73 - Enfeitiçada?
Após aquela batalha, toda Lacoresh ficou imersa no caos, por algum tempo. Algumas pessoas mais velhas ainda se lembravam de episódios tão terríveis como a invasão de mortos vivos que levou à morte do Rei Corélius IV, ou mesmo a praga de carniçais soltos nas ruas da capital quando o Rei Maurícius enlouqueceu.
Foi no meio daquela confusão que Arifa seguiu Josselyn e o mercenário Syrun até a maior taverna da cidade, que estava na porção leste, onde o ataque não chegou a fazer vítimas. Josselyn se comportava de modo estranho e Arifa estava certa que ela só podia estar enfeitiçada.
— Vocês dois estão loucos? Como podem pensar em tomar banho e ir beber? — Arifa os seguia com dificuldade, mancava e sentia dores fortes no tórax.
— Olhe só para nós! Estamos imundos, cobertos por entranhas fétidas. Por mil demônios garota! Como você pode não pensar em tomar um banho?
Arifa ficou sem palavras. Ele tinha alguma razão, afinal, mas o que a incomodava de verdade não era a questão do banho, em si, mas o comportamento estranho de Josselyn.
— Ai, Arifa, relaxa! Ele tem razão... Acabamos de salvar a cidade. O mínimo que merecemos agora é tomar um banho e beber um pouco para comemorar. — E então, Josselyn olhou novamente para Syrun e deu um daqueles sorrisos irritantes. Arifa sentiu as orelhas esquentando.
Arifa pegou-a pela mão puxando-a para perto e disse em seu ouvido — Tudo bem, banho! Mas você vai tomar banho comigo... E não com ele!
Josselyn deu uma gargalhada — Então é isso? Ciúmes! Há, eu devia ter adivinhado. De onde você tirou essa ideia de que eu ia tomar um banho com ele?
Syrun observou aquela conversa com interesse. Lambeu um dos caninos afiados que surgiam quando dava seus sorrisos de dentes perfeitos e alinhados.
— Olha, se o problema é esse eu tomo banho com vocês duas. Vai ser um prazer, eu garanto. — Syrun disse encarando Arifa, mas Arifa desviou o olhar. Ela não queria cair naquela arapuca.
— Syrun! — uma voz potente o chamou. — Aí está você! Fiquei preocupada!
Um sujeito vestindo uma armadura ornamentada, com peças prateadas e escuras sobrepostas num padrão listrado vinha andando resoluto na direção deles. Como eles, tinha o corpo salpicado de sangue escuro de demônios. Era magro, cabelos curtos e tinha um rosto delicado. E quando chegou perto do mercenário acertou um tabefe sonoro em seu rosto.
— Não suma assim, seu inútil!
— Calma aí, Amorzinho. Eu só segui meu instinto para estar onde eu era necessário!
Amorzinho?
Josselyn e Arifa se entreolharam. Arifa olhou a pessoa com atenção.
É uma mulher!
Ela tinha um corte de cabelo muito masculino, ombros largos e braços fortes, o que fez como que acreditassem ser um homem, à primeira vista.
— Meninas, essa aqui é minha chefe, nossa grande líder: Valéria, a magnífica, maravil...
— Corta essa, Syrum. Quero te ver de volta no acampamento agora! Temos que contabilizar as baixas e cobrar caro por isso!
Syrun encolheu os ombros — Ordens são ordens! Penso que nosso banho vai ter que ficar para outra hora, hã?
Valéria chutou-o na canela. — Seu porcaria! Mal acabou a luta e já está atrás de mulheres?
— Não, não, não, amorzinho... Você entendeu tudo errado. Era só um banho normal e depois beber para comemorar a vitória.
Arifa ficou olhando para Syrun de braços cruzados, irritada.
— Se querem um bom conselho — Valéria se dirigiu às duas — fiquem longe desse canalha. Ele provavelmente já teve, ou tem mais esposas do que o número de demônios que matou hoje.
Arifae franziu o cenho.
Tantas esposas sim? Isso não é ilegal?
Será que ele é dos reinos bárbaros? Dizem que em Tchilla, homens podem ter várias esposas.
Enquanto Syrun foi se afastando Arifa permaneceu ali, de braços cruzados olhando com os olhos estreitos para Josselyn.
— Que foi?
— Que foi digo eu! Aquele cara te enfeitiçou e você nem se deu conta disso.
