79 - Como salvar Lacoresh

Era noite. Dormiam todos sobre peles no chão de uma das casinhas do vilarejo. Compartilhavam o cômodo com Zane e mais duas outras pessoas. Não estava nada fácil pegar no sono com mais de uma pessoa roncando ali. Além disso, Arifa sentia uma inquietação. Suas pernas balançavam, os dedos tamborilavam. Não dava para ficar deitada ali. Algo a chamava. Ela sentia um zumbido. Como se algo dissesse: "Levante-se. Venha. É importante."

Arifa levantou-se lentamente e saiu do quarto na ponta dos pés. A madeira do piso, mesmo irregular, ainda oferecia certo conforto ao toque. Rangia um pouco em alguns pontos, mas ela conseguiu chegar até a porta sem acordar ninguém. Ali nos degraus mais baixos do vão, estavam as botas e também capas penduradas. Seria sensato vestir algo antes de sair, mas Arifa saiu apenas com as roupas de baixo, calças curtas e um blusão cinzento. Lá fora estava gelado, mas ela tocou o medalhão sob o blusão e em instantes, sentiu o corpo aquecido por sutis chamas invisíveis e minúsculas.

Insetos, sapos e outros bichos noturnos preenchiam a noite com seus ruídos. Ao fundo, podia ouvir o vento balançando as copas altas das árvores da floresta de Shind, que ficava a pouca distância do vilarejo.

Olhou para o céu e ficou admirando o brilho amarelado da maior das luas, Teona, estava acompanhada de Lim, de um cinza-esverdeado. Esta não tinha sequer um quarto do tamanho de Teona. O azul profundo do céu salpicado de estrelas ficava ligeiramente mais claro até ficar roxo escuro perto da linha onde estavam as copas farfalhantes do início da floresta. Aquela inquietação aumentou.

Olhou ao redor e viu algo vindo em sua direção. Entrou em estado de alerta. Parecia uma sombra. Não era incomum que espectros vagassem naquelas imediações, então, notou que aquele espectro não volitava. Mancava de leve.

Isso é um zumbi?

"Não se preocupe, Lady Desbrin, não sou nenhum zumbi ou fantasma." Ariana escutou a voz diretamente em sua cabeça.

— Você é aquele...

"Sim, o próprio! E agora, tenho certeza de que estará pronta para acreditar em mim, mais do que da última vez. Afinal, vocês devem o salvamento de Whiteleaf a mim."

— O que você quer? — Arifa se encolheu, abraçando o corpo. Sentia algo sinistro vindo até ela. Ele podia ler sua mente, sentia isso. Era uma sensação assustadora.

"Não precisa ter medo, Lady Desbrin, eu não lhe desejo mal algum. É claro que confiar em alguém é coisa demais, mas peço que ao menos me escute".

— Certo... se puder...

— Tudo bem, eu posso falar e poupá-la da telepatia. — disse ele, tinha a voz um tanto arrastada, como a de uma pessoa que sofreu um acidente grave. — Só não posso poupá-la do som desagradável de minha voz.

— O que houve com você?

— Muita coisa, Lady Desbrin. Coisas demais... Mas por um capricho do destino, aqui estou, ainda caminhando por esta terra. E só agora, depois de tanto, percebo o tanto que já errei. Muito do que está acontecendo a Lacoresh, a todos vocês, é culpa minha, de certa forma. Se eu soubesse... Mas enfim, o passado, por enquanto, é passado. Mas o futuro... O futuro podemos mudar. Ainda há tempo de salvar Lacoresh.

— Você é o Barão Calisto, não é?

— Ah, esse título ridículo não me representa, mas pode sim, chamar-me de Calisto. Já fui essa pessoa. Mas por muitos anos, deixei de ser uma pessoa. Meu corpo foi tomado por um demônio, assim como aconteceu com seu namorado, o Rei Edwain.

Arifa teve vontade de dizer que Ed não era seu namorado, mas depois daquela tarde. Daquela experiência que teve junto ao monge Yaren... Não conseguia mais se esquivar de um elo forte que a unia a Edwain.

— Sabe, eu já tive uma namorada. Há muitos anos. Alguém que beijei naquele mesmo jardim em que você estava na noite de ontem.

— Como sabe disso?

— Me desculpe, não é por mal, mas é difícil para mim não ler certos pensamentos evidentes na mente dos outros.

— O que houve com sua namorada?

— Ela morreu. Foi assassinada. O maldito que fez isso, ainda vai me pagar um dia destes. Mas isso não importa. Ficou no passado. O que importa agora é salvar Lacoresh.

— Como podemos salvar o reino?

— Você vai convencer seu pai, Lady Desbrin, ou melhor, se possível, o próprio rei.

— Convencer de quê?

— Precisamos de navios. Uma boa quantidade deles. Ainda há um resto da frota lacoresa dos tempos de Maurícius. Ela precisa ser reparada e mobilizada.

— Salvar Lacoresh seria fugir? É isso que tem em mente?

— Não, nada disso. O que precisamos fazer é aumentar o poder de defesa de Lacoresh. A batalha do farol deu esperanças à capital, mas aquele poder ainda é insuficiente para conter o avanço das hordas.

— Então o quê? Um acordo com os silfos?

— A única coisa que os silfos vão fazer a proteger suas próprias cidades. Não é isso. Nós precisamos obter uma fonte de magia imensa. Capaz de produzir e manter uma cidade longe de qualquer tipo de ameaça.

— O que é esse poder? Onde poderemos encontrá-lo?

— Ah, sim. Com muito custo eu consegui a bússola. Esse objeto é a única coisa que poderá nos levar até lá. Meu inimigo, Necranxelfer, também está em busca desse poder. E se demorarmos demais, ele pode conseguir o poder, mesmo que não tenha a bússola.

