70 - Magia
Gálius se viu deitado em algo macio. Era uma relva verde e fofa. Parece que teve um longo sonho. Ele acordou.
— Mãe?
Quem era aquela pessoa? Aquela pessoa que tinha uma mãe tão bonita e que brincava no jardim?
E então, Gálius se lembrou de sua própria mãe, Kiorina e de seu pai, Kyle. Olhou em volta e viu no alto, a cúpula de vidro. Ao seu lado, aquela árvore.
Pelo Rei-Deus! Estou no Coração de Tleos.
Olhou ao redor. Estava sozinho. Sentiu uma angústia entranha. Uma sensação de ser ao mesmo tempo mais que uma pessoa. Aquelas memórias, aquelas visões. Tudo se embaçava. Até que não restou quase nada. Até que restou apenas um nome.
— Tímices — ele balbulciou. Mas, quem era Tímices?
Quando ele saiu da estufa, um servo do jardim veio até ele.
— Sua majestade disse que irá chamá-lo novamente.
— Eu acho que dormi.
— É? Ele mostrou a árvore a você, não é mesmo? Não é magnífica?
— Ah, sim — Gálius viu a imagem perfeita da árvore impressa em sua mente — Muito linda!
— Eu a vi, algumas vezes — o servo sorriu. — Tenho um dos melhores trabalhos da cidade, não é mesmo?
— Sem dúvida — concordou Gálius.
— Se tiver sorte, vai ver a árvore mais uma ou duas vezes, não é mesmo?
— Sim, seria muita sorte.
— Vou lhe mostrar o caminho, venha comigo.
E Gálius seguiu o servo humano até o pátio do palácio.
— A saída é logo por ali — o servo indicou com o dedo.
— Obrigado.
Gálius se despediu e andou pelas ruas da cidade. Seus pensamentos estavam confusos. A mente vagava. Não sabia bem para onde estava indo. Quando percebeu, estava no terreno onde havia o gueto. Já não havia nenhuma construção de pé ali. Nada. Entulho, terra revolvida, algumas plantas aqui e ali que não haviam sido cortadas ou arrancadas. Uma bagunça. Era como sua mente naquele momento. Uma bagunça.
— Quem é Tímices? — perguntou a si mesmo baixinho.
— Quem era aquela pessoa?
Ele saiu dali e foi para o outro lado das pedras. Escalou, subiu e desceu aqueles caminhos que conhecia bem desde quando era criança até que chegou do outro lado. Viu a extensa praia de areias brancas. Tirou as sandálias e caminhou por ali. Havia alguns pescadores no mar, ao longe. Alguns pescavam com seus pequenos barcos, enquanto outros passavam em duplas, redes andando na parte rasa. Em meio a areia branca, viu um daqueles caranguejos marotos. Ele se aproximou animado como se fosse pegá-lo e o bichinho sumiu num instante entrando num pequeno buraco.
Quem era aquela pessoa que gostava de perseguir esses animais?
Ele olhou para o mar e viu, uma embarcação grande, muito diferente dos navios que tinham no cais de Tleos. O barco se desmanchou em instantes. Havia a figura de um silfo sorridente. Seu tio. E no instante seguinte, ele estava morto, deitado numa poça de sangue no convés do navio.
Quem era aquela pessoa que viajou pelos mares na companhia dos silfos, ou seriam elfos? E qual diferença entre um silfo e um elfo?
Sua mente ainda estava confusa. Veio uma vontade de nadar no mar. Ali, havia um pouco de ondas, mas não importava. Gálius tirou as peças de roupa, ficou nu e entrou na água fria. Saltou ondas até que ficou submerso, apenas saltando por cima, ou mergulhando por baixo, de cada onda que vinha em sua direção.
Aos poucos, as ideias foram se organizando e então refletiu a respeito da conversa que tivera com o Rei-Deus, sobre tudo que lhe fora revelado. Os povos antigos, a guerra, o fim deles e a fonte de todo poder do Rei-Deus, uma frágil pequena árvore. Se aquele incêndio estava mesmo por vir, o que seria dela? E aquela inquietação se estendeu para tudo mais.
O que vai acontecer com Yté? Minha família, amigos, todo o povo de Tleos? O que fazer quando não se pode evitar um destino? Aceitá-lo? Ou ainda valeria combatê-lo? Fazer como fez meu pai? Nunca se dar por vencido?
Então, se lembrou das palavras da velha Nashay sobre o levoorê, "É saber pensar e agir sem estar tomado por maus sentimentos". Gálius sentia a água bater e escorrer, passando em todos os pontos em torno de si.
Eu já não odeio o Lerifan. Pelo menos não o tempo todo... Eu ainda usei uma raiva por ele para enfrentar o Tiago no quadro vermelho. O Rei-Deus disse que retornar o mal a quem o produz na forma de punição e vingança talvez não fosse a resposta. Sugeriu que era um problema a ser resolvido pela própria consciência do malfeitor.
