76 - A nova casa

— Gálius, meu amigo!

Ele deu um passo para trás.

Eu mal o conheci e ele já me trata assim...Tão...

— Oi, Rimalbo.

— Você vai além de Várzea Alta hoje, não é mesmo?

— Sim, quem te contou?

— Ah, as pessoas não têm muito o que fazer, não é mesmo? Então elas falam...

Isso é estranho. Eu não comentei com ninguém. É... mas ontem, no escritório, pedi para me preparar um cavalo. Sim, é culpa da burocracia. Tive que registrar o destino o quando pretendia devolver o animal.

— Eu também pedi um cavalo. Já não era hora de ir para lá, respirar um ar puro, ver as pessoas, animais, os campos...

Gálius resignou-se e caminhou até os estábulos ouvindo Rimalbo falar e falar. Em pouco tempo, estavam montados e saindo da cidade. Escutar Rimalbo tagarelando era quase como uma meditação. Às vezes, o pensamento de Gálius ia longe e quando voltava, percebia que não sabia mais sobre qual assunto Rimalbo estava falando.

— Então, ficaram sabendo que a esposa dele havia cometido adultério. Mas quem podia culpá-la? Afinal, um velho como ele, se casar com uma moça tão jovem... Era como se estivesse pedindo que algo assim acontecesse. É claro, que ele conseguiu o divórcio, e sabe o que fez em seguida?

Gálius apenas encolheu os ombros, sem saber de quem ele estava falando.

— Ele se casou de novo! Com a prima dela! Dá pra acreditar numa coisa dessas?

Gálius olhou para Rimalbo e por um instante, desejou que sua vida fosse simples, desprovida de problemas. Que sua maior preocupação fosse com as fofocas da cidade, e não com o incêndio, ou mesmo, problemas envolvendo os silfos e Lerifan.

— Ah, é ali — Gálius mudou de assunto apontando para uma casa no fim da trilha que derivava da estrada em que estavam.

— A nova casa de seus pais, né?

— Sim — Gálius sorriu. Esteve no lugar apenas uma vez, há alguns dias quando ele pediu um dia de folga a Lerifan para ajudar a família com a mudança. O lugar já tinha outros ares. A casa parecia meio tombada, quase abandonada há poucos dias, e agora, já tinha um aspecto renovado. Muitos vasos de plantas organizados ao redor da casa e um fio de fumaça saindo da chaminé.

— Vamos dar uma passadinha? — Rimalbo se convidou.

Gálius encolheu os ombros — Por que não?

Naturalmente, sua mãe não estava em casa. Mas encontrou a pequena Dora cuidando de tudo na cozinha.

— Mano! — a jovem veio até ele, usando um avental sujo de carvão e deu-lhe um abraço.

— Esse é meu colega de trabalho, Rimalbo.

— Vocês aceitam água, ou um chá?

— Um chá seria excelente! — Rimalbo disse animado.

— Onde estão todos? — Gálius perguntou.

— Mamãe desceu para a cidade com Gorum e Melgosh. Ector está de castigo, estudando, e o Noran lá atrás cuidando da horta.

Dora foi até o fogão e colocou um maço de mato que cortou com as próprias mãos na chaleira. Pegou um pote na prateleira e colocou uma pitada de um pó cinzento e depois tampou.

— É só aguardar um pouco...

Gálius se sentou numa das cadeiras das quais já sentia falta. Sua própria casa, na cidade, onde apenas ele e seu pai estavam morando, tinham um aspecto vazio e triste. Muitos dos móveis foram levados para a nova casa, a exemplo da mesa da cozinha e as dez cadeiras. Agora ele e seu pai usavam dois banquinhos e uma mesa pequena que ficava na outra sala durante as refeições solitárias, na antiga cozinha. Gálius ficou ali, melancólico enquanto Rimalbo começou a tagarelar. Era difícil saber quem falava mais, ele ou Dora.

— Estou adorando viver no campo! Aqui é muito sossegado! Adoro observar os animais. Também tem muitas plantas por aqui que eu não conhecia.

Ela voltou ao fogão e trouxe a chaleira. Colocou as três xícaras de cerâmica e trouxe um cesto coberto com um paninho verde.

— Chá de matinho azedo com pó de casca de pau-cheiroso. E os biscoitos são de raiz ardida com queijo de muskute. Assei hoje cedinho.

— Obrihado, Dorinha!

Comer alguns daqueles biscoitos certamente elevou o espírito de Gálius.

Rimalbo colocou algumas moedas na mesa.

— você me venderia alguns biscoitos?

— Claro!

Ela aceitou satisfeita e os embalou num paninho que fechou como um trouxa.

— Ah, ganhei meu dia! — Exclamou Rimalbo.

— Como estão as lições? — Gálius perguntou.

— Acredito que estou indo bem. Pelo menos já não faço nenhuma besteira há três dias. Já o Ector, anda fazendo bagunça O tempo todo. Ele não gostou daqui. Reclama dos mosquitos, das aranhas, da água, de tudo.

