82 - Destino cruel

Uma vez por semana, Gálius e o pai saíam da cidade para um jantar em família na nova casa em Várzea Alta. Como ficava tarde para retornar à casa na cidade, dormiam por lá. A irmã mais velha e o cunhado vinham sempre. Como ela era muito magra, já se via uma sugestão da barriga crescendo.

Ainda que a ideia de ser tio animasse Gálius, talvez não pudesse haver um momento pior para tal. Depois da última visita ao Rei-Deus, os sonhos de Gálius pareciam uma nova janela para suas experiências de vidas anteriores. Mesmo acordado, ele podia até mesmo ter alguns vislumbres de locais, pessoas e situações. Essas visões vinham a qualquer momento e o deixavam com um ar de distração.

Depois que os irmãos menores foram dormir, Gálius ainda ficou acordado conversando com os pais sobre os tempos de juventude deles e muitas lutas que tiveram. A mãe falou sobre seu pai. O avô também se chamava Gálius. Era um comerciante muito bem-sucedido. Já Gorum, ganhara o nome em homenagem ao pai de criação de Kyle. Ele morrera quase idoso, mas ainda combatendo. Melgosh tinha um nome de um silfo, pai da amiga deles, uma silfa chamada Mishtra. Eles passaram muitos meses morando na casa do pai de Mishtra e desenvolveram muita afeição por ele.

Gálius também ouviu algumas histórias sobre o avô paterno, Armand, que fora um herói de guerra em Lacoresh. Uma dezenas de outros personagens estavam nas histórias dos pais, como o silfo Modevarsh, que salvara a vida de Kyle quando muito jovem, em Lacoresh. O capitão dacsiniano An Lepard e é claro, o grande amigo de seu pai, Archibald DeReifos.

Em determinado momento Kiorina bocejou e disse — Eu vou dormir. Amanhã tenho um trabalho cedo. — levantou-se, deu um beijo na testa de Gálius e uma bitoca em Kyle. — Não fiquem aí até muito tarde.

Kyle e Gálius continuaram conversando até que Gálius contou para o pai sobre as visões que tivera e de suas vidas passadas.

— Sim, filho, essas coisas são reais. Eu também tive tais visões. Sabe, antes de eu perceber que amava sua mãe, eu fiquei com uma pessoa no santuário de Banzanac. Ela se chamava Lila, mas em sua vida passada, seu nome era Lilástrata. Nós formos casados e um elo continuou nos unindo, mesmo depois de muitas existências.

— Quando foi essa vida, consegue se lembrar?

— São memórias e visões muito nebulosas. Mas depois de muito pensar no que vi, acredito que tudo aconteceu há muito, muito tempo. Mesmo antes da lendária grande guerra em que os povos se uniram para combater a invasão de demônios.

— Pelo que o Rei-Deus me mostrou, essas criaturas agora estão de volta. Acredito que sua terra natal, Lacoresh, esteja em perigo...

— Sem dúvida está, filho. Quanto eu tive as visões de muitos futuros através do Oráculo de Shimitsu, eu vi muitos futuros onde os demônios ressurgiriam e destruiriam tudo. O futuro que eu escolhi, aqui em Tleos com a sua mãe, com a chance de ter uma família, considerava a existência dos demônios. Na verdade, nenhum futuro que vi era de paz e sem confronto com os demônios. Esse era um destino inevitável.

— Assim como o incêndio de Tleos?

— Sim, filho. Infelizmente agora se aproxima um período de conflitos. Temo por nossa família. Também temo por Tleos e meu antigo lar, Lacoresh. Eu já não possuo o vigor e disposição para lutar que tinha em minha juventude, mas lutarei para defender nossa família. Espero que você, Gorum e os mais novos também possam ajudar.

— Eu vi a guerra pai. Estive numa cidade dos silfos a beira-mar que montou uma frota marítima para guerrear contra os demônios. Fomos atacados por milhares de demônios e meu antigo eu quase morreu.

— Deve ter sido terrível.

