91 - Tarde demais
Gálius desceu as escadas correndo e viu que os dois estavam indo embora.
— Esperem!
Arifa e Kerdon se viraram para ver a estranha figura de Gálius. Ele estava vestindo apenas calças e sua pele estava tão vermelha que parecia que ele ia explodir.
— Meu nome é Gálius, eu vou com vocês.
— Filho! — disse Kyle — Se esqueceu do seu dever?
— Pai, eu confio em você. Cuide do Coração para mim até eu voltar.
Kyle balançou a cabeça. Não gostava nada daquela ideia, mas pelo olhar obstinado do filho, viu que seria inútil tentar dissuadi-lo.
— Está bem. Mas cuide-se!
— Me chamo Arifa, esse aqui é o Kerdon.
— Muito prazer, Sir. Pimentão. — disse o homenaseano zombador.
— Kerdon! — Arifa o repreendeu.
— Não tem problema — Gálius riu — eu normalmente não sou assim...
— Sabe usar isso aí? — indagou Kerdon olhando para a espada curta na mão de Gálius.
— Meu pai me ensinou.
— Ótimo — disse Arifa toda ajuda é bem-vinda! — ela desembainhou a silfina com a mão esquerda e entregou na mão de Gálius.
— Pegue essa espada, vai precisar de algo melhor para o que vamos enfrentar.
Gálius deixou de lado a espada que obteve do guarda caído e pegou a silfina, admirando a lâmina de qualidade superior.
— É só um empréstimo — ela ressaltou. Ela segurava a Espada de Tarquis com firmeza na destra e sentia que ela era muito superior à sua lâmina sílfica.
Gálius segurou aquela espada e se lembrou imediatamente das batalhas que travou em outra vida lutando ao lado dos elfos como Lex. O cabo, o pomo, formato da guarda e o chanfro na lâmina que terminava de modo ondulado. A pegada era familiar, bem mais confortável do que a empunhadura da espada do guarda.
— Acredita que pode nos levar lá no alto? — Arifa apontou para a parte posterior do palácio real. — Vamos ter uma boa visão da batalha de lá.
— Claro — respondeu Kerdon. Já estava muito habituado ao uso do medalhão.
— Como assim? Você voa? — indagou Gálius.
— Faço portais... Você vai ver... — então Kerdon se concentrou. Escutou a voz de Rayera o aconselhando "Lance a luz guia." Kerdon fez surgir um pontinho de luz acima do palácio. "Agora desça-o lentamente, quando sentir que tocou em algo sólido, é só abrir o portal logo acima." Kerdon seguiu o procedimento, isso não levou nem três segundos. Kerdon abriu o portal e imediatamente a fumaça malcheirosa saiu por ele.
— Primeiro as damas — ele fez uma vênia para Arifa.
Arifa cruzou o portal entrando sem enxergar bem o outro lado devido à fumaça. Mas dava para ver que havia algumas plantas do outro lado.
— Segue ela... É só andar, vai — Kerdon incentivou Gálius que parecia hesitar, achando aquilo a coisa mais estranha.
Gálius entrou sendo seguido por Kerdon.
— Que loucura! — disse Gálius em sua língua natal. Arifa e Kerdon não faziam ideia do que ele dissera.
Gálius se viu no terraço do palácio real no meio dos jardins. Havia um pouco de fumaça por ali que vinha do fogo que consumia as alas frontais do palácio. Distante dali, bem ao fundo, e no patamar mais elevado dos terraços, Gálius pode ver a ponta da estufa, o local onde esteve com o Rei-Deus, há pouco menos de uma hora.
Será que ele ainda está lá?
Enquanto ele pensava naquilo, Arifa e Kerdon avançaram para a beira do terraço para o ver o que acontecia lá embaixo. Ouviam-se os sons da batalha, mas ainda não tinham ideia da situação.
Gálius logo os seguiu, pois, também estava curioso para ver o que estava acontecendo.
De cima, podiam ver várias ruas apinhadas de soldados. O exército lacorês avançou a partir do Cais, mas estava dividido na região, seu contingente espalhado ao longo de várias ruas paralelas e perpendiculares. Exceto por uma praça, não havia muito espaço aberto para organizar um combate naquela região, então, toda a luta estava dividida em mais de dez diferentes frentes, nas quais tropas lacoresas se chocavam contra hordas de mortos-vivos.
— O Ed está ali — Arifa conseguiu identificar o rei a uns cinco quarteirões dali devido ao brilho que emitia de seu medalhão. Ele derrubava uma grande quantidade de mortos-vivos ao avançar e muitos ficavam no chão e nos cantos da rua sem ter para onde fugir. As tropas que o seguiam, atiravam flechas ou usavam espadas para eliminar os oponentes incapacitados. A coluna que seguia o rei era a que mais avançou, quatro quarteirões ou mais, se comparada às outras frentes de batalha.
— E os mercenários vão ali — Arifa indicou a rua paralela, alguns quarteirões atrás. Dava para ver Syrun lançando seguidas labaredas de fogo contra os mortos-vivos com sua espada elemental. Atrás dele, Bérin também lançava contínuos feitiços que destroçavam os oponentes. Eles avançavam ganhando território do inimigo.
— Melhor agente ficar aqui olhando — sugeriu Kerdon. — Não consigo ver a diferença que nós três íamos fazer indo lá embaixo.
Arifa olhou feio para Kerdon que se corrigiu — Mas se for para descermos, seria melhor ali, perto do Rei. Certamente estaríamos mais seguros.
Arifa sentiu seu estômago torcer. Vasculhava as várias ruas procurando por Josselyn.
— Você vê a Joss? — deixou escapar para Kerdon — Ela devia estar por perto de Syrun, mas...
— Tô procurando.
