8 - Destino dos seres

Gálius estava quieto na varanda de sua casa. Ele não conseguia tirar da cabeça a imagem do rosto de seu amigo. A pele vermelha e estourada, a boca aberta da qual saía fumaça. O cheiro horrível de carne queimada. Isso acontecera há três dias. Ele não disse nada a ninguém. Sentia ódio de Vonu Lerifan e de seu Rei-Deus.

— Filho, você não comeu quase nada — sua mãe sentou-se ao seu lado e colocou a mão em seu ombro.

— Não estava com fome... Só isso.

— O que é? — ela inclinou o rosto para tentar ver os olhos do filho, que estavam fixos no chão.

— Nada.

Gálius... — ela disse seu nome e a intonação implicava que ela sabia que algo estava errado.

— Como era em Kamanesh? Quero dizer... Como era o Rei-Deus de lá? — ele fugia do assunto.

Kiorina riu — Não tínhamos um.

— Não? — ele a encarou espantado.

Ela respondeu balançando a cabeça e investigando a dor escondida nos olhos do filho. Ela sabia. Era algo sério.

— Mas como? Quem governava?

— O rei, não era muito diferente do nosso. Ele só não tinha esse título de Rei-Deus. Bem, e também, não era imortal.

— E o que acontecia quando o rei morria?

— Um de seus filhos assumia o trono.

— E se ele não tivesse filhos?

— Um irmão, primo, ou parente próximo. Eles chamavam isso de linha de sucessão.

— Parece confuso.

— É — ela concordou.

— Então, lá vocês não tinham um Deus?

— Em Lacoresh acreditava-se em Deuses, mas eles não apareciam nunca.

— Como assim? Se não apareciam, como... eu não entendo.

— A Igreja ensinava a respeito dos Deuses. As pessoas deviam devoção a eles.

— E nos outros lugares... Xilia...

— Tchilla. Em nenhum outro lugar há um Rei-Deus como aqui temos. O importante é que ele é todo-poderoso aqui em Tleos e que nós devemos respeitar sua vontade.

A expressão de Gálius se fechou.

— Eu detesto o Rei-Deus — ele murmurou.

Kiorina, assustada, apertou o braço do filho com força — Não diga uma coisa dessas!

Ele a olhou com raiva e seus olhos se encheram de lágrimas.

— O que aconteceu, meu filho? Conte para mim.

Ele se desvencilhou dela e correu dali.

— Filho! Gálius!

Kiorina entrou na casa, perturbada. Viu o filho mais velho repousando na sala, como gostava de fazer após o almoço.

— Gorum, sabe o que aconteceu com Gálius?

Ele abriu os olhos preguiçosos e suspirou. — O namorado dele foi preso.

— Namorado?

Gorum encolheu os ombros. — Namorado, amigo, tanto faz. Um silfo chamado Yoltesh.

— Certo, conte mais.

— Gálius quase agrediu um Vonu quando o silfo foi preso. Ele disse que o Vonu estava se vingando dele, ou algo assim. Eu o salvei de si mesmo e o ingrato ainda ficou contra mim.

— Espera, me conta isso melhor, meu filho...

Gorum se irritou — Você devia fazer uma mágica para prender ele em casa, sabia? Ele vai acabar trazendo alguma desgraça para nossa família.

— Gorum! Pare com isso e me explique direito essa história.

— Ah mãe, não enche, por que você não pergunta isso para ele? Afinal, é a merda dele.

— Linguagem!

Gorum se levantou mal-humorado e saiu resmungando — Não posso nem descansar nessa casa.

Kiorina olhou para o alto preocupada. Não bastava todo o trabalho que Melgosh dava, agora Gálius também? Subiu as escadas para ir falar do assunto com Kyle.

***

Gálius correu pelas ruas de Tleos e, quando percebeu, estava chegando no gueto das orelhas. Passou pelos becos, cumprimentou alguns conhecidos, mas quando chegou na frente do barraco de Nashay, a mãe de Yoltesh, ficou ali paralisado.

— Muninediir? — a senhora apareceu na pequena janela.

Gálius cruzou os olhos com a mãe do amigo e ela soube. Nashay levou as mãos na boca e soluçou, chorando. Ele entrou e consolou-a com um abraço. Ambos choraram muito.

Ela o conduziu para modesta cozinha. O pequeno fogão de metal estava aceso. Colocou uma água para ferver. Gálius se sentou num dos bancos que ficavam ao lado de uma mesa torta e carcomida. Ela colocou as folhas na chaleira, ainda soluçando e chorando e esperou.

— É tudo culpa minha, Nashay. Tudo culpa minha... Me perdoe. — Gálius disse em sílfico com a voz embargada.

— Tome, Muninediir, beba um pouco — a velha serviu o chá fumegante numa tigela de madeira.

— A morte faz parte da vida. Todos nós um dia vamos morrer.

— Todos menos o maldito Rei-Deus.

— Ah! Não fale assim dele! Ele nos protege a todos nós.

— Porra! Será que mesmo vocês não enxergam que ele é um grande filho da puta?

Ela sorveu um tanto do chá de sua própria tigela e olhou-o de lado.

— Será mesmo?

— Seu filho morreu, Nashay! Foi assassinado pelo maldito Vonu Lerifan. Como você pode?

