
— Faremos isso. Obrigado por tudo, Gálius. Seu pai ainda é vivo?
— Sim.
— Bem, depois disso tudo, eu gostaria muito de conhecê-lo. Meu avô, sempre me contou histórias a seu respeito. Ele era um herói famoso, assim como seu avô. Ele até criou uma ordem de cavaleiros em sua homenagem, os Blackwings.
— Acho que meu pai, de saber, iria gostar dessas histórias. Quando a poeira baixar, tenho certeza que ele querer vai com o senhor conversar.
Gálius se despediu do rei e foi caminhando cabisbaixo pela cidade, uma boa porção dela estava arruinada. Alguns quarteirões inteiros queimaram, mas o fogo, em geral, já dava sinais de que havia parado de se alastrar. Alguns bruxos lacoreses passaram a convocar pequenas chuvas, ou mesmo dispersar focos de incêndio com magia, do mesmo modo que Kiorina fizera no acampamento dos silfos. Agora também, muitos dos cidadãos de Tleos saíam dos esconderijos e tomavam baldes e bacias para tirar água dos canais e combater os focos de incêndio. Gálius desceu na direção da praça onde vira um grupo de guardas e templários combatendo a horda de mortos vivos. No local, encontrou muitos corpos caídos, eviscerados, com feias mordidas nos braços e nos rostos. Seu olhar procurou logo pelos mantos amarelos e então, ele viu cada um deles. Os vonu Beguino, Maltar e diversos outros. Ali também reconheceu o corpo de seu querido amigo, o vonu Perembo. Ele ajoelhou-se e chorou ao lado de Perembo. Alguém tão bom assim não merecia uma morte tão horrível. Em sua mente desejou que tivesse encontrado Lerifan naquelas condições. Então, a ironia... A voz do oxivonu soou atrás dele.
— Gálius? É você rapaz?
Gálius virou-se e viu o oxivonu em frangalhos. Mancava e usava um bastão para conseguir caminhar. Sua perna estava carcomida e o seu antes, lindo manto, todo rasgado e ensanguentado. Um arranhão duplo e fundo cruzava sua face, descendo pela bochecha esquerda.
— Sim, sou eu, meu vonu.
— Teve notícias do Rei-Deus? Estávamos todos combatendo essas criaturas horrendas quando sentimos nossos poderes falhar. Segurávamos os malditos longe da linha de escudos de nossa guarda, mas o poder falhou, ficou ralo e depois, se foi...
— O Rei-Deus está morto.
Lerifan avançou contra Gálius e apertou seu ombro com força. Seus olhos claros giravam um pouco, sob o choque, na beira da loucura.
— Não! Isso não é possível. Ele é imortal! Imortal!
— Mas eu vi, com meus próprios olhos. Ele me concedeu força para lutar em seu lugar e foi isso que eu fiz.
— Não, venha comigo! Venha. Temos que achar o corpo, tirá-lo de lá! — apontou para o palácio ainda em chamas. — Ele vai se regenerar! Tenho certeza! Ele vai!
Gálius apoiou Lerifan e juntos foram até as proximidades do palácio. Boa parte dele havia ruído, algumas paredes externas, aqui e ali, ainda estavam parcialmente de pé.
A parte posterior, que sustentava a estufa, ainda estava de pé. As chamas ainda muito fortes queimavam os andares de baixo.
— A estufa do Rei-Deus! Temos que salvá-la! Ele é nosso pai! É nosso dever! — Lerifan gritava ensandecido.
Gálius segurou-o pelo braço e disse — Pare! Está louco? Vai morrer se entrar aí!
Havia um grande portal cuja madeira já havia sido consumida dando passagem para o interior de edifício em chamas. Ali, ninguém se dava ao tabalho de tentar apagar as chamas. Eram fortes demais e já não havia o que salvar.
— Me solte! Ora, me obedeça! Eu vou salvá-lo! É o nosso Rei-Deus!
— Não, você vai morrer, meu vonu!
— Não vou morrer. Ainda me resta um pouco do poder... Eu tenho fé! É a minha missão, eu vou conseguir. Ora me solte, Gálius, isso é uma ordem!
Gálius hesitou por um momento e afrouxou a pegada. Lerifan se desvencilhou e projetou-se na direção do prédio. Totalmente enlouquecido e cego por sua fé, entrou pelo portal, desviando-se das chamas.
— Volte aqui, meu vonu! Não faça isso! — Gálius gritou.
Mas Lerifan o ignorou. Encontrou as escadas e tossindo, clamava e voz alta — Vou salvá-lo, meu Rei-Deus! Vou salvá-lo.
Então uma viga em chamas caiu na direção de Lerifan derrubando-o no chão. Gálius ainda ouviu uma última frase baixinho antes que ele silenciasse. — Vou salvá-lo, meu Re...
Gálius se afastou e logo o andar de cima todo desmoronou implodindo uma seção do edifício. Lerifan foi soterrado ali em meio às chamas.
Eu sempre fiquei imaginando um confronto com ele, uma vingança! Ao invés disso, eu estava tentando salvar a sua vida. Afinal, ele me salvou. Salvou a Yté na entrada dos estábulos.
Gálius tinha sentimentos conflitantes a respeito dele. Ódio, pena e gratidão. Algo difícil de se lidar.
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