74 - Aquela mulher

Não era aquela pessoa. Não aquele bebê, o filho de Tímices. Não era. Era uma mulher. Quem era aquela mulher? A mulher estava no alto de uma montanha. E lá embaixo, havia uma cidade imensa. Que se espalhava para todos os lados, mas que era margeada por um imenso mar de azul profundo. Uma cidade de tijolos vermelhos e de pequenas torres. O sol projetava sombras em ângulos paralelos por toda a cidade. Pessoas, lá embaixo, pareciam tão pequenas como insetos.

A mulher caminhou até a borda da planície no alto da montanha. O chão daquela montanha não era feito de terra, não havia plantas. O piso era feito de uma pedra áspera e avermelhada. Os tijolos dispostos de modos a fazer um padrão geométrico que podia confundir os olhos. Ela não estava no alto de uma montanha, mas no alto de um imenso monumento que subia aos céus, degrau após degrau, era o caminho que conduzia homens e mulheres para cima. Para o alto e para o divino.

Aquela mulher tinha cabelos longos e pretos ondulados e que voavam livremente soprados pela intensa brisa marítima. O cheiro de sal era familiar. Assim como o cheiro de sangue. Ela se virou e viu, atrás de si, um grupo de sacerdotes. Entre eles, havia um rapaz, um jovem que não tinha vinte anos. Tinha o corpo todo nu, exceto por um pequeno tapa-sexo de tecido branco.

Aquela mulher foi até o rapaz. Ele foi amarrado no chão, seus braços e pernas abertos sendo puxados com vigor por quatro correntes que eram enroladas em quatro mastros. Ajudantes dos sacerdotes usavam hastes para girar os mastros e recolher as correntes até que o rapaz ficou bem esticado. A mulher, aquela mulher que ele era retirou o tapa-sexo do rapaz e manuseou seu membro. O rapaz tinha os olhos virados, vivenciando um transe. Aquele transe do qual a mulher partilhava. Imbuídos daquele transe ambos se empenharam na tarefa em conjunta: doar o sêmen e extrair o sêmen. Os sacerdotes, ao redor, cantavam. O cântico era uma espécie de oração. Quando o rapaz atingiu seu ápice, suas sementes foram recolhidas num pequeno pote de porcelana branca. A mulher recebeu de um dos sacerdotes a machadinha ritual, super afiada e com um golpe preciso decepou o membro ainda rijo. Elevando-o ao céu ela levou-o até o mesmo pote em que gotas de sangue rubro foram derramadas. Os dois líquidos combinados assumiram um tom rosado e a mulher levou-o até seu superior.

Ela olhou nos olhos dele, olhos azuis cristalinos como os de ninguém mais naquela cidade. Suas feições eram muito familiares. Era como se ele, que era também aquela mulher, estivessem olhando para uma versão jovem do Rei-Deus. Pensar no Rei-Deus, em meio àquela visão tão absurda, tão violenta e carregada de misticismo trouxeram a Gálius uma fagulha de sua consciência.

Não pode ser! O Rei-Deus não promoveria tal crueldade!

O homem que parecia com o Rei-Deus entregou, com as mãos sujas de sangue da mulher, o pote para o monarca. Ele vestia uma coroa dourada. Sua roupa era toda amarela e havia um bonito sol com dez pontas bordado em seu peito, com fios de ouro. A gola da roupa também era bem trabalhada com os mesmos fios dourados. Ele aceitou o pote e bebeu líquido. E então, ele escutou com os ouvidos da mulher os sacerdotes clamando.

— Akena-Baru! Akena-Baru! Akena-Baru!

Gálius acordou enjoado. Ainda ouvia aquelas vozes ecoando em sua mente. Aquele nome estranho, que não tinha significado algum.

— Akena-Baru. — ele murmurou. — O que é Akena-Baru?

O Rei-Deus estava ali. Como esperado segundo transe havia sido mais curto.

— Conte-me o que viu, Gálius.

