80 - Lex

Gálius mantinha uma fagulha de consciência enquanto observava a vida daquela pessoa novamente. Aquela pessoa cuja mãe era uma elfa chamada Tímices. Aquela pessoa estava magoada com seu pai, que não concordava em participar da guerra, ajudar seus familiares e também os familiares de sua esposa.

Gálius observou o navio de seu tio, um elfo do mar, retornar à sua cidade natal em uma ilha. Lá houve uma grande festa, mas o tio manteve segredo sobre quem ele era, entre os seus, parecia se envergonhar do fato de ter um sobrinho mestiço.

Ali, chamavam aquela pessoa de Lex. Gálius entendeu que ele já fora Lex. Aquilo que estava vendo, era sua vida passada, tinha a sensação de que também já viverá outras vidas. Vidas que não conseguia ver bem, ou focalizar, em seu raciocínio. Ele as chamava de outras pessoas.

— Você é muito engraçado, sabia Lex? — uma elfa linda disse aquilo para ele. Eles tinham se conhecido naquela festa, e saíram para tomar ar numa ampla sacada. Dali podia ver centenas de luzes da cidade descendo morro abaixo até quase tocar as margens do porto bem abaixo deles.

Gálius olhou bem nos olhos dela que faiscavam. Lembrou-se da sensação de estar apaixonado. Ela era linda como Yté. Na verdade, tinha um olhar muito parecido com o da silfa.

— Não sei por que você achou isso engraçado — ele conseguiu responder, confuso. Ele até entenderia ser percebido como exótico, pois era um mestiço criado numa cidade em meio aos humanos, mas engraçado? O que a fazia rir tanto?

Lex desviou o olhar e disse.

— Estão discutindo a formação de um frota. Vai haver uma guerra, você não tem medo?

— Não sei, Lex, eu não sei usar armas, e não conheço nenhuma magia que poderia ser útil numa guerra. E essa guerra está acontecendo longe daqui, na terra dos humanos. Então, só tenho um pouco de medo de perder algum amigo, ou parente.

— Eu vou lutar! É a coisa certa a fazer.

— Então você além de engraçado, é corajoso. Gosto disso.

Ela se aproximou dele e o beijou. E foi ótimo. Só conseguiu ficar pensando no que teria feito para fazer uma mulher assim se interessar por ele.

— Lex! Lex? Onde está você, rapaz? — escutou a voz de seu tio lá dentro.

Eles pararam de se beijar um momento antes da chegada dele.

— Vamos Lex, temos que ir. — O tio notou que ele estava de mãos dadas com a elfa. — Bom, diga adeus e me encontre lá embaixo.

— Eu vou vê-la de novo?

— Claro, amanhã. Está ficando na Jóia Celeste?

— Sim.

E então se beijaram novamente antes de se despedirem. Era aquilo que muitos chamavam de amor à primeira vista.

Lex e sua namorada não tiveram muito tempo juntos, em menos de um mês, ele partiu no navio do tio, que agora integrava a frota de guerra do arquipélago. A guerra contra os demônios ainda estava em seus primeiros anos e muita coisa ruim ainda estava por vir. Coisas que Lex nunca teve a chance de ver.

A frota foi atacada por um enxame de demônios alados pouco após chegar à costa do continente. A experiência dolorosa fez a consciência de Gálius se afundar e dissolver-se. Não era mais um observador. Era aquela pessoa, integralmente, Lex, um marujo que lutava para defender sua própria vida e a vida de seus companheiros.

As coisas não iam bem, o convés do navio estava em chamas. Vários companheiros estavam mortos e dezenas de demônios os cercavam por todos os lados. Um dos magos explodiu um demônio ao seu lado, e ele conseguiu cortar, com sua espada curta, o pescoço de outro que estava sobre si, pronto para mordê-lo. O navio, desgovernado bateu numa rocha e se inclinou bruscamente. Lex rolou e sentiu o corpo envolvido pelas águas geladas.

