86 - O responsável
Gálius chegou em casa e logo soube que algo estava errada. A porta estava quebrada e lá dentro, viu móveis fora do lugar, coisas derrubadas no chão. Sentiu o coração acelerar e entrou apressado. Teve um terrível pressentimento. Subiu as escadas e foi até a torre. A caixa com a espada de seu pai estava sobre a mesa, aberta. Alguém a roubou? Ou será que o pai a levou, ontem?
Ele desceu e foi até a cozinha. Escutou o zumbido de moscas e sentiu um cheiro forte de sangue. Logo viu a cabeça de seu cachorro, Pãozinho, cortada e sobre a mesa. Havia muitas moscas se servindo. Sangue já coagulado espalhado no tampo da mesa e no chão.
— Pãozinho! — Gálius deixou escapar chorando.
Havia um papel, manchado de sangue e a mensagem nele dizia.
"Estou com seu irmão e com seu pai. Se contar alguma coisa, a próxima coisa que vai receber é a cabeça deles. Venha me encontrar sozinho no quadrado vermelho, e talvez, eu os deixe viver. Não vá ao palácio, ou a guarda. Estamos te observando. Se você vacilar... Eles vão pagar!"
Não foi o Lerifan! Foi o Rigo! Ele atacou o acampamento dos silfos para me atingir! E ainda matou o Pãozinho!
Gálius gritou. Gritou e gritou! Estava furioso. Começou a derrubar e quebrar tudo o que havia na sua frente.
Eu devia tê-lo matado! Foi burrice deixá-lo vivo! É tudo culpa minha. Todas aquelas mortes... Agora, também, as vidas de meu pai e do Gorum ameaçadas! Kalbin está morto. Meu pai capturado. Quem poderia me ajudar? Lerifan? Não... A esta altura, o Rei-Deus deve estar o questionando a respeito da morte de Yoltesh. Não posso arriscar a vida do meu pai... Eu terei de ir até lá e enfrentá-lo. Não há escapatória!
— Maldito! Maldito Rigo!
Gálius andou de um lado para o outro na cozinha. Tinha que controlar a raiva e pensar. Lutar não era seu forte. Tinha que pensar.
— Aquele maluco vai querer me enfrentar no quadrado mais uma vez... — Gálius disse a si mesmo.
— Sim, é isso mesmo... — ele pensava em voz alta. Estava a beira de perder a razão. Ficou na cozinha pensando por mais um tempo até que saiu apressado em direção ao estabelecimento de Rigo.
Seu coração zunia no peito. As ondas de ira pulsavam contra sua cabeça.
Vou esganar o Rigo! Cortá-lo em pedaços!
Quando chegou à esquina do estabelecimento, percebeu que estava sendo seguido.
É um daqueles capangas do Rigo.
Vestia roupas escuras e dava para ver que tinha uma espada curta presa à sua cintura. Gálius fingiu não reparar nele. Ele respirou fundo como seu pai havia ensinado e procurou se acalmar enquanto se aproximava da porta dos fundos.
Bateu na porta e outro capanga abriu. Era um fortão e careca. Estava com os olhos fundos, expressão cansada no rosto e uma espada curta em punho.
— Entra... O chefe tá te esperando.
Escutou o outro cara chegando atrás dele.
— Ele falou com alguém? — perguntou o careca.
— Não, veio direto para cá...
— Bom...
Gálius desceu as escadas mais escuras que antes. Havia apenas uma chama de velas mais adiante iluminando o caminho. No meio da tarde era um horário de pouco movimento na taverna, acima. Mas escutou o som distante de alguma música por lá. Aquilo certamente iria mascarar qualquer gritaria vinda lá de baixo.
Quando chegou ao local do quadrado vermelho, viu seu pai e Gorum amarrados a cadeiras e amordaçados, na pequena arquibancada. A iluminação não era forte, mas ele percebeu que uma das pernas do pai estava enfaixada e manchada de sangue.
Rigo estava lá embaixo, usando apenas uma tanga. Seu corpo untado com óleo brilhava refletindo as chamas vermelhas das duas piras de fogo. Gálius tinha atenção para o passo dos capangas que vinham atrás de si. No salão de lutas, viu que outro capanga estava perto de seus familiares, com uma espada curta em mãos. Além desse, mais dois homens estavam sentados do outro lado. Gálius reparou também que havia alguns arcos e sacos de flecha encostados em uma das paredes.