— Eu caí muito. Num buraco fundo. Eu estava pensando em Tímices, tinha a esperança de vê-la de novo. Mas, o que vi foi uma imensa cidade. Uma cidade construída de construções vermelhas perto do mar, mas totalmente diferente daqui. Eu estava no corpo de uma mulher, eu era uma mulher e aconteceu um ritual. Um rapaz que passava numa cerimônia para se tornar eunuco. Ele seria um servo direto do rei. Esse rei era o senhor!

— Não Gálius, quem você viu não era eu. Estou certo que viu meu irmão, Baru.

— Seu irmão?

— Sim, éramos muito parecidos, eu e Baru, quase iguais em nossa aparência externa, mas muito diferentes no foro íntimo. Como eu, Baru conquistou poderes e os usou para governar uma cidade. Uma cidade que ele governa até os dias atuais.

— Ele também é imortal, como o senhor?

— Eu não sou imortal, Gálius e nem nenhum de meus irmãos o é. Mas há meios de prolongar a vida. O Coração de Tleos fez isso por mim, já meu irmão, o faz tomando o corpo de outras pessoas.

— Vocês ainda se falam?

— Eu não o vejo há muito tempo. Faço questão de me manter afastado dele e de outros. Há muito mal lá fora Gálius, é por isso, que mantenho a cidade longe do mundo. E o mal que insistiu em bater às nossas portas ao longo do tempo, certamente foi um mal menor devido à proteção do Coração Divino.

— Infelizmente eu não a vi. Eu queria tê-la visto, mas não sei porque, vivenciei aquela situação horrível. — Gálius balançou a cabeça tentando espantar as imagens que ainda impressionavam sua mente.

— Muito bem, é natural que não se tenha controle sobre o que está no fundo de nossa alma. Talvez da próxima vez...

— Dê-me outra fruta. Eu quero tentar de novo! — Gálius pediu com avidez transparecendo nos olhos.

— Não. É perigoso. Você deve aguardar mais alguns dias antes de tentar novamente.

— Eu terei outra chance, então? — seu corpo e sua alma pediam por mais.

— Sim. Há algo que quero descobrir. Algo que preciso saber sobre seu passado e que... — O Rei-Deus ficou quieto.

— Que o quê?

— Que pode ser importante para o seu futuro.

— Muito obrigado por me receber novamente, majestade.

— Não se anime demais com os frutos e suas visões. Como pode perceber na experiência que teve hoje, é possível que venha a reviver situações muito desagradáveis. Talvez até, terríveis demais para suportar.

— Quer dizer que as pessoas que vejo nas visões são eu mesmo?

— É provável que sim, Gálius. Pois, quando a morte vem, não é o fim, mas apenas uma passagem para reiniciar. Sua família tem antigos laços com a minha, já pude perceber. E estamos aqui hoje, reunidos, conversando, é mais um dos sinais disso. Não é por acaso que seu pai decidiu vir morar aqui. Que conseguiu encontrar a cidade, quando muitos falham. O Coração de Tleos o acolheu e também a família que ele construiria aqui.

— O senhor julga que eu e Lerifan também temos laços que vem do passado, de vidas anteriores?

— Estou certo que sim. A história dele aqui na cidade é antiga e não é atoa que ele se fez sacerdote e por fim, que o povo o tenha eleito como oxivonu. Assim como não é por acaso que você trabalha para ele e que tenha suas diferenças a acertar.

Gálius olhou para o Rei-Deus.

Será que ele sabe sobre meu ódio por Lerifan? Será que ele tem conhecimento do assassinato de Yoltesh?

E então Gálius sentiu suas entranhas se torcendo.

Se ele pode ver tanto o passado como o futuro... Ter visões nítidas e acontecimentos de outros lugares, como aquela batalha entre homens e demônios da pintura... Não seria mais fácil ver tudo o que acontece debaixo de seu nariz, em sua própria cidade? Como viver sabendo tantas coisas assim?

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