9 - Uma boa conversa
Arifa arfava e estava coberta de suor. Iniciou o dia cedo, ainda no final da madrugada, com uma dura rotina de treinamentos no pátio da academia. Os cabelos estavam presos num coque firme. Usava botas, protetores de joelhos, um saiote e um corselete de couro. Espada na mão direita e broquel na esquerda. Seu rosto estava vermelho.
Ela avançou com determinação contra seu oponente, as espadas de madeira se cruzando duas vezes antes que ela tomasse uma solapada nos ombro e perdesse o equilíbrio caindo no chão. Por mais que se esforçasse, ainda estava longe de conseguir derrotá-lo. O cotovelo ralou na queda e ficou ensanguentado, mas ela ignorou a dor e colocou-se novamente em posição.
Seu oponente, Mestre Farkas, não demonstrava muito cansaço.
— Está a melhoraire, delú? Lembre-se, contato visuale — o axiano colocou os dois dedos em vê sobre os próprios olhos — sem tanta firmeza na postura, joelhos flexionatos.
Farkas havia concordado em dar aulas de reposição para ela, pois esteve ausente por quase uma semana devido a sua viagem até Lacoresh. Agora o sol já havia despontado e os primeiros alunos começavam a chegar para as aulas regulares.
— Ataque, apí!
Arifa se concentrou. Sua técnica como espadachim provavelmente nunca se igualaria à de Farkas, mas o que aprendeu sobre o jii, nos últimos anos, poderia ser bem o que faria diferença. Ela quase se sentiu trapaceando ao usar a leitura de mentes contra Farkas. Sua mente, no entanto, estava bastante fechada, nada na superfície de pensamentos poderia denunciar sua intenção de movimentos. Ele cantarolava algo, uma ladainha repetitiva.
Ah! Ele sabe bem como proteger a esfera de pensamentos superficiais, mesmo sem ser um mentalista.
Ela precisou forçar para atravessar a esfera externa de pensamentos. Ela atacou dividindo a atenção entre a leitura de pensamentos e sua capacidade de lutar. Farkas defendeu o golpe com facilidade e contra atacou. Ela se defendeu.
Sim! Deu certo! Essa técnica é incrível!
Logo uma plateia parou para ver aquela luta. Era uma sequência veloz de ataques e contra-ataques. Farkas se esforçava agora para atingi-la, porém sem sucesso. Ela, por sua vez, também não conseguia penetrar as defesas do mestre. Já combatiam assim por cerca de dois minutos.
"Está lendo meus pensamentos, delú?" ela leu o pensamento de Farkas.
Ele percebeu!
Ela corou e perdeu a concentração. Foi o suficiente para Farkas encontrar uma brecha e girar a lâmina de uma forma que fez a arma dela voar de sua mão.
— É uma boa técnica, minha jovem. Por que perdeire a concentração?
— Eu senti vergonha. — murmurou em resposta.
— E isso foi um erro. Tente mais uma vez, apí!
Ela pegou a espada, concentrou-se e avançou. Mas não conseguiu defender o primeiro contragolpe e foi derrubada por uma rasteira.
— Ahá! Te enganei!
— Mas como?
— Pensamentos podem mentire, delú?
— Como?
Ele deu a mão para ajudá-la a se levantar. — Apliquei em você uma dupla finta. Gostou?
— Foi inesperado.
— Sim, sim. Tive suorte de aprendere isso sem morrer.
— Como assim, mestre?
— Pude praticaire aqui mesmo na academia, lutando contra a Capitã e outros espadachines mentalistas.
Antes que Arifa retrucasse ele exclamou já atacando — Uma última, apí!
Arifa defendeu-se usando somente sua capacidade física. A sequência de ataques realizada por Farkas não dava tempo para pensar, ativar o jii, nem nada assim. Ela apenas se defendeu dos ataques violentos usando seus instintos.
Farkas seguiu atacando e ela foi recuando por mais de dez passos para evitar os golpes. Contra uma parede e já sem espaço para recuar, ela simulou uma finta para atacar, mas ele não mordeu a isca. A pausa nos ataques deu um momento para ela voltar a ler a mente dele. Ela atacou e evitou o contragolpe como da primeira vez e se deslocou para a direita evitando ficar com as costas contra o muro.
