77 - Luz Divina
Ventava muito e gaiola balançou tanto que chegou a produzir náuseas em Arifa.
Eu nunca vou me acostumar com essa coisa!
Ela chegou zonza no alto e deu um pouco de trabalho para Josselyn e Kerdon a cambalear pela passarela.
— Pelos Deuses, Arifa! — Tome cuidado!
Parece que o trauma de quase cair no parapeito do terceiro andar na academia era uma parte de si da qual não conseguia se livrar. Seguiram pela trilha até o templo até que se depararam com Zane trabalhando na horta. Quase não o reconheceram vestindo um simples manto de acólito e com os cabelos raspados. Não apenas isso, mas estava mais corado do que nunca. Sua pele sempre fora muito pálida e olheiras fundas eram velhas companheiras. Estava livre da maldição e sem um dos braços. Era praticamente outra pessoa.
— Joss! Kerdon! Que bom ver vocês! — ele sorriu, e isso também era algo esquisito. Zane não era do tipo sorridente.
— Por Forlon, Zane! O que o Yaren fez contigo?
— Deixa de ser besta, Kerdon.
— Mas e aí? Já está melhor? Estamos a caminho de Kamanesh. É melhor aprontar suas coisas, vamos sair amanhã cedinho.
— Eu não vou. Eu decidi que vou ficar por aqui.
— Mas Zane, Kamanesh está muito mal, precisamos de toda a ajuda que pudermos encontrar.
— Já não vou poder lutar como antes.
— Mas ainda assim, você é um dos melhores magos que temos!
— Melhor aceitarem. Aquele Zane que vocês conheciam meio que morreu, sabe? Eu não quero mais nada com Kamanesh.
— Não fala assim. Precisamos de você lá! — insistiu Josselyn.
— Não, estou muito bem aqui... E tenho certeza que posso ser útil ao reino. Este lugar e as pessoas daqui também precisam ser protegidas, sabia?
Kerdon deu com os ombros. — Bom, acho que ao menos podemos comemorar a cura daquela maldição.
— Ah, sim, com toda certeza. Quando aquela coisa saiu de mim, eu já acordei me sentindo outra pessoa. Eu não me sentia bem, e nem descansado, há anos. Agora eu até consigo dormir sem ter pesadelos.
Josselyn abraçou o amigo — Estou feliz por você, Zane. Só preciso de um tempinho para aceitar que nossa turma terminou. Com o Ted e o Rulf mortos... E você ficando aqui... Isso significa que só me restou andar com esse bolha do Kerdon.
— Não precisa ofender! Hahaha — Kerdon caiu na gargalhada.
Arifa, ainda um pouco enjoada, ficou observando aqueles três.
No fundo, eles são até engraçados.
Zane notou ela ali afastada, apenas observando. Deu alguns passos em sua direção, curvou-se e tomou sua mão para beijá-la.
— Muito obrigado, milady. Me salvou da maldição e salvou minha vida. Se um dia precisar de mim, estarei sempre em débito.
— Por nada, eu... — Arifa sorriu, sem graça — Fico feliz de ter ajudado.
— Mas vamos chegando! — pisou na trilha e os chamou com um gesto de seu único braço. — Tenho certeza que o monge Yaren vai querer conversar com vocês.
Seguiram por uns poucos minutos até avistar o templo. A vila em torno do mesmo estava cada vez maior e mais bem cuidada. Frente a tanta coisa ruim que viram nos últimos tempos, a visão de um lugar pacífico e de aparência bucólica era certamente refrescante.
— Com licença, vou orar — Arifa deixou Kerdon, Josselyn e Zane conversando ali fora e entrou no templo.
Esse lugar é simples. Tão bonito... Quieto.
Diferente dos templos e igrejas de Kamanesh, aquele lugar inspirava em Arifa algum senso de devoção. A luz do sol vinha difusa a partir da abertura no centro e no alto. Havia pouca gente ali dentro e Arifa caminhou escutando os próprios passos ecoando no soalho de madeira. Parou na parte iluminada e ficou observando as próprias mãos, com vários hematomas e lesões recebidos nas lutas dos tempos recentes. A mão direita tremia. Vinha tremendo, cada vez mais, depois da pancada que levou no ombro direito. Quando ria, ou respirava fundo, ainda sentia as costelas doendo.