— Gálius, seu zeno nojento! Finalmente terei minha desforra, minha vingança!
— Rigo! Como você pode matar centenas de inocentes!
— Aquelas porras de silfos tem que morrer mesmo, todos eles! Em uma coisa nós concordamos, não é, Gálius? O exivonu Lerifan é mesmo o maioral! Pensa bem? Só uma cara de visão para tirar aqueles merdas daqui da nossa cidade...
— Você vai pagar por isso, desgraçado!
— Não vou nada... Só vocês três sabem o que fizemos. E nenhum de vocês vai sair daqui com vida.
— Já posso matar eles, chefe? — perguntou o capanga que estava perto de Gorum e Kyle.
— Não, seu merda! Eu quero que eles vejam tudo! Só quando eu falar...
O capanga respondeu com um muxoxo de decepção.
— Sabe Gálius, eu podia bem matar todos vocês, certamente seria mais conveniente. Mas qual a graça disso tudo, né? Então é o seguinte, tenho uma proposta para você. Você e eu vamos pelejar mais uma vez nesse quadrado. E se você me vencer, eu deixo vocês três viverem e me entrego para as autoridades.
— E quanto a nós, chefe? — perguntou o careca, preocupado.
— Vocês? Olha só: vocês pegam todo o dinheiro daqui da casa, pegam uma porra dum barco e saem fora da cidade pra sempre. Que tal isso?
— Não chefe, agente...
— Cala a boca, porra! Eu que mando aqui! Vocês obedecem, tá ouvindo?
Gálius olhou para o careca e viu o jeito que ele ficou olhando para o colega. Eles não queriam muito aquilo.
— Desculpa chefe. Mas você vai ganhar dele, né? — o careca encostou a espada nas costas de Gálius — Anda!
Gálius obedeceu. Foi descendo os degraus altos que serviam como arquibancada. Olhou nos olhos do pai e depois do irmão. Gorum estava chorando, mas Kyle tinha um olhar firme e de confiança, quase como se estivesse sorrindo. Gálius se virou para descer a escadinha vertical que levava ao quadrado vermelho, lá em baixo. O capanga com a espada, perto demais dele e então decidiu descer. Os capangas se sentaram para assistir, dava para notar que estavam todos cansados e impacientes devido a ficarem acordados durante a noite e madrugada.
— Tiro a camisa? — Gálius apontou para os farrapos chamuscados que vestia soltos por cima das calças.
— Você conhece as regras — retrucou Rigo.
Gálius levou as duas mãos cruzando-as sobre o ventre, como quem vai puxar a camisa de uma vez por cima da cabeça. Puxou duas coisas de dentro das laterais das calças e usou os panos frouxos da camisa para disfarçar. Agarrou o tecido solto com a ponta dos dedos e puxou a camisa para cima. Inspirou se concentrando e expirou. Quanto terminou de tirar, tinha em mãos duas facas pequenas e pontudas de cozinha. Atirou uma delas contra o capanga que estava ao lado de seu pai. A faca afundou na garganta dele e ele largou a espada para levar a mão aos ferimentos.
— Desgraçado! — Rigo gritou e correu na direção dele.
Gálius viu um dos capangas que estavam perto dos arcos se levantar para ir pegá-los, trocou a faca de mão e jogou nele, atingindo-o na perna. Ele gritou e tropeçou, rolando dois degraus para baixo. Kyle começou a balançar sua cadeira vigorosamente e a tombou de lado.
Rigo chegou até Gálius e tentou socá-lo com tudo. Gálius se esquivou, mas foi impactado pelo encontrão de Rigo. Rigo comprimiu Gálius contra a parede, fora do quadrado. Gálius deu uma joelhada nos rins de Rigo e o afastou para correr até o outro lado do buraco. Kyle se esforçava para fazer sua cadeira girar para o lado na direção do degrau. Após soltar um urro, conseguiu fazer a cadeira rolar. Ela quicou no primeiro, segundo e por fim, caiu no buraco se partindo. A queda foi dolorida, mas agora ele estava perto de conseguir se desvencilhar das cordas.