Despertou sendo arrastado na areia grossa da praia por companheiros. Aquele cara era familiar. Se movia como alguém conhecido. O nome Yoltesh passou por sua mente, mas logo foi apagado. Se chamava Dujiir. Era um soldado de outra embarcação.

— Pensei que você estava morto, companheiro.

Lex estava zonzo. Cuspiu um pouco da areia grossa que estava em sua boca.

— O que aconteceu?

— Nossa frota sofreu sérios danos. Mais de vinte navios afundaram. Eram milhares daqueles malditos! Por Ectarlissè! Eu nunca imaginei que pudessem haver tantos!

Lex conseguiu ficar de pé. Mancava. Recebera um corte na coxa, mas mal o percebera durante o calor da batalha. Agora doía muito e tinha um aspecto horrível.

— Vamos — Dujiir apontou para o acampamento, além da praia e se ofereceu para apoiá-lo — é bom fazer um curativo nisso o quanto antes.

No acampamento, Lex procurou por seu tio, sem sucesso. Logo foi levado às barracas conjugadas onde jaziam centenas de feridos. Um elfo de olhos esbugalhados e cabelos desgrenhados com um cajado nas mãos logo apontou para a perna de Lex e disse.

— Nada muito sério! Melhor cauterizar de uma vez! — bateu o cajado no chão e da ponta dele um raio vermelho saiu indo direto para sua coxa. Aquilo doeu como o diabo e Lex gritou.

Gálius acordou gemendo e levando a mão na própria coxa. A impressão de dor intensa aos poucos se dissipou. Viu que estava na estufa. O Rei-Deus estava diante dele.

— E então? — parecia ansioso — Diga o que viu? Tudo que se lembra!

Aquelas experiências eram muito confusas. Ele começou a se lembrar do que vivenciou, de trás para frente. Contou sobre acordar ferido numa praia, sobre o acampamento cheio de feridos e sobre receber uma queimadura na coxa para fechar um corte grande que recebera.

— Mas quem era você?

— É muito confuso. Eu estava numa cidade. Cidade de elfos, suponho. Havia uma festa. Eu conheci uma garota.

— Qual o nome da cidade? O nome da garota?

Gálius não fazia ideia do nome da cidade. O nome Yté veio à sua mente, mas sabia que o nome não era aquele. Ela era muito parecida com Yté, mas diferia, ao mesmo tempo.

— Não consigo me lembrar.

— Pelo menos o seu nome?

— Acho que Alê? Leco? Exo? Lex?

— Lex? Era Lex? — os olhos do Rei-Deus brilharam lacrimosos.

— Sim, acredito que era isso, Lex.

O Rei-Deus levou uma das mãos à boca. E sussurrou — Será mesmo possível?

— O que foi, Majestade? O senhor está bem?

— Sim, estou. Eu... Bem, ainda é cedo para ter certeza de qualquer coisa. Mas se ainda estiver disposto, podemos continuar, em mais alguns dias.

— É claro. É como o senhor disse, eu vi coisas terríveis. Uma batalha contra demônios, posso ver ainda algumas imagens. Mas, ao mesmo tempo, coisas incríveis. Essas visões podem mesmo ser vidas de outras pessoas? Tive a impressão de ver muitas dessas pessoas, por alguns instantes.

— Sim, Gálius. O mais certo é que sejam experiências de suas vidas passadas.

— Eu acredito que sim, apesar da ideia parecer um pouco estranha, não consigo pensar em uma explicação mais adequada para o que vi e senti.

Gálius parou para refletir por um momento. Lembrou-se do que pensava, logo antes de comer o fruto. Tinha esperança de ver algo que ajudaria a cidade. Mas nada do que viu parecia ser útil. Aquilo fez retornar a angústia que sentia. Mas aquela elfa da sacada, aquela outra Yté fez Gálius sentir urgência em encontrá-la, contar sobre seus recentes encontros com o Rei-Deus.

— Com licença, majestade, mas preciso ir — Gálius levantou-se tomado por um sentido de urgência.

— O mandarei chamar.

— Obrigado!

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