— Necranxelfer? Eu estudei a respeito desse demônio.

— Sei que sim. Foi da mente dele que extraí a informação que poderá salvar Lacoresh. Foi com ele que aprendi sobre a bússola e sobre o poder...

— Afinal, que poder é esse? E onde está?

— É um poder muito superior àquele trazido para o farol de Lacoresh. E não está muito longe daqui... A poucos dias de navegação da capital. Mas o problema é que a única maneira de obter esse poder é tomando-o. E não vamos conseguir fazer isso sem uma frota e um sem um exército motivado.

— Acha mesmo que com tudo que está acontecendo o Rei vai reunir um exército, colocá-lo em navios e deixar a capital desguarnecida?

— Se ele quiser salvar o reino, sim, é o único jeito.

— Olha, Sr. Calisto, nem eu mesma estou convencida de tudo que acabou de me dizer. Não acredito que eu possa convencer ninguém enquanto não estiver convencida.

— Muito bem, apenas não demore demais para se convencer. Pode ser que veja sua cidade cair, parentes e amigos perecerem. E aí, será tarde demais...

— O Sr. saberia onde está o príncipe Kain?

— O Rei está precisando de conselhos, não é mesmo? Apenas diga a ele que sua busca é inútil.

— Por quê? Sabe de algo?

— Ah, sim, essa é uma daquelas coisas que aconteceram na minha vida. Ser abandonado pelo pai e depois, o desgraçado aparecer de novo, apenas para tentar matá-lo.

— Ele o encontrou? Tentou mesmo te matar?

— Ah, sim, ele tentou. Eu não pude retribuir. Ele era só um velho patético e amargurado. Pensava que eu sou uma ameaça para este mundo. Que ter me colocado nele era seu maior erro e constituía seu maior arrependimento.

— Deve ser difícil...

— Mas meu pai não sabia de toda minha história. Me julgou apenas como um discípulo sem vontade própria, eternamente destinado a servir as forças das trevas. É verdade que fui criado para cumprir um terrível destino, mas aqueles que me criaram, e pensaram que seria fácil me controlar estavam enganados. Me subestimaram.

— O que aconteceu com ele?

— O prendi. Tive que limpar sua mente também, caso contrário, seguiria tentando me matar a qualquer custo. Não o culpo totalmente por ver as coisas do jeito que ele via. Ele julgava que se me matasse, faria um favor ao mundo, mas estava errado sobre isso. Eu tenho muito para oferecer ao mundo. E o começo disso, será salvar Lacoresh das trevas. Fui criado para servir às trevas, mas lutei contra esse destino. Eu escolhi revidar.

— O Rei não vai gostar de saber disso...

— É... ele não gostaria mesmo. Sabe que já tive mais de uma oportunidade de matar Edwain e tomar para mim o Dragão Negro, mas escolhi não fazer isso. Eu também poderia simplesmente entrar em sua mente e convencê-la a confiar em mim, mandar que convença seu pai e o Rei que meu plano é a única salvação para Lacoresh, mas não é isso que eu quero ser. — Sua voz arrastada agora tornou-se embargada — Não é isso que ela gostaria que eu fosse.

— Quem era ela?

— Alena, a filha de Corélius IV. Foi a única pessoa que já me amou. Foi ela que me ajudou a despertar contra as trevas.

— Eu acredito que estou começando a te entender, Sr. Calisto. Ouvi histórias a seu respeito... Ouvi coisas boas e ruins, mais ruins que boas, na verdade.

— Se puder me dar mais uma oportunidade, tenho algo para te mostrar. Eu gostaria que você se convencesse, sem precisar ver nada disso. É desagradável, já vou avisando, mas pode bem ser necessário que veja com os próprios olhos.

— O que é? Não pode me contar?

— Se Necranxelfer obtiver o poder antes de nós, ele vai provocar uma guerra maior que a lendária guerra milenar. Ele se rebelou contra o líder dos demônios, Arcanael. Conseguiu subjugar o demônio mais poderoso que habita este mundo, Marlituk. Quer tomar este mundo, as regiões abissais e também o mundo dos elfos para si. Pelo que conheci dele, durante o tempo que ele usou o meu velho corpo, tem boas chances de ter êxito.

— Você não tem mais seu corpo?

— Estou tendo que me virar com este. É o segundo que utilizo desde que ele destruiu o meu, lutando contra Marlituk. O lado bom é que finalmente consegui um corpo capaz de operar o Jii, ainda que esteja um tanto danificado.

— Pelos Deuses!

— Sim, por falar neles, teremos que nos virar nessa guerra sem sua ajuda. Pois, não sobrou um só deus aqui nessa terra para nos ajudar. Os que não foram aprisionados por Arcanael nos abismos, fugiram daqui e estão no mundo dos elfos. Ainda assim, eles deixaram um pouco do poder deles para trás... É atrás disso que Necranxelfer está, se ele obtiver o que resta do poder dos deuses, poderá de fato tornar-se mais forte que Arcanael.

— Este Arcanael, já voltou ao nosso mundo?

— Não ainda, porém o Elo entre nosso mundo e os abismos se torna mais forte a cada dia. Meu antigo mestre, Thoudervon é o responsável por isso. O que estamos para ver acontecer é uma guerra entre duas facções de demônios, tendo como campo de combate, nosso próprio mundo, não vai ser algo bom para ninguém. Agora, mesmo sem a bússola, ele carrega consigo uma grande legião de mortos-vivos para encontrar a cidade protegida. Eu tenho certeza, que na base da tentativa e erro, ele não vai demorar a encontrá-la. Ele tem o poder para queimar tudo em seu caminho. A única hipótese de impedi-lo é chegar antes dele.

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