Agora usando o jii conseguiu reequilibrar o embate, ainda sem conseguir suplantá-lo. Ela queria vencer a qualquer custo, então atacou manipulando um fluxo de jii contra a mão de Farkas. Ele sentiu um espasmo doloroso e soltou a espada. Ela então, encostou a ponta da sua no pescoço dele.
— Ah, resolvere apelar para mágica, certo?
— Desculpe eu não...
— Não deve pedire desculpas a um inimigo derrotado. Mas também, o que faria contra um inimigo se fosse imune à sua feitiçaria? Caberia-lhe derrotá-la por possuire técnica inferior com a espada, delú?
— Imune?
— Como não? Muitos inimigos que enfrentamos possuire proteção contra magia, ou mesmo o uso do jii. Sei que sabere disso.
— Sim.
— E é por isso que ainda precisa aperfeiçoare sua técnica para me derrotar, sem jii, sem magias. É preciso estar preparada para todos os inimigos, delú?
— Claro mestre — ela fez uma vênia — obrigado por mais esta lição.
— Amanhã, mesmo horário. — ele disse ao pegar a espada para colocá-la no armário aberto que ficava no pátio.
— Até amanhã!
Arifa sentou-se um pouco para descansar. Limpou o suor com um lenço que tirou da bolsa. Foi quando viu Josselyn de Waterbridge recostada na sacada do segundo andar, olhando para ela. Sentiu sua orelha queimar ao perceber que ela esteve observando seu treinamento. Deu um pequeno aceno sem graça para ela. A blackwing respondeu com um meio sorriso, tocou o ombro para saudá-la como os cavaleiros faziam e saiu.
Arifa sentiu o coração disparar, levantou-se e cruzou o pátio correndo. Foi até o final do corredor, desviando-se de alguns alunos e subiu as escadas. Viu onde ela estava e apertou o passo para alcançá-la.
— Espere, WaterBridge!
Ela se virou, erguendo as sobrancelhas — Pode me chamar de Josselyn.
Estava vestida com a armadura completa dos blackwings, toda pintada de preto e incluindo o elmo com asas nas laterais e emolduravam seu rosto forte, de sobrancelhas grossas e marcantes.
— Eu, quero dizer — Arifa fez uma pausa para respirar, ainda estava vermelha e ofegante — a senhora teria um tempo para conversar?
— Senhora não, você. Sobre o que quer falar?
— Bem eu, estou, ou melhor, tenho uma tarefa... O rei. Ele quer que eu encontre o Príncipe Kain.
Josselyn ergueu as sobrancelhas e abriu um pouco a boca. — Certo — finalmente disse.
— Eu estive com o Prior Yaren. Ele me disse que a senho... digo, que você falou com ele antes de sua partida.
— Sim, é verdade.
— Sabe para onde ele foi? Ele disse algo? — Arifa indagou ansiosa.
— Posso perguntar o que pretende fazer? — ela ergueu uma das sobrancelhas grossas.
— Seguir pistas, encontrá-lo.
— Como?
— Ainda não pensei bem nisso...
— Ele sumiu há mais de dois anos. É provável que esteja morto. Além disso, o rei precisa aprender a se virar sem ele.
— Já entendi que você é contra, tudo bem, mas ele me pediu essa tarefa e pretendo cumpri-la. Sobre o que vocês conversaram?
— Ele queria saber a respeito de um sujeito com quem tive contato quando fomos resgatar a Capitã na necrópole.
— Quem era ele?
— Alguém poderoso e tocado pelas trevas. Eu tive um breve contato mental com ele.
— O que você disse a Kain?
— Eu mostrei ao príncipe quem ele era. Mostrei minhas memórias e impressões. Ele chegou a conclusão que aquele homem era o filho dele, o tal Barão Calisto.
— Então o Barão Calisto está vivo?
— Não sei, só ouvi histórias a respeito dele, mas em nenhuma delas ele era alguém tão poderoso no domínio do jii quanto aquele sujeito que encontramos. Temo que Kain não teria forças para derrotar aquele ser, mesmo sendo um tisamirense e poderoso mentalista.
— Entendo. Você julga que ele pode ser sido morto então. Que o tal Calisto mataria o próprio pai?
— Se estivesse com a mesma disposição de Kain, sim.
— Ele queria matá-lo então? — ela colocou a mão sobre a boca, chocada.
— Sim, certamente!
— Que horrível! Eu não consigo me ver sequer pensando em machucar meu pai.
