90 - Finalmente livre
Gálius corria pelas ruas na direção de sua casa, na porção oeste da cidade. Já não havia pessoas circulando pela cidade a esta altura. Muitos tentavam fugir pelo mar, outros se escondiam nas casas ou prédios que pareciam mais protegidos. Gálius sentia-se forte e com o fôlego ampliado. Correr seis quarteirões levando a planta não chegou a cansá-lo.
Foi avistado por um dos demônios alados que veio descendo em sua direção. O demônio manobrou passando pelo seu lado e pousou, logo a frente. Gálius colocou a planta no canto e preparou-se para enfrentar o demônio. Tirou a espada que levava espetada na terra do vaso e avançou contra o demônio.
A criatura veio para cima, confiante em sua vitória. De sua boca veio uma língua de fogo que atingiu Gálius bem no peito. O fogo grudou em sua pele e queimou a camisa rapidamente, mas não causou muito incômodo, além de leve ardência.
O demônio ficou surpreso ao perceber que Gálius continuou avançando ignorando o fogo. Saltou com as garras afiadas adiante e a boca de dentes pontiagudos pronta para morder. Gálius girou a espada com velocidade e força inumanas cortou fora um dos braços antes de enterrar a espada até a metade do tórax do oponente. Gálius puxou a espada, mas estava presa à criatura que se debatia. Então, empurrou com o pé conseguindo destravar a espada presa aos ossos.
O demônio ficou no chão, o amaldiçoando e se arrastando enquanto a vida se esvaía dele. Gálius limpou o sangue do demônio nas calças e voltou a fincar a ponta da espada na terra do vaso. Ergue-o novamente e correu dali.
Gálius passou pelo bambuzal e avistou sua casa. A figura de seu pai recortada na janela da torre, ansioso para ver quem viria buscar a espada. A visão de Kyle não incluía uma versão vermelha como um pimentão de seu próprio filho carregando um vaso grande de planta. Gálius se aproximou e dali de baixo, no Jardim, começaram a conversar.
— Filho? O que é isso, sangue? Tinta?
— Não é nada pai, estou bem. Teve notícias do pessoal, estão bem?
— Sua mãe está tirando todos de perto da cidade. Outras pessoas de Várzea Alta estão fugindo também para os bosques, além das pedreiras.
— Você não vai?
— Eu tenho que esperar.
— Se ficar aqui esperando pode morrer!
— Talvez esse seja o meu destino, filho.
— Você pode mudar seu destino pai! É só ir agora!
— Não, eu tenho certeza que tenho que entregar a espada. Isso é importante.
Gálius entrou na casa e subiu, apressado.
— O que houve com sua pele? — Kyle perguntou novamente quando viu o filho de perto.
— Foi uma magia que o Rei-Deus fez em mim. Estou mais forte e minha pele mais dura.
— Certo. Então, o que vai fazer?
— Eu vou esperar aqui com você. Se houver problemas, poderei ajudar. Eu derrotei um daqueles demônios, lá atrás e não foi tão difícil.
— E o que é isso que está trazendo?
— É o Coração de Tleos, pai. A árvore do Rei-Deus que eu tinha lhe falado.
— Ah, eu imaginei que fosse maior...
— Você viu aquilo, filho? — Kyle apontou para a região portuária.
Havia uma centena de navios ali. Um deles era imenso. Já estavam atracados nos piers ao longo do cais.
— São lacoreses — o pai explicou.
— Mas o que estão fazendo aqui? E logo agora?
— Não sei... só espero que eles não sejam aliados desses demônios.
***
A maior parte da frota lacoresa já estava atracada. As tropas desembarcavam, agrupando-se na região portuária e preparando-se para lutar. Ainda do alto do convés do Princesa Hana, Bérin foi o primeiro a identificar a presença de demônios. Calisto veio junto deles claudicando e disse com sua voz arrastada.
— É o Necranxelfer. Chegou antes de nós. E pelo visto, alguém está dando trabalho a ele. — apontou para porção posterior e no alto do palácio, local onde uma batalha estava sendo travada.
Arifa estava exausta sentada no chão do convés encostada em alguns barris. Calisto se arrastou até ela e entregou a pequena caixa de metal.
"Tome. Assim que puder, procure pela espada. Certamente será útil para derrubar um demônio poderoso como Necranxelfer."
Arifa pegou a caixinha e viu as tropas desembarcarem. Ela chamou.
— Kerdon, espera! Tem uma espada... Você vai me ajudar a pegá-la.