Mas, no fundo, Gálius sabia que Lerifan não tinha consciência, não como ele próprio a conceberia, e que tramava algo ruim contra os silfos, algo pior do que simplesmente tirar-lhes o lar.
Eu não posso ficar quieto e simplesmente observar seus planos se concretizarem... Ou posso? Será que quando decidi não falar mal de Lerifan ao Rei-Deus... Será que foi isso que fez com que o Rei-Deus confiasse em mim? Quando ele vai me chamar de novo? O que perguntarei?
Mal podia esperar para ter uma nova oportunidade de falar com ele. Estaria atento a Lerifan e sim, havendo espaço, decidiu que iria contar ao Rei-Deus a respeito de quaisquer coisas ruim que ele pudesse estar planejando contra os silfos.
Saiu dali, o dia já queria terminar. O sol estava baixo agora e pintava o horizonte e as águas com tonalidades vívidas. Agora sabia onde deveria estar, em casa. Chegou lá com a noite ainda jovem e encontrou parte da família reunida para jantar.
— Chegou bem na hora, maninho — disse-lhe Gorum, acolhendo-o com um sorriso.
— Sente-se — pediu o pai.
Sua irmã, Dora, logo foi mexendo em seu cabelo e tirando algumas algas — Você estava nadando, né Gal?
— É... — Gálius se serviu enchendo bem o prato. Estava faminto. Engajou-se em comer e deu pouca atenção para as conversas e provocações de sempre. Seus irmãos Ector e Melgosh, barulhentos como sempre, eram corrigidos por Kyle que precisou dar um cascudo no mais velho.
Sua mãe ficou muito quieta observando-o comer como se um estranho tivesse acabado de se sentar à mesa.
— Gorum — Kyle pediu — vá para a sala com seus irmãos jogar cerquilha. Cuide para que eles não se atraquem. Eu e sua mãe temos uma conversa para ter com Gálius.
— Mas mãe! — reclamou Ector — Não íamos praticar depois do jantar?
— Não vamos demorar, jogue uma partida com seu irmão que já vou.
— Que saco! Ganhar deles é muito fácil.
— Ah é, moleque? — Melgosh deu-lhe um soco no ombro — Eu andei treinando, viu?
E foram saindo da cozinha enquanto continuavam discutindo, suas vozes ficando mais baixas.
— Pode treinar o quanto quiser, minha mente é superior...
Quando ficaram os três sozinhos, Kiorina disparou — O que o Rei-Deus queria com você, filho?
— Ué, como soube?
— Sou sua mãe e sei de tudo. Inclusive sobre sua namorada.
Gálius ficou vermelho e antes que falasse algo a respeito o pai disse — E então, o que ele queria?
Gálius refletiu por alguns momentos.
A árvore. Aquilo seria um segredo? Não tive tempo de perguntar...
Ficou quieto pensando se devia ou não contar tudo.
— Então? — pediu a mãe com aquele olhar que não aceitava ser contrariado.
Gálius suspirou e concluiu que não fazia sentido ter segredos com seus pais. De modo resumido, contou tudo o que o Rei-Deus disse, exceto sua própria experiência confusa depois que comeu a fruta. Quando terminou, os pais olharam um para o outro com semblantes sérios. Gálius as vezes jurava que eles podiam conversar muita coisa só com aqueles longos olhares.
— E então — ele perguntou — o que vocês acham?
— Vire a mão assim, filho — Kiorina virou a própria mão fazendo uma pequena concha na palma.
— Virar a mão? Depois que contei tudo isso você...
— Apenas vire! — disse ela imperiosa.
Gálius obedeceu. Então ela olhou para a palma da mão dele e fez aparecer ali uma chama, como a de uma vela. A chama ficou ali queimando, por um tempo.
— E aí? — fez Gálius.
Kiorina estalou os dedos e a chama se apagou, fazendo um fio de fumaça subir.
— Eu sabia — ela disse — há magia no seu corpo, filho. Uma quantidade que nunca esteve em você, tenho certeza.
— Magia em mim?
— Sim, a fruta que você comeu energizou você.
— Isso quer dizer que agora sou um feiticeiro?
Kiorina riu — Ah, não, existe uma grande distância entre ter um pouco de magia circulando em você e realmente tornar-se um feiticeiro.
— Então pai — Gálius arriscou — Se o Rei-Deus viu o incêndio, assim como o senhor, por que não saímos logo daqui com nossa família.
— Pode não ser tão simples assim, filho. Existe um motivo para eu ter visto o que vi, já pensei sobre isso e eu não vou sair daqui, por outro lado, eu e sua mãe decidimos.
— O quê?
— Ela vai se mudar com os meninos para Várzea Alta, já achamos uma casa perto da casa de Lenora e Jaan. Mas eu vou ficar aqui e penso que você também vai querer ficar, o que me diz?
— Eu tenho que ficar, pai, devido ao meu trabalho. Eu tenho que ficar de olho em Lerifan para proteger os silfos.
— Muito bem, filho. Sua mãe vai dar lições a Ector e Dora, mas há mais coisas que nós dois precisamos conversar.
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