Rigo seguiu Gálius e deu nele uma rasteira pelas costas. Gálius caiu girando e terminou de rolar perto de onde seu pai estava caído. Rigo chegou junto chutando-o pelo lado com violência, por três vezes seguidas. O careca e o outro capanga começaram a descer a escadinha para ir ajudar o chefe lá embaixo. Já o outro, passou por cima do colega e apanhou para si um dos arcos. Em seguida, apanharia o saco com flechas, mais ao lado.
Gálius segurou o pé de Rigo quando o quarto chute veio para cima e puxou-o de lado, derrubando-o no chão. Aproveitou o pouco tempo que tinha e ajudou o pai a se desvencilhar das cordas. Kyle conseguiu ficar de pé, mas mancava. Pegou uma perna da cadeira que havia se quebrado para se defender. Isso foi bem a tempo de usá-la para bloquear o ataque desajeitado da espada do careca. Kyle afastou o golpe e em seguida estocou-o com a madeira bem no meio das pernas.
Ao mesmo tempo, Rigo ficou de pé e partiu furioso para cima de Gálius. Desta vez, acertou um soco no rosto. Gálius recuou atordoado.
— Maldito trapaceiro! Vou acabar com você! — Rigo emendou um segundo soco em Gálius e o fez recuar na direção da pira.
Gálius ensaiou um contragolpe, mas Rigo se desviou com facilidade. Então, ouviu-se um zunir de corda de arco e uma flecha que passou ao lado da cabeça de Rigo, fazendo seu ouvido zumbir e errou Gálius, mais adiante, por muito pouco. Finalmente a flecha atingiu a parede, perto da pira.
Rigo virou-se para trás e gritou — Está tentando me matar, imbecil?
Ao mesmo tempo, Kyle acertou a madeira com força na mão do careca que derrubou a espada. Em seguida, quebrou a mesma com um golpe violento contra o queixo do oponente. O careca caiu, mas o outro já vinha com tudo para cima de Kyle e baixou a espada para atingi-lo. Kyle se esquivou rolando para o lado de modo a pegar a espada derrubada pelo primeiro oponente. Mesmo com a perna ferida, estava em vantagem contra aquele capanga que mal sabia usar uma espada. As espadas dos dois se cruzaram uma vez e em seguida, o lacorês afundou a ponta da lâmina no tórax do oponente.
O sujeito do arco e flecha, pegou mais uma flecha e a preparou para atirar em Kyle. Ele viu o homem tremendo enquanto encaixava a flecha na corda do arco. Kyle então puxou a espada acima da cabeça com as duas mãos e atirou-a girando na direção dele com toda força. A lâmina atravessou o abdome do homem que caiu de lado deixando o arco cair.
Gálius tinha a visão turva, desde que tomou o primeiro soco no nariz. Sangue escorria pela boca abaixo, mas ainda conseguia ver bem a posição de Rigo. Então, quando o oponente atacou novamente, desviou-se e agarrou-o pela cintura. Por um momento, estavam deixando a briga e retornando ao domínio da peleja. Gálius urrou fazendo força para atirar Rigo por cima de si. O oponente saiu do chão e virou caindo de cabeça e de ombros na areia. A pancada foi forte e Rigo ficou zonzo. Gálius chutou-o duas vezes na cabeça e depois o arrastou para fora do quadrado.
— Desgraçado! Eu te disse que te mataria da próxima vez!
Rigo estava zonzo no chão. O rosto ensanguentado. Faltavam alguns dentes na frente da boca. Gálius foi para o outro lado e empurrou o pedestal da pira de fogo fazendo-a tombar sobre rigo.
Rigo gritou em agonia. As chamas e brasas agora cobrindo parte de seu corpo.
— Foi assim que os silfos morreram! Queimados! É assim que você vai morrer, seu miserável!
O último capanga, com a perna ferida pela faca mancava para sair do salão. Ele tinha a espada em punho, mas tremia. Kyle saiu do buraco e foi em seu encalço.
— Por favor, eu me rendo. Eu não queria fazer nada daquilo... Eu só estava cumprindo ordens.
— Largue a espada — Kyle ordenou e o rapaz trêmulo, obedeceu.
Lá embaixo, Rigo soltava seus últimos gemidos de agonia. Gálius encarava-o enquanto morria. Não foi capaz de sentir nenhuma piedade. Só conseguia pensar em todos os silfos que morreram queimados naquela madrugada.
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