— Que bom para você — ela mostrou um sorriso amargo. — Eu não posso dizer o mesmo.
— Hein?
— Ah! Deixa prá lá... Na verdade, não sei por que disse isso. É que minha relação com meu pai sempre foi péssima.
— Sinto muito.
— Não é nada... No final, consegui o que desejava, deixei nossa propriedade e entrei para a academia. Suponho que ele acabou aceitando o fato de eu não ter vocação para ser uma dama.
— Meu pai me apoiou.
— Quanta inveja...
Arifa ficou olhando-a nos olhos e se distraiu. Josselyn ficou encarando de volta e um momento de silêncio constrangedor se seguiu. Arifa baixou o olhar e voltou ao assunto de Kain.
— Yaren disse que ele tinha intenção de ir a Tisamir e depois até a Necrópole.
— Sim, ele disse algo neste sentido. Eu tentei dissuadi-lo de ir para o norte, afinal a região continua apinhada de mortos-vivos. Se ele sobreviveu ao caminho, pode muito bem ter encontrado a morte por lá, antes mesmo de deixar o local para ir atrás de seu filho na Necrópole. Se quer saber meu palpite, acredito que ele esteja vagando nas terras do norte como um carniçal...
— Obrigada pelas informações... Eu vou...
— Vi seu treinamento com Farkas... Devo dizer que fiquei impressionada. Eu mesma nunca consegui derrotá-lo.
— Eu trapaceei. Usei o jii.
— Ah sim! Eu notei. Também tentei nos meus tempos de aluna, mas ele sabia se defender muito bem desses ataques. Foi mesmo impressionante o que você fez.
Arifa corou e mordeu os lábios. Não sabia onde enfiar a cara.
— Você sabe que dificilmente conseguirá uma autorização para viajar até Tisamir, não é mesmo?
— Sim, sei disso. Sei que é bastante perigoso. Acho que o rei não tinha noção exata do risco que seria para alguém como eu encontrar Kain.
— Provavelmente não. Mas não quer dizer que não seja um trabalho impossível para um grupo de cavaleiros mais experientes. Talvez, se conseguir convencer seu pai da importância de encontrar Kain, ele possa montar uma equipe para investigar o assunto. Não acredito que o rei acreditasse que você fosse sair por aí sozinha se arriscando...
— Você tem razão. Obrigada pela ajuda.
— Disponha, eu tenho uma curiosidade...
— O que é?
— É mesmo verdade que o rei pediu você em casamento?
Arifa olhou para os lados, desconfortável. Apertou o braço esquerdo com a mão direita, retraindo-se.
— Desculpe, eu não devia ter perguntado algo assim...
— Sim, recebi o pedido... Não tem problema você perguntar, afinal isso não é nenhum segredo.
— Por que você recusou? Seu pai soube disso e mesmo assim conseguiu aceitar?
— Eu... Quero dizer, meu pai aceitou... Ele me ama e me respeita, sabe? Mas eu não quis porque não gostava dele, digo, eu não me via...
— Eu entendo, entendo bem.
— Além disso, não faz muito sentido pensar em casamento e ter filhos. A cada dia que passa nossas forças diminuem. E ficamos mais vulneráveis. É quase certo que vamos sucumbir ao avanço dos demônios, como os outros reinos. Essa semana mesmo... — seus olhos ficaram cheios de lágrimas — O Cavaleiro Mirth se foi. Eu estava lá, poderia ter sido eu. Então, o mais importante é a defesa de nosso povo, o mais importante é tentar nos fortalecer de algum jeito. — ela limpou as lágrimas antes delas escorrerem.
Josselyn levou uma das mãos no ombro de Arifa e a afagou.
— Eu entendo. Minha motivação para ser cavaleiro não é tão nobre quanto a sua, mas entendo bem. — ela retirou a mão. — Eu tenho que ir...
— Obrigada novamente.
— E vê se não vai se jogar de nenhuma sacada, viu?
— Ah! Pode deixar... Aquilo foi uma coisa estúpida.
Arifa ficou ali parada observando a cavaleiro Josselyn de WaterBridge se afastando. Sentiu algo estranho dentro de si. Aquela conversa fora ótima. Ela não era chata como Tíghas, ou pegajoso como Edwain, insuportável como suas tias, autoritário como seu pai e nem dura como a Capitã. Não sabia bem por que, mas gostou muito de conversar com ela.
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