Estou tão cansada! Não aguento mais tantas lutas. Esses ataques não vão parar! Mas temos o dever de combater o mal. Será que esse pensamento é mesmo meu? Ou são pensamentos do Iovük? Mas que droga! Por que a Joss tinha que ficar com aquele seboso? Porque eu fui beijar o Ed?
Arifa olha para o alto. Parecia que envelhecera dez anos só nos últimos meses.
Yaren aproximou-se dela, mas ela não o ouviu. Ele tinha passos leves, ainda mais caminhando com os pés descalços. Ela se surpreendeu ao sentir o toque gentil de sua mão sobre a sua. Virou-se para vê-lo. Ele sorria, seu rosto emanava paz e bondade. Arifa sentiu um alívio de todo o peso que fazia seus ombros se contraírem como hastes de ferro.
— Venha comigo. Quem sabe posso ajudá-la um pouco...
Yaren a levou até uma das salinhas de oração. Havia um forte cheiro de incenso ali e ela se recordou da ocasião em que esteve ali, meses atrás.
Ela se sentou.
— Conte-me um pouco o que a aflige hoje?
Arifa respirou fundo e fez uma careta, ao sentir uma pontada de dor. E então falou sobre várias coisas que a preocupavam. Sobretudo o peso que sentia agora em seu peito e nas costas com a presença do medalhão. Era uma poder enorme e uma responsabilidade grande demais.
— Não perca as esperanças. Deus está nos amparando. A todos nós.
— Por que ele não afasta os demônios? Por que não faz nada?
— Seu modo de agir é no espírito. No íntimo de cada um.
— Desculpe, mas não consigo entender essas coisas. Não consigo aceitar...
— Pense num bebê, uma criança. Os pais de um filhinho vão sempre querer ajudá-lo, não concorda? Mas, por mais que queiram, por mais que amem, não podem fazer tudo por ele. Não podem mastigar a comida, extrair energia do alimento, não podem aprender a andar pelo filho. É tarefa do filho tropeçar, levantar, aprender com cada erro até conseguir andar sozinho. Os pais podem até apoiá-lo, mas não podem tudo. É o mesmo com Deus e nós, seus filhos. Ele tem que nos dar o espaço para fazer, nós mesmos, o que nos compete. E se não fosse assim, o que seríamos? Não seríamos nós mesmos, apenas partes de um ser maior, partes sem vontade própria, sem poder nada realizar. Para poder realizar algo é preciso fazer escolhas, aprender com elas. É assim que a vida é.
— É... A vida é mesmo cheia de sofrimento, isso sim. Suponho que se eu pudesse escolher, teria escolhido não nascer. Não existir. Será que ele não devia nos perguntar antes de nos fazer?
— E o que alguém que não é nada e ainda não existe poderia responder?
Arifa encolheu os ombros — Não faço ideia.
— Vamos. Sei que tudo está muito difícil, mas se procurar, sei que vai ver o lado bom das coisas. Não tem amigos, família? Pessoas com quem você se importa? Pessoas que se importam com você?
Arifa ficou refletindo sobre aquilo um pouco.
Acho que apenas duas pessoas se importam comigo, de verdade. Papai e o Ed. São os únicos que me amam de verdade. Apesar de todas as coisas ruins, certamente há algo de bom. Eu poderia dizer sim para a existência.
Talvez, qualquer um que exista seja alguém que sinta que há algo que faz sua existência valer a pena.
E então ela chorou mais uma vez, mas não devido à dor, aflição ou desespero, e sim, devido ao amor. Percebeu algo a mais.
Yaren também me ama. Está em seu olhar: paciência e sabedoria. O amor é uma coisa maravilhosa!
Tantas ideias se passaram em sua mente, toda aquela compreensão súbita e intuitiva a fez se sentir grande, quase flutuando.
Ela se levantou e abriu os braços para Yaren. Ele a acolheu em um abraço amoroso e chorou de alegria, junto com ela.
— Eu não sei explicar o que pensei, o que senti, mas obrigado, Monge Yaren. Você me ajudou a enxergar algo de bom em meio a tanta coisa ruim. Algo que vai me ajudar a dar os próximos passos.
Yaren sorriu para ela. — Ah, minha filha, fico muito feliz que tenha conseguido enxergar algo assim. É com certeza a luz de Deus recaindo sobre você. Ore, clame por Deus em sua vida e ele virá, mesmo nos momentos mais difíceis e sem esperança, a luz de Deus não se apaga, pois é eterna, e sempre brilha, acima de tudo, iluminando a todos. Basta se abrir para a luz de Deus, lembre-se disso.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top