Rimalbo não entendeu direito sobre o que conversavam, mas não ligou. Estava mesmo saboreando os biscoitos e o chá.

— Deliciosos! — elogiava Rimalbo. — Absolutamente deliciosos!

— Obrigada — Dora agradeceu encabulada.

— A Dorinha é muito trabalhadeira. Ela é a alma dessa casa.

— Deixa disso, Gal. Se eu ficasse dois dias vagabundeando como o Mel, acho que eu seria capaz de morrer. Não sei ficar quieta, é sempre bom ter algo a fazer e se sentir útil, não é mesmo?

— Sim, mana. Você está certa. Bem, obrigado pelo chá e pelos biscoitos, mas temos que ir.

— Vai ao acampamento dos silfos?

— Vou sim.

— Poderia me levar lá um dia?

— Claro, vamos combinar.

Então Gálius e Rimalbo deixaram a casa e retomaram o caminho pela estrada.

— Então, que negócios o levam ao acampamento dos silfos hoje? — indagou Gálius.

— Ah, não, nada. Na verdade, eu só queria uma desculpa para passear. Sua companhia é muito agradável, você é um bom ouvinte e bom amigo, sabia?

Gálius ficou se sentindo um pouco mal.

Ele fala demais e eu mal escuto metade das coisas que diz.

Ainda assim, forçou um sorriso amarelo.

Subindo e descendo o caminho que levava ao acampamento havia um fluxo de silfos. Mulheres e crianças vinham de lá de baixo, carregando pares de balde presos a bastões apoiados sobre os ombros.

Gálius chegou ao acampamento sentindo-se animado. E sentiu-se ainda melhor ao perceber o quanto o lugar vinha mudando. Aquele aspecto árido e desolado vinha dando lugar a um local cheio de verde. Vasos pequenos com plantas estavam pendurados ao lado da maioria das tendas, formando uma cascata verde. O solo agora estava sendo cultivado. Eles traziam água e terra mole e escura lá de baixo, retirada do leito dos riachos. Algumas fileiras de hortaliças já brotavam ali e davam um aspecto melhor ao local.

A maioria dos silfos seguia trabalhando nas construções idealizadas pelo oxivonu no local onde antes era o gueto das orelhas.

Rimalbo logo dividiu os biscoitos de Dora com algumas crianças curiosas que os cercavam. Algumas pediram para subir no cavalo dele. Rimalbo as colocava no alto e depois as descia.

Ele não é tão mau... Apesar da tagarelice é bondoso e gentil com os silfos.

Vê-lo ali à vontade com as crianças produziu um sorriso nos lábios de Gálius.

— Nae, Muni! — cumprimentou-o Maduja. Ele era o único silfo adulto que não estava empregado e trabalhando lá na cidade.

— Como vão as coisas?

— Até bem... As vezes sinto falta do trabalho no palácio e dos companheiros de lá, mas há tanto a fazer por aqui que não tenho muito tempo para ficar lamentando.

— Que bom!

— Venha, sente-se aqui na sombra comigo. — Maduja o conduziu até uma tenda aberta onde havia alguns tocos cortados que serviam como bancos. Maduja ofereceu um odre com água.

— Obrigado!

— Ainda tem muitos de nós insatisfeitos. Não aceitam a decisão de Kalbin e estão sempre reclamando. Sentem falta do mar e de poder trabalhar perto de casa. Agora, boa parte do dia se vai apenas com a viagem de ida e de volta para a cidade. Alguns já largaram o trabalho no gueto, mesmo pagando bem. Arranjaram trabalho nas fazendas da Várzea. Estão mais felizes com isso.

— Tem tido notícia dos palacianos?

— O de sempre, estão preocupados com a organização da exposição e o serviço ao Rei-Deus. Chegou aqui uma conversa de que você tem frequentado muito o palácio, não é mesmo?

— É... O Rei-Deus tomou um interesse especial em minha pessoa. Tenho conversado com ele. Ele é mesmo uma figura fascinante.

— É. Muitos em nossa cidade não são agradecidos o suficiente a ele por tudo o que ele faz. Ainda assim, permitiu que nosso lar fosse demolido. Mesmo alguns palacianos agora estão desgostosos, sabia?

— Posso imaginar.

— Há uma tensão crescendo, Muni. Algo está para acontecer, mas quase todos na cidade seguem com suas vidas, como se não houvesse nada estranho no ar.

— Sim, sinto a mesma coisa.

— Sabe qual é o lado bom?

— Qual?

— É que quanto tudo estourar, não vamos estar por perto para ver. Aqui em cima é um lugar pacífico, sabia? Muito mais tranquilo que o ambiente da cidade.

Gálius não conseguiu deixar de ficar pensando naquele assunto dos demônios.

Aquela pintura com a batalha era assustadora! Se tais criaturas chegarem na cidade, não haverá nenhum lugar seguro. Ninguém estará seguro.

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