— Os vonus são homens, e os homens erram, Muninediir.

— Não segundo Lerifan. Ele disse que estava executando a vontade do Rei-Deus.

— Mas ele deve estar enganado... Você é um rapaz inteligente, está com ódio no coração agora, mas vai conseguir enxergar.

Gálius ficou olhando para a velha Nashay chocado. Como ela podia falar algo assim? Estar tão calma.

— Você não está com raiva deles?

— Sentir raiva de alguém não vai me ajudar em nada e também não vai trazer meu Yol de volta.

Gálius balançava a cabeça, não concebia aceitar algo assim.

— Não me olhe deste jeito, eu vivi muito mais tempo que você. Os séculos dão outra perspectiva sobre as coisas.

— Eu não consigo, Nashay! Eu não consigo olhar para uma injustiça dessas e deixar para lá...

— Não estou dizendo para você deixar nada para lá. Falo sobre os sentimentos, o que está em seu coração. O ódio corrói, fique avisado.

— Eu jurei, jurei que me vingaria de Lerifan.

— Muito bem, apenas tome cuidado para que sua vingança não traga consequências para sua família.

O rapaz olhou para a tigela de chá, pensativo.

— A senhora não vê? Não é apenas a morte de Yol que é uma injustiça. A vida de todos vocês... Os silfos são oprimidos e vivem em condições precárias. Você acha mesmo que essa organização social é justa? Uns vivendo em palácios e outros em barracos?

— O que o faz pensar que eu gostaria de viver num palácio, Muninediir?

Gálius olhava para ela perplexo, sem saber o que responder. — Sério? Você não gostaria de viver numa casa melhor? Que toda essa comunidade...

— Levoorê, você conhece essa palavra?

— Seria "Destino dos Seres" em nossa língua?

— Isso mesmo, Muninediir, realmente conhece bem nossa língua, mas sabe o real significado do "Levoorê"?

Gálius bebeu o resto do chá e suspirou aguardando pela resposta.

— O Levoorê é como curso de um rio e como o movimento das marés. O rio segue seu curso, pois seria impossível não seguir. Flui naturalmente do mais alto para o mais baixo. As marés, vão e vem, mostrando que as águas também obedecem aos ciclos rígidos da natureza. As águas obedecem. Existe uma ordem por trás de tudo que deve ser obedecida, quando lutamos, as más emoções surgem e nos carregam. 

"Nossa luta deixa de ser por um motivo, contra um indivíduo e passa ser uma luta contra tudo e contra todos. Muitos de nossa comunidade tem um entendimento profundo do que seja o Levoorê. Então, é um misto de escolha e aceitação que nos levou a morar aqui no gueto das orelhas. Os humanos que vivem em seus palácios fazem força para se agarrar no alto de montanhas, quando o natural seria fluir de lá para o mar. Nós não fazemos força. Eu não faço força. A deusa mãe, mostra isso através de suas criaturas. 

"Você já viu um ramo de grama fazendo força para crescer? Ou sentindo ódio por alguém que pisou em cima de si?

O queixo de Gálius caiu. Ele nunca poderia imaginar que uma senhora tão simples como ela pudesse ter tanta sabedoria. Ele teve uma compreensão parcial do que ela tinha a dizer, mas ainda assim, via no fundo de sua mente o olhar maligno de Lerifan, via e sentia o corpo quente ao toque de Yoltesh morto, fumegando. Nada que um conceito filosófico elevado pudesse apagar.

— Vá para casa e descanse. Volte aqui, sempre que precisar conversar. Não estou dizendo para esquecer a morte de Yol, ou para perdoar seu assassino. Aquiete seu coração. Quando puder enxergar isso tudo de uma forma que não seja através de um olhar de ódio, saberá o que fazer. O levoorê não é aceitação pura e simples de tudo. Isso levaria os seres à inanição. É saber pensar e agir sem estar tomado por maus sentimentos. 

"A comunidade do meu povo que decidiu se estabelecer aqui há muitas gerações, possuía uma compreensão boa sobre a doutrina do destino dos seres. Visitantes ocasionais que vieram de tempos em tempos, mostraram que os que muitos vivem lá fora, não conseguiram. Talvez, porque lhes falte a estabilidade e estrutura que o Rei-Deus nos dá.

Gálius se levantou e tocou a testa de Nashay com a sua. Ambos de olhos fechados.

— Obrigado pelas palavras sábias.

Finalmente, ele saiu dali sentindo-se confuso e ainda sem saber direito o que fazer.

Por que estou vivo? Qual é o meu propósito?

Ele tentava pensar como antes, mas a cada esquina ele via a face morta de Yoltesh. Em sua mente, ressoava a voz do Vonu Lerifan.

Esse silfozinho nojento e toda sua comunidade são uma chaga pulsando em plena cidade do Rei-Deus.

Gálius se imaginou contando a garganta de Lerifan com uma espada.

"Essa foi a vontade do Rei-Deus." ele diria isso após vê-lo sangrando e então, o veria morrer.

E diria — Providencie o descarte do corpo.

Mas o que estava pensando? Nem sequer havia aprendido a manejar uma espada, como seu irmão mais velho. Não tinha uma espada, exceto... Aquela que seu pai escondia na torre.

Sim, nada melhor que uma espada mágica para acabar com a vida daquele crápula.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top