— Sim, pareceu ser, mas, ao mesmo tempo, a recordação não era tão aterradora. Fiquei pensando, sabe, sobre essa coisa de muitas vidas. Mesmo se nós todos morrermos talvez nos reencontremos no futuro, assim como você reencontrou aquela sua antiga esposa. O Rei-Deus acredita que esses laços fazem as pessoas se reencontrarem, seja por motivo de ódio ou de amor.

— Sim, tem razão. — disse Kyle olhando para o alto e se recordando de seu breve reencontro com Lilástrata. — Ela me disse que nos mantivemos ligados por algo que ela chamou de Elos de Coração.

— O Rei-Deus usou o termo elos também. Eu acredito que eu já estive ligado a ele no passado. Ele disse também que não foi por acaso que o senhor decidiu vir morar em Tleos. Pensa que talvez pudesse ter um elo com ele?

— Talvez sim, pelo que você me contou, ele também veio da antiga cidade dos Hölmos, o lugar que chamei ao ver em minhas visões de Cidade Branca. Talvez seja por isso que ele tenha aceitado eu e sua mãe, quando aqui chegamos, apenas após olhar para nós, por alguns instantes.

Foi a vez de Gálius bocejar. Conversar sobre tudo aquilo era muito excitante, mas o cansaço batia forte. Era bem tarde. Kyle bocejou imitando o filho por reflexo.

— Certo filho, melhor dormir agora. Amanhã, um novo dia nos espera.

Kyle fez um afago nos cabelos de Gálius e foi para seu quarto levando uma pequena chama no seu castiçal.

Gálius entrou no quarto cheio de camas e procurou um espaço para si. Notou que para variar, Gorum não retornara.

Ele nem deve voltar. Só quer saber de ficar com a Beluna. Não veio nem mesmo para a reunião de família. Não vai aprender nunca! Mesmo depois do que aconteceu já está novamente enfeitiçado por ela.

Apagou sua vela, deitou-se e dormiu logo. Teve sonhos agitados e, muitas horas depois, acordou suado. Ainda não era dia, mas uma luz avermelhada penetrava no quarto pelas frestas da janela. Gálius se levantou rápido e com o coração acelerado, chegou perto da janela para observar. Ele viu chamas ao longe, não na direção da cidade. Correu direto para o quarto dos pais e abriu a porta.

— Mãe, pai! Um incêndio!

Kiorina despertou rapidamente e com um gesto, fez a janela se abrir, mesmo a distância. A janela revelou uma vermelhidão pintando o escuro da madrugada. Ela vestiu seu manto por cima da roupa de dormir e, em seguida, amarrou a faixa que usava na cintura. Kyle ainda estava grogue acordando.

— Vem, amor, rápido! Vamos ver o que é.

Os três saíram da casa. Devido a todo barulho, Melgosh também tinha acordado e chegou em seguida.

— O que houve, mãe? — Melgosh perguntou assustado.

Gálius apontou para a colina. Os contornos podiam ser vistos nitidamente e lá de trás, vinha uma intensa luz vermelha. — Fogo, no acampamento dos silfos!

— Gálius, Kyle, fiquem prontos! Nós vamos para lá, assim que eu conjurar o nosso transporte!

Gálius correu para pegar seus sapatos e Kyle terminou de vestir sua roupa. Melgosh acendera um lampião e iluminava a entrada da casa. Olhava impressionado para o que sua mãe estava fazendo. Fagulhas de luz mágica seguiam os movimentos das mãos de Kiorina enquanto ela pronunciava em voz alta uma série de palavras incompreensíveis.

— O que ela está fazendo, pai? — indagou Melgosh.

— Quieto filho, apenas espere.

Uma forte ventania atingiu a casa e o jardim. Tudo balançava e janelas batiam. Os outros filhos foram acordando, assustados. Gálius tentava tranquilizá-los.

— Calma, calma... É só a mamãe fazendo uma mágica forte no jardim. Fiquem aqui dentro e não saiam.