— Certo. Na verdade, não estou muito ansioso por ir para a linha de frente.
Arifa viu Josselyn descer ao lado de Syrun. Ela vinha ficando com ele naqueles tempos recentes ao passo que Arifa estava com Edwain. Elas trocaram olhares ressentidos e Arifa acenou para ela.
Edwain desceu, se aproximou e se ajoelhou para beijá-la.
— Me deseje sorte!
— Não vai morrer, Ed!
— O Bérin falou que tem milhares de mortos-vivos acompanhando o demônio... A mesma horda que enfrentamos em Whiteleaf. Meu medalhão será útil. É melhor eu ir na frente.
Soldados lacoreses, cavaleiros e as tropas mercenárias foram se juntando nas ruas e subindo na direção do centro, onde ficava o palácio. Toda aquela região estava infestada de mortos-vivos dos mais variados tipos. Um tipo de inimigo que o lacoreses aprenderam a confrontar, ao longo dos anos. Mas em Tleos a presença daquelas criaturas causava horror além da compreensão.
A frota não havia transportado um número grande de cavalos, dada a dificuldade de acomodá-los, mas o Rei e alguns de seus cavaleiros receberam montarias e avançaram em meio às tropas até chegar à frente. Arifa acompanhou aquela movimentação torcendo por Edwain e todos seus companheiros.
— Vamos Kerdon — ela se apoiou nele para conseguir andar. — Melhor avançarmos.
— Você tá legal?
— Só um pouco cansada.
Os dois desceram a rampa inclinada que descia a partir do convés do Princesa Hana até o Pier, bem abaixo.
Arifa sentia os músculos das pernas, braços e abdome pulsando, devido ao esforço contínuo de sustentar o jato de vento.
— Olha pra aquilo, Kerdon! — Arifa apontou para as ruas da cidade, lotadas de soldados em movimento. Conforme a distância aumentava, mais se parecia com túneis repletos de insetos nervosos, saindo para defender a colônia. Os gritos de guerra e o tintilar de metal anunciavam que a batalha já havia começado.
Arifa abriu a caixa e de dentro um brilho esverdeado iluminou a face dela e de Kerdon. Dentro a esfera de vidro estava a lasca de metal brilhante que trepidava.
— O que é isso?
— Uma espécie de bússola.
Eles percorreram o pier e chegaram no cais. Arifa de olho na esfera.
— Acho que mais para lá — ela apontou.
Kerdon não fazia ideia de como ela estava se guiando.
— Pode nos levar para além daquela pequena torre?
Kerdon fez que sim e segurou seu medalhão para abrir um portal. Deu para ver um ponto de luz surgir na rua, a quinze quarteirões de distância. Quando a dupla atravessou, a lasca de metal saltitou ainda mais dentro da esfera.
— É por aqui mesmo — confirmou Arifa.
— Essa cidade é muito estranha. Parece limpa e não fede muito. — observou Kerdon olhando à sua volta. A maioria das casas era construída com blocos de pedra amarelada clara e os telhados eram de cerâmica com tons predominantes da cor de barro alaranjado. As portas eram de madeira, mas em formato muito diferente do que se fazia em Lacoresh.
Enquanto Kerdon observava, Arifa andava em zigue-zague pela rua, como se estivesse bêbada. Então ela apontou mais para o oeste.
— Podemos ir mais para lá?
— Melhor eu ver o lugar primeiro. — deu uma olhada em volta e apontou — Vamos subir ali, vem, eu te ajudo. — Kerdon escalava muito bem e com algum esforço, Arifa conseguiu acompanhá-lo. Dali do alto pode ver um local mais distante, onde havia alguns parques e pequenos bosques. Ele abriu um portal no meio do ar, sem chão algum por baixo. Ele entrou, mas Arifa olhou para baixo e hesitou.
— Vem logo — ele disse do outro lado. — já vai fechar...
Como Kerdon viu que ela não se movia, atravessou apenas os braços de volta e puxou-a para dentro segurando-a pela cintura. Do outro lado ela caiu por cima dele. Ele afundou o corpo um pouco no chão enlameado.
— O que deu em você, ô minha filha?
— As vezes fico meio zonza por causa de alturas.
— Aff... — Ele ficou de pé e deu as mãos para ajudá-la a se levantar. — Vamos!
Ela andou por ali, uma área mais verde com menos construções amontoadas. Havia um bambuzal adiante e além dele, viu parte de uma casa estranha, com uma pequena torre espiralada.
— É ali — ela apontou. — Melhor andarmos agora.
