89 - O grande incêndio

Gálius ouviu uma explosão e depois gritos. Sentiu cheiro de fumaça e então soube: o incêndio começara. Seus passos ainda estavam pesados devido ao consumo do fruto, mas se esforçou para sair do salão e chegar nos corredores. O cheiro de fumaça estava mais forte e viu dois guardas correndo ao longe. Andou o mais rápido que pode e desceu as escadarias. Do outro lado do pátio, viu algumas das janelas dos luxuosos salões expelindo chamas. Foi em um daqueles lugares que havia almoçado como o Rei-Deus há algumas semanas.

Estou no mesmo dia?

Gálius olhou para o céu procurando o sol e logo viu que já estava de tarde. Saiu do palácio pela frente, sentindo o calor das chamas. Veio uma forte sensação de deja vù e ele gritou.

— Yté! Yté!

Então a viu encolhida e tossindo, do outro lado de um portal semiarruinado e em chamas. Correu até ela e se assustou quando uma coisa passou voando por cima dele.

O que foi aquilo?

Não pode ver bem, só notou estar em chamas e que um rastro de fumaça negra a seguiu. Estariam bombardeando a cidade com pedras em chamas? Não... Aquilo parecia ter asas... E então viu outro, mais além. Era um demônio alado em chamas.

— Yté!

Ela estava encolhida, assustada e chorando.

— Gal? — atirou-se em seus braços.

— São demônios e outras coisas também...

— Venha comigo, vamos procurar por um lugar seguro.

Gálius sentiu-se pelado, desarmado frente àquela ameaça. A ala esquerda do palácio estava sendo consumida pelas chamas. Logo o fogo chegaria à porção central, onde ficava o terraço, os jardins e a planta.

— Você ainda sabe montar? — Gálius lembrou-se que ela havia contado que trabalhou com cavalos quando criança.

— Suponho que sim.

— Ótimo! Venha.

Os dois cruzaram uma rua, mais pessoas fugiam, aqui e ali procurando proteção. Com tanto fogo se espalhando, muitos desciam na direção do mar, ou mesmo entravam nos canais que cruzavam a cidade. Eles viram algumas pessoas sendo atacadas por demônios ao longe. Foi uma cena horrível.

Não muito distante do Palácio Real, estava o Palácio de Areia. Ao lado dele, ficavam os estábulos dos oficiais. Os portões estavam abertos e Gálius torceu para ainda haver algum cavalo lá dentro. Mas antes de entrarem ali, um demônio pousou. Era magro, de pele escamosa e com uma mandíbula enorme cheia de dentes pontiagudos. Tinha olhos amarelos malignos e do alto do ombro e da cabeça, pequenas labaredas de fogo vivo dançavam.

Ele avançou na direção da dupla urrando. Gálius se colocou na frente de Yté, mas aquilo só serviria para ele ser morto antes dela. Então, uma forte luz como a de um relâmpago cegou Gálius por um momento. A luz forte de raios cruzando o ar e rodeando a criatura em dezenas de ramificações ainda ficou ainda impressa em sua visão. O demônio caiu fulminado e só então viu o oxivonu Lerifan com o cetro ainda fumegante vindo de dentro, montado em um cavalo. Ele empinou o cavalo para fazê-lo parar, assim que saiu pelos portões.

— Procure um lugar para se esconder rapaz! A guarda e os vonus vão cuidar disso.

— Obrigado, senhor.

— Só estou cumprindo meu dever.

Não acredito que Lerifan nos salvou!

Entrou com Yté nos estábulos e encontrou um cavalo em uma das baias mais ao fundo. Ele tinha aprendido a lidar com cavalos ajudando o pai. Viu que era um macho, marrom com manchas brancas.

— Vamos lá, garoto, hora de trabalhar. — Gálius selou o garanhão e o trouxe para fora da baia.

— Saia da cidade, veja se está tudo bem na minha casa nova, ou então, vá até o acampamento.

— Não, Gal, você vem comigo.

— Eu não posso, meu amor. Eu tenho que voltar ao palácio e ajudar o Rei-Deus.

— Ele não precisa de ajuda.

— Vai, não discuta!

Gálius ajudou Yté a subir no cavalo e disse — Vou dar uma espiada.

Ele viu que não tinha nenhum daqueles demônios por perto e a chamou — Vem!