— Enfeitiçou coisa nenhuma, Arifa. Você tá é maluca!
— Eu pude ver o jeito que você estava olhando para ele. Ele te enfeitiçou sim!
— Olha menina, não vá supondo que é minha dona. Eu olho para quem eu quiser e do jeito que eu quiser. Caramba! Depois dessa noite terrível, tantos demônios, ainda tenho que aguentar isso! — Josselyn saiu andando irritada.
Arifa chutou uma pedra sola do calçamento, irritada e grunhiu. Andou em outra direção. Arifa passou por um grupo de soldados, alguns deles feridos e perguntou se viram o rei. Um deles apontou na direção de uma ladeira. Arifa começou a subir, sentindo o peso da batalha em suas pernas. Observou que os civis começavam a sair nas ruas, com lampiões e tochas. Alguns curiosos e outros indo ajudar.
Havia muitos corpos, muitos feridos e coisas a fazer.
Que vergonha! Eu devia estar ajudando a cuidar dos feridos. Por outro lado, como eu poderia deixar a Joss ser levada por aquele mercenário seboso?
Mais adiante, encontrou-se com Edwain, ele estava cercado de guardas, cavaleiros e civis, questionado sobre providências a tomar. Ele havia ordenado que os corpos de demônios fossem reunidos para serem queimados, quanto antes. Quanto aos mortos de seu lado, era necessário identificá-los e comunicar as famílias. Assim que conseguiu um espaço, Arifa se aproximou dele.
— Meu rei — ela fez uma reverência. Mesmo sendo amiga íntima dele, era necessário realizar tais formalidades na frente dos demais súditos.
— Ah, Arifa! Que bom vê-la em boa forma! Está bem mesmo?
— Alguns ferimentos, mas nada grave.
— Fiquei sabendo que você, Josselyn e Kerdon lutaram lado a lado com um dos líderes dos mercenários. Que fecharam o portal e derrubaram um demônio enorme! A vossa bravura será reconhecida!
— Obrigada, majestade. Apenas cumprimos nosso dever.
Edwain olhou para baixo, uma sombra se estabeleceu em sua expressão. — Eu pensei que eu faria grande diferença hoje, mas meu medalhão não seguiu as minhas expectativas.
— Os medalhões são fortes, mas não é bom que depositemos toda nossa confiança neles. Há muito sobre seu uso e poderes que ainda não sabemos. Precisamos estudá-los e aprender a usá-los bem, antes de depositar tanta confiança neles.
Edwain suspirou — Sim, você tem razão. Foi tolice minha...
— O importante é que liderou os homens e combateu a ameaça de frente. Se me permite dizer, seu avô estaria orgulhoso de você.
Edwain sorriu. — Obrigado por isso, minha amiga. Estava precisando ouvir isso.
— Teve notícias de Kerdon, depois da batalha?
— Ele disse que ia lá em cima — Arifa apontou para o farol, cujo brilho continuava iluminar a noite de Lacoresh como se fosse uma lua cheia. — Parece que um mago que veio com os mercenários é o responsável por nossa vitória de hoje.
— Nem imagino o que teria acontecido sem a ajuda que veio do farol. Quero falar com esse mago, quanto antes. Agradecer em primeiro lugar, oferecer alguma recompensa e saber quem é e por que veio nos ajudar.
— Confesso que também estou curiosa. O mercenário com que estivemos disse que ele se chama Bérin, mas não sei sobre ele além de seu nome. Só fico pensando que se tivessemos uma magia tão poderosa, poderíamos proteger Kamanesh e Whiteleaf, assim como a luz azul dos magos de Lirr conseguiu proteger Homenase.
— É um aliado que chegou na hora certa. Os mercenários também... Não teríamos uma vitória hoje aqui, sem eles. O que vi hoje, me lembrou uma história que li, sobre os tempos de guerra. A capital dos silfos, no arquipélago resistiu ao demônios devido a uma magia semelhante, uma torre que possuíam e que defendia a cidade.
— Acho que me lembro do Mestre Ivrantz mencionar algo assim em suas aulas.
— Chamavam-na de A Torre dos Mil Olhos. Preciso saber se esse mago estará disposto a continuar a proteger Lacoresh e se poderia ensinar tal magia a nossos melhores feiticeiros. Pode ser nossa única esperança de sobreviver contra os demônios.
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