Kerdon olhou para trás e viu estar bem distante do centro da cidade e que muitos focos de incêndio se alastravam por toda a parte.
— Eu vou na frente — disse Arifa e Kerdon não viu motivos para discutir com ela.
***
Gálius e Kyle viram emergir do bambuzal duas figuras.
— Tá vendo, pai? Tem dois estranhos se aproximando.
Kyle apertou os olhos e esperou que se aproximassem um pouco mais. Aquela visão. A visão que foi a última a ser concedida agora se concretizava. Ele pensava que a pessoa que vinha era um homem loiro de cabelos longos, mas agora, vendo com maior nitidez, pode perceber que era uma mulher, na verdade, uma adolescente.
— Parecem lacoreses... Pelo menos pelas roupas. Reconheço aquele brasão. São de minha cidade, Kamanesh — disse Kyle. — Então era uma garota... Eu vou descer lá. Melhor você ficar para trás e proteger isso aí. — apontou para o vaso com planta, no canto do quarto.
Quando Kyle pegou o estojo de madeira que guardava a espada, percebeu que ele vibrava um pouco e que havia uma pequena faixa de luz esverdeada saindo da fresta.
Gálius chegou mais perto da janela e viu quando seu pai saiu, lá embaixo, no jardim para encontrá-la. O outro sujeito parou junto do portão, olhando ao redor. Os olhares deles se cruzaram. Ao mesmo tempo, seu pai falou em lacorês, uma língua que Gálius aprendeu quando era criança e que muitas vezes era usada apenas na casa deles.
— Olá, como se chama?
— Meu nome é Arifa Desbrin.
— Você é parente de Sir. Galdrik?
— Ele é meu pai.
Kyle ergueu as sobrancelhas, reconhecendo a semelhança. Apesar de ser apenas uma garota, havia algo estranho nos olhos de Arifa, como se refletissem o fato de ser uma pessoa idosa e sábia.
— Fomos ordenados juntos pelo Duque Dwain, há muito tempo.
— O senhor é o Cavaleiro Blackwing?
Kyle fez que sim e Arifa fez uma vênia exagerada, quase se ajoelhando diante dele.
— Estou muito honrada em conhecê-lo.
— Por que a frota lacoresa veio pra cá? — quis saber Kyle.
— É uma história complicada, mas precisávamos chegar antes do demônio.
— Então vieram para ajudar?
Arifa encolheu os ombros e mentiu — Parece que sim. O Rei Edwain e o exército estão combatendo a horda agora mesmo.
— Rei Edwain? É filho de Hana e Kain?
— Não! É o neto do Rei Dwain...
— Então o duque foi o sucessor da Rainha?
— É mais complicado que isso, escute, quando houver tempo poderá ter explicações, por hora, eu vim devido a uma espada. É o que está carregando nesse estojo? — ela deduziu devido ao formato da caixa.
— Sim. — Kyle ajoelhou-se na grama alta do jardim e abriu a caixa que continha a espada.
— Ela é magnífica — Arifa ficou com os olhos vidrados na lâmina que reluzia com tênue brilho esverdeado.
— Pode pegar. Ela é sua. — disse Kyle com lágrimas nos olhos.
Arifa se abaixou e envolveu o cabo trabalhado em marfim e metal. Mais parecia uma obra de arte do que uma arma, propriamente dita. Ela sentiu os pelos do braço e da nuca se eriçarem por baixo da roupa.
Kyle murmurou baixinho deixando uma lágrima escapar — finalmente, finalmente estou livre.
— Está tudo bem?
— Sim, sim... É que esperei muitos anos por esse momento. Eu não sei o que vai acontecer agora... e isso é maravilhoso.
Arifa ficou olhando para ele, sem entender bem o sentido de suas palavras.
Ela virou-se para Kerdon que esteve ao lado do portão, apenas observando. — Olha Kerdon! Conseguimos!
Ele fez um gesto e sorriu. — E agora, Arifa?
— Agora, Kerdon, nós vamos lá para ajudar a combater aquele demônio.
— Mas você não estava...
Ela segurou a espada com força e sentiu uma enorme confiança brotar dentro de si — Me sinto melhor que nunca.
— O senhor vem conosco, Cavaleiro Blackwing?
— Eu já lutei muitas batalhas por Lacoresh, mas agora, a única batalha que pretendo lutar é a de proteger minha família.
— Compreendo.
— Desejo boa sorte para vocês! Que Aianaron lhes dê coragem!
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top