Yté saiu com o cavalo na rua e logo impôs um ritmo de galope. Gálius seguiu pelos cantos, tentando andar sem chamar atenção. Ao virar a esquina, viu um guarda morto. Estava eviscerado e horrivelmente mutilado. Sua espada, suja com um sangue escuro, ainda estava apertada em sua mão direita. Gálius pegou a espada e seguiu correndo para contornar o palácio. As chamas avançavam, cada vez mais. Toda a frente estava tomada pelo fogo.

Se eu for rápido, conseguirei entrar pela entrada dos servos.

Enquanto corria por ali, viu outros prédios e casas em chamas. Não havia muitos daqueles demônios, mas deixavam estrago por onde passavam. Havia fumaça, mas encontrou o caminho desimpedido para dentro do palácio. Logo teve acesso às escadarias e subiu os quatro lances para chegar no terraço. Não havia ninguém por ali, todos fugiram, ou estavam escondidos em algum canto. Olhando lá para baixo, conseguiu ver uma mancha que vinha crescendo a partir da porção leste da cidade. Eram centenas de pessoas andando lentamente. Gálius olhou atentamente, e percebeu haver algo errada com elas. Algumas não tinham braços, outras eram desprovidas de carne. Eram como os mortos-vivos que viu pintados em um dos quadros da exposição.

Com aquele grupo, de centenas, talvez milhares, Gálius viu uma figura assustadora. Uma espécie de monstro enorme, com a altura de dois ou três homens. Um demônio musculoso e sem asas. Ele lançava fagulhas de fogo explosiva de suas mãos. Uma delas atingiu a lateral de um sobrado derrubando-o com um estrondo que ecoou até ali.

Gálius correu para a estufa e encontrou a porta aberta.

— O dia chegou, Gálius. — disse o Rei-Deus.

— O que podemos fazer? — Gálius viu que Tleos estava colhendo folhas da árvore.

— Os frutos proporcionam visões, mas o verdadeiro poder da árvore vem de suas folhas.

Ele tinha uma chaleira sobre uma mesinha com água fervendo. Lançou ali dentro algumas folhas.

— O sumo concentrado da árvore é uma fonte fortíssima de magia. Eu espero que seja suficiente para expulsar esses malditos.

— Eles vão chegar aqui logo.

— É... E quanto a sua visão?

— Consegui me lembrar quem era Tímices. E também, quem eu fui. Aquela pessoa era... Digo, eu fui Lex, o seu filho.

O Rei-Deus sorriu. — Eu já sabia. Eu percebi algumas semelhanças. Eu estava relutando em acreditar, então, antes de você comer o fruto, mais cedo, eu tive certeza.

— Me desculpe... Eu suponho que eu devia ter escutado o senhor, não devia ter partido para a guerra. Acabei encontrando a morte.

— Não tem problema, não é culpa sua. Cada vida é diferente e traz novos aprendizados, novas escolhas. Você tem razão em dizer que não é mais aquela pessoa. Não é de fato, apenas em parte.

Havia algumas xícaras ali. E o Rei-Deus serviu duas delas.

— Beba isto, vai ajudar a fixar o efeito de magia que vou fazer sobre o seu corpo.

Enquanto Gálius bebia o chá quente e amargo, o Rei-Deus tomou sua própria xícara. Colocou a xícara na mesa e colocou as mãos nos ombros de Gálius.

— Eu te concedo força e resistência.

Gálius sentiu-se quente e começou a transpirar muito. Olhou para seus braços e estavam vermelhos, como se tivesse tomado sol por um dia inteiro.

— Agora, eu tenho um trabalho para você. Quero que leve a planta daqui e a proteja, a todo custo. Ela não deve cair nas mãos dos demônios.

— Mas como?

— Tente levantar o vaso.

A planta não chegava a ser muito grande, mas com vaso e terra certamente pesava mais que duas pessoas. Gálius pegou o vaso no centro do canteiro e puxou-o para cima. Fez isso com certa facilidade, como se estivesse carregando apenas uns três tijolos.

— Ótimo. Procure um lugar seguro, agora eu vou enfrentá-los.

— Espere! — Gálius baixou o vaso novamente e avançou até o Rei-Deus, envolvendo-o num abraço.

— Muito obrigado! Muito obrigado por tudo!

— Eu que agradeço, filho. — disse o Rei-Deus contendo as lágrimas. Aquele abraço durou apenas uns instantes e eles se separaram assim que uma explosão soou bem perto e sentiram o chão tremer um pouco.

— Agora vá! É hora de enfrentá-los.

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