Viram também um grupo pequeno, cercado numa das praças. Não pertenciam ao seu exército, havia uns cem guardas e formação de defesa e cinco ou seis figuras montadas vestindo mantos de um amarelo vibrante que se destacavam. Eles atiravam raios de magia fulminando inimigos que se aproximavam.
— Não sei quem vocês eh... procurando estão — Gálius se esforçava um pouco para falar o Lacorês, mas havia perdido a fluência. — mas aquele sujeito lá certamente é problema! — Inclinou-se para apontar uma figura enorme que saltou por cima de uma das ruas entre os telhados das construções. Era forte, muito alto e chamas intensas percorriam seu corpo. Agora, ele estava a apenas um quarteirão de distância do final do palácio. Também tinha dois cornos enormes saindo dos ombros. Ele saltou atingindo a parede que começou a escalar pela força bruta. Socava a parede arrancando lascas da pedra para fazer espaço para encaixar as mãos e pés enquanto subia.
Então, um brilho forte seguido de um estrondoso trovão atingiu a criatura fazendo-a cair.
— O Rei-Deus! — Gálius exclamou. Não dava para ver daquele ângulo, mas teve certeza que aquele raio só poderia ter sido lançado por ele. Então Gálius correu pelo terraço na direção da estufa.
— Ei, espera! — gritou Arifa, mas Gálius a ignorou.
Arifa e Kerdon ficaram olhando.
— Melhor nós ajudarmos o rapaz, certo? — sugeriu Kerdon.
Gálius agora subia um lance de escadas que levava ao patamar intermediário, a cerca de cem metros dali.
— Melhor ir de portal, né? — Kerdon estava morrendo de preguiça de correr, e ficar ali por cima, numa posição defensável parecia melhor negócio do que se arriscar lá embaixo com carniçais ou coisas piores.
Arifa assentiu e Kerdon os transportou para perto de Gálius.
— Ei, espera aí menino!
— Meu nome é Gálius! — ele continuou correndo. — Vamos logo, precisamos ajudar o Rei-Deus!
Lá de baixo, ouviram um bramido altíssimo que chegou a machucar os ouvidos. Arifa e Kerdon já haviam ouvido aquilo antes, em Whiteleaf.
— Acho que ele ficou nervoso agora — disse Kerdon parando. — Eu não vou correr, só vou esperar mais um pouco e...
Abriu outro portal saindo um pouco à frente de Gálius, pouco antes da escadaria que subia para último patamar.
Três fortes estrondos fizeram o chão debaixo deles tremer.
Kerdon se jogou no chão — Cacete! O que foi isso?
Gálius recuperou o equilíbrio e seguiu adiante, subindo o último lance de escadas.
Arifa viu uma enorme pedra fumegante no céu, lá adiante, como se uma catapulta tivesse a arremessado. Mas ela olhou com atenção e não parecia haver nenhuma máquina de guerra nas ruas. Ela foi para perto do muro para espiar.
O demônio arrancava enormes porções do pavimento, pedaços de casa e juntava-os acima de si, esmagando-os em forma de bolas de pedra quase em ponto de fusão. Dois pedaços estavam flutuando acima da cabeça dele e com um gesto das mãos ele as atirou contra o muro do palácio. Eles sentiram o chão tremer enquanto escutaram dois novos estrondos. Pedaços do muro do palácio foram arrancados com os impactos.
Gálius finalmente conseguiu subir e enxergar adiante, na porção mais alta do terraço.
— Pai! — ele deixou escapar ao ver o Rei-Deus caído com uma enorme rocha fumegante sobre ele. Ele correu com tudo o que tinha e chegou lá rapidamente. O efeito da magia que o tornaram mais forte ainda durava, também ampliando seu fôlego. Perto, constatou que o Rei-Deus vivia, mas tinha uma expressão de dor no rosto.
— Gálius... — ele mal conseguiu dizer, sem ar dentro de seus pulmões.
Gálius agarrou a enorme rocha quente sentindo as mãos quentes formigando, mas sem se queimar. Gemeu fazendo força até que rolou a pedra de cima do Rei-Deus.
O corpo do monarca estava parcialmente esmagado, havia ossos quebrados e sangue fazia uma poça sob ele.
— Por que você voltou? O Coração... — tossiu sangue.
— A árvore está num lugar seguro — ele segurou a mão intacta de Tleos. O jovem tinha lágrimas nos olhos.
— Gálius, cuidado! — Gritou Kerdon. Vendo que não haveria tempo para o rapaz escapar, Kerdon abriu um portal em sua frente que serviu de escudo. As pedras fumegantes que o demônio atirou entraram no portal e saíram em algum outro lugar.
O demônio agora estava no terraço.
Era enorme, o tórax largo e musculoso, coberto de espinhos escuros. Um par de cornos negros saiam dos ombros e a cabeça, era relativamente pequena, socada no tórax sem um pescoço visível. Os seis olhos eram pequenos, malignos brilhavam como brasas. Não tinha pés, no lugar deles, patas largas com garras afiadas.
Ele viu Kerdon e o atacou atirando uma porção de pedras fumegantes arrancadas do próprio palácio. Kerdon escapou por pouco, entrando em um portal.
Arifa avançou com a espada de Tarquis em punho, confiante. Parecia uma criancinha ao lado do enorme demônio. O gigante riu ao ver ela avançar em sua direção.
— Filho... — murmurou o Rei-Deus — Vou transferir a você o pouco de força que me resta.
— Não pai, você ainda pode... — e então Gálius sentiu seu corpo queimar por dentro. Era uma sensação que não haveria palavras para descrever. Ele ficou tão quente que começou a exalar fumaça da pele.
— Tarde demais... — Foram as últimas palavras do Rei-Deus, que morreu ali, com os olhos vidrados.
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