— Mamãe fazendo uma magia forte? — os Ector e Dora disseram e uníssono. — Sai da frente, mano! — e saíram apressados para ver o que acontecia lá fora.

Gálius terminou de se vestir e saiu apressado.

Um ser grande e de aparência longa e sinuosa pousou um tanto adiante, além do jardim, na direção da estrada.

— Isso é aquela coisa? — indagou Kyle, lembrando-se de uma ocasião em que Kiorina tinha convocado uma serpente de vento.

— É sim, vamos subir, eu você e Gálius.

— Mas eu quero ir também, mãe! — pediu Ector.

— Não, pode ser perigoso. Vocês três ficam, fechem as portas e janelas e não abram para ninguém.

Gálius notou que seu pai tinha uma espada presa à bainha. Seria a espada mágica? Não dava para ver direito com pouca luz...

— Venham! — Kiorina chamou.

Gálius se aproximou da criatura e viu apenas os contornos escuros refletidos com um pouco da luz vermelha do incêndio além dos morros. Era uma coisa grande, escamosa no topo e peluda nas laterais.

— Venerável serpente do vento, ajude-nos! — Kiorina falou assobiado no idioma sussurrado dos elementais do ar. — Melgosh ficou olhando, assustando e sem entender nada.

— É só montar, assim — mostrou Kiorina.

Kyle subiu em seguida lembrando-se de quando andou numa daquelas criaturas. Deu a mão para Gálius e disse — Suba, filho!

— Segurem-se firme! — disse Kiorina e em seguida, voltou a assobiar e sussurrar para a criatura.

Como num estalo de um chicote, a criatura saltou do chão atingindo altas altitudes em poucos instantes. Kyle e Gálius gritaram enquanto Kiorina gargalhou com alegria. Demorou um pouco para entender o que estava acontecendo, mas logo, Gálius percebeu que estavam voando e muito alto. Viu o lampião de Melgosh iluminando a entrada e o jardim de sua casa agora já pequenos lá embaixo e olhando para o outro lado, viu as altas labaredas de fogo que subiam ao céu na direção do acampamento dos silfos.

A serpente seguia os comandos de Kiorina e voou rapidamente na direção do acampamento. Havia muita confusão no local, silfos se espalhavam, fugindo da chamas que consumiam o enorme acampamento ainda se alastrando. Eles deram uma volta pelo alto, procurando pela causa do incêndio.

— Não vejo nada — gritou Kiorina. — Nem demônios, nem exército.

Teria aquele incêndio ocorrido então devido a causas naturais?

— Vamos pousar — ela disse.

A serpente pousou perto do acampamento e os três desceram.

Gálius pôs-se a gritar — Kalbin! Maduja! Nashay!

Havia grande confusão. Um trio de silfos saiu do meio do incêndio com chamas em seus corpos. Kiorina convocou outra magia e extinguiu a chama deles, num instante. Eles choravam e gritavam, desesperados.

— Fiquem aqui ajudando os feridos — ela disse — eu vou entrar lá e enfrentar as chamas.

— Não mãe! É perigoso! — Gálius tentou dissuadi-la, mas ela o ignorou correndo para o inferno de chamas.

Kyle segurou o braço de Gálius — Deixa ela ir, filho. Ela dá conta!

Gálius acolheu alguns silfos feridos e ficou olhando, sem acreditar as chamas se descolando das barracas e alçando voo, como pássaros e borboletas de fogo. Aquele fogo que voava para cima, se extinguia antes de subir cinco metros.

— Muni! É você? — Maduja chegou perto de onde ele estava. Tinha uma feia queimadura no braço esquerdo e seus olhos pareciam bem vermelhos.

— Nós vimos o fogo e viemos ajudar.

— Já era Muni! Eles nos pegaram de jeito.

— Quem?

— Uns homens chegaram perto do acampamento e dispararam uma centena de flechas incendiárias. Alguns de nós tentaram impedi-los, mas foram todos abatidos. Foi um massacre, Muni! A porra dum massacre!

— Para onde eles foram? — indagou Kyle.

Maduja apontou uma direção.

