72 - A força dos laços
Gálius seguiu o Rei-Deus pelos belos corredores do palácio. Andar tão devagar quanto o monarca provocava reflexões.
Eu sempre estou apressado, ansioso, querendo chegar logo a algum lugar. Essa lentidão é angustiante.
Respirou fundo procurando se acalmar.
O que será que vou descobrir? Será que ele vai me dar outro fruto?
O Rei-Deus fez um sinal para um dos servos e o silfo abriu a porta dupla de madeira pintada de amarelo. Havia detalhes intrincados esculpidos nela, mas não era uma porta em especial, as demais portas daquele longo e largo corredor eram assim, havendo apenas pequenas diferenças de motivos nas esculturas.
No salão, o chão era todo coberto por um carpete de tom verde-claro com motivos botânicos em verde mais escuro. O cheiro era forte, de um lugar que ficava fechado sem muitos frequentadores. Ao longo das paredes, uma série de cavaletes estavam cobertos por tecidos brancos. O servo foi até as janelas e passou a abrir as cortinas, uma a uma. O Rei-Deus foi até um dos cavaletes e disse.
— Me ajude aqui, Gálius.
Os dois puxaram o tecido revelando uma pintura escura presa ao cavalete. Gálius observou com atenção e notou que representava uma batalha que ocorria dentro de uma cidade. Havia inúmeros demônios representados de forma amontoada nas ruas, ao mesmo tempo que havia muitos deles alados enxameando os céus. Em oposição a estes, havia tropas humanas, muitos soldados a pé, outros a cavalo. Os humanos estavam em desvantagem numérica.
— Isso é uma cena da guerra milenar? — Gálius indagou.
— Não, infelizmente a ameaça dos demônios não ficou enterrada no passado. Este foi o trabalho que concluí ontem, devido aos muitos detalhes, levei dois dias para completá-lo.
— Isso é uma visão do futuro, então?
— Não Gálius, do passado recente. Os demônios estão se alastrando sobre a superfície deste muito, mais uma vez, após tanto tempo.
— É deles que virá a catástrofe?
— Não tenho certeza. Minhas visões do futuro são nebulosas se comparadas as do passado e do presente.
— O senhor consegue ver o que se passa em outras partes do mundo?
— Sim, pois nosso mundo está todo conectado. Mas eu tenho me poupado, sem olhar fundo demais.
— Este quadro vai fazer parte de sua exposição?
O Rei-Deus não respondeu, no lugar disso andou passando de três outras telas cobertas até chegar numa outra. Indicou com um gesto para Gálius auxiliá-lo na remoção do tecido.
Este quadro era menor, e em posição vertical, retratava um homem de feições fortes que lembravam muito o Rei-Deus, porém jovem, e cheio de vigor.
Gálius teve vontade de perguntar se aquele era o próprio Rei-Deus quando jovem.
— Se parece comigo, não acha?
Gálius concordou com um aceno.
— É uma imagem de meu irmão, Gillian. Diferente de mim, quando jovem, ele sempre fora inclinado às armas. Era um guerreiro hábil, e talvez por isso, o favorito de meu pai. Como muitos outros guerreiros, ele pereceu na grande guerra. Ouvi dizer que meu pai chorou muito quando o enterrou, pessoalmente.
— É uma história triste...
— Sem dúvida. Sabe Gálius, seu pai me lembra muito de Gilliam. Apesar de viver uma fase pacata de sua vida aqui na cidade, cuidando apenas de filhos e cavalos, seu pai foi um grande guerreiro em sua juventude.
— É... Eu e meus irmãos sempre ouvimos histórias.
— No passado, o conflito com os demônios foi longo e doloroso. E certamente, assim o será novamente. O Coração de Tleos me ajudou a proteger essa cidade e seu povo, mesmo durante a guerra.
Gálius queria acreditar que a magia da árvore protegeria a cidade mais uma vez, queria ser otimista, mas a iminência da catástrofe o impediu de dizer algo nesse sentido. Ficou em silêncio, sentindo a ansiedade crescer.
— Sabe Gálius, existe uma força em todo o universo. Algo que transcende nosso entendimento e percepção clara. Mas após viver por tanto tempo, penso que passei a compreendê-la um pouco.
— Que força é essa, Alteza?
— Existe uma palavra: destino. É mal compreendida e tem diversas interpretações. Ela não representa bem o conceito dessa força. É uma força complexa e de unificação. Está presente em toda a natureza, e em nós também, pois somos parte dela. Essa força opera através da criação de laços. Nossas ações e nossas histórias de vida criam entre os seres, inúmeros laços. Os mais fortes são os laços de amor e ódio. Mas além deles, há os laços de dívida. Contraímos dívidas em nossas relações. Aqueles ligados pelo amor ou pelo ódio, estão destinados a voltar a se encontrar, inúmeras vezes. Em inúmeras vidas.
Enquanto o Rei-Deus explicava, Gálius se viu pensando em Lerifan e Yté, que estavam nos extremos de sua escala de amor e ódio. Em Rigo, Gorum, Kalbin e tantos outros que tinham sua existência ligada a dele próprio.
— Isso quer dizer — continuou o Rei-Deus — que não há coincidências. Tudo está ligado. Ações do passado refletirão eventos futuros. Isso é uma lei, uma força, e não há escapatória.
Gálius ficou olhando fixo para a imagem de Gillian e, em sua mente, pode vê-lo se movendo. Manuseando uma espada. Foi curioso como ao vê-lo se movimentar, parecia-se de algum modo com seu pai. Aquela visão reacendeu sua experiência que teve quando comeu o frito. O sonho com aquela outra pessoa.
O rapaz perguntou de súbito — Quem era Tímices?
O Rei-Deus parou. A pouca cor de seu rosto pareceu fugir. Olhou para Gálius e seus olhos se encheram de lágrimas.
— Onde ouviu esse nome? — o Rei-Deus apertou a mão contra o ombro de Gálius.
— Eu... eu... tive uma visão. Vi coisas que não sei explicar. É como o senhor disse, sobre as visões do futuro. É tudo muito nebuloso, como um sonho, mas não era um sonho comum. Sei apenas que ela era muito gentil, muito amorosa.
O Rei-Deus tremeu um pouco e virou-se. Caminhou com rapidez e ergueu as mãos fazendo outra porta do salão abrir-se sozinha.
— Venha! — disse ríspido.
O salão ao lado estava sob penumbra, com as cortinas fechadas. Havia algumas poltronas e o Rei-Deus se sentou numa delas. Indicou a Gálius que se sentasse em outra. Então, tirou do bolso de seu manto um fruto da árvore embrulhado num lenço.
— Coma!
Pela primeira vez Gálius viu algo diferente no Rei-Deus. Uma urgência, ansiedade...
Gálius mordeu o fruto. O sumo doce escorreu pela garganta. Ao provar o fruto pela segunda vez, parecia ainda melhor que da primeira. Era um fruto que se comia por inteiro, sem caroços. Gálius sentiu-se enebriado e aos poucos percebeu que perdia os sentidos. Viu a imagem do Rei-Deus turva, olhando para ele. E por um instante, viu ao redor dele, cores dançando parecendo queimar. Então, Gálius caiu, como se estivesse mergulhando do alto das pedras para atingir o mar lá embaixo.
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