— Fique aqui, filho. Eu vou investigar.

— Não pai!

— Não discuta. Eu sei me cuidar.

— Como vocês conseguiram chegar aqui tão rápido, Muni?

— Minha mãe usou uma magia. Vamos, ela está combatendo o incêndio, precisamos ajudar! Onde está a reserva de água?

— Por aqui — Maduja foi na frente.

Gálius observou as chamas e viu os contornos de sua mãe lá no meio de tudo.

Se o calor está tão forte aqui fora, como a mãe está conseguindo suportar?

Centenas de pássaros de fogo continuavam a subir fazendo o incêndio diminuir enquanto Kiorina avançava.

Gálius chegou no reservatório e com outros silfos foi enchendo potes de água que eram passados de mão em mão através de duas filas. Uma que levava a água e outra que trazia de volta os potes. Eles estavam trabalhando ali, contra a direção do vento e sem serem atingidos por muita fumaça. Foi um trabalho exaustivo, mas em menos de uma hora, todo o incêndio foi controlado e desapareceu. A esta altura, as primeiras luzes da alvorada já tingiam o horizonte com tons mais claros.

Gálius voltou a encontrar a mãe. Seus cabelos estavam desgrenhados, os olhos vermelhos e pele toda coberta por fuligem negra. Ela o abraçou e disse com a voz embargada.

— Que horor, filho! Eu nunca pensei que veria algo assim por aqui!

Gálius sabia bem do que ela estava falando. Muitos haviam morrido queimados, ou intoxicados pela fumaça, mesmo antes de acordar. Crianças, idosos...

Com as luzes do novo dia, a cada instante o horror foi sendo revelado. Centenas de mortos. Alguns deles, abatidos por flechas, nas proximidades do acampamento. Gálius estava desolado. Muitos de seus conhecidos e amigos estavam mortos, inclusive o líder dos silfos, Kalbin.

— Onde está seu pai, filho? — Kiorina indagou.

— Ele foi atrás dos bandidos.

— Que bandidos?

— Alguns homens vieram aqui a noite e atacaram com flechas incendiárias.

— Pelos deuses? Mas quem seria capaz de fazer uma coisa horrível assim?

Uma revolta grande tomou conta de Gálius.

Foi o Lerifan! Aquele maldito! E o Rei-Deus? Não é possível que alguém tão poderoso, capaz de ver o futuro, possa deixar algo assim acontecer! Como ele pode deixar que seu próprio subordinado ordenasse um ataque tão covarde? Se Lerifan merece morrer, o mesmo vale para o Rei-Deus!

Kiorina se assustou ao ver o ódio explodir nos olhos do filho.

— Calma filho... Não vá fazer nenhuma besteira.

— Pode deixar mãe... Eu não vou fazer nenhuma besteira. Vou só fazer justiça, isso sim!

— Filho, você não sabe quem fez isso ainda.

— Só pode ter sido o maldito Lerifan, mãe! Primeiro ele tira todos os silfos da cidade. Os reúne aqui, neste lugar ermo e seco. Não era suficiente humilhá-los, não é? Ele queria matar todos eles! Aquele maldito!

— Parece que ele é o principal suspeito, mas poderia não ser ele, pense. Ele tem inimigos. Inimigos que iram se beneficiar de sua queda.

— Está sugerindo que os vonu Maltar ou Beguino poderiam ter feito isso? Massacrar centenas apenas para obter um maldito título? Por que não quer enxergar que foi ele? Assim como ele matou o Yoltesh, queria matar todos os silfos. Eu sei disso!

— Eu não quero te perder, está me ouvindo. Ele vai te matar se você for atacá-lo de frente!

— Eu já devia tê-lo atacado bem antes, mas dei ouvidos a ponderações demais. Eu não vou...

— Filho, se você estiver certo, eu juro, eu acabo com ele, eu mesma. Mas me prometa que não vai fazer nada precipitado.

Gálius baixou a cabeça.

Não farei nenhuma promessa, mãe. Eu sei que não conseguirei cumprir.

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