66 - O Coração de Tleos
Gálius entrou na estufa, o coração palpitando, as pernas e braços inquietos. Sentia um tipo antecipação e emoção inéditos. Era como o momento da morte. O momento em que a vida passa diante de seus olhos.
Por que eu? Apenas garoto que brincava descalço entre os silfos do gueto. Um entre os muitos filhos de meus pais... Um zé-ninguém que ganhou alguma fama como um lutador de peleja. Um confidente do círculo interno dos silfos. Amante da magnífica Yté. Um assistente, por conveniência, da maior autoridade da cidade. E isso agora? Um convite do próprio Rei-Deus para o Coração de Tleos.
"Por que eu?" a pergunta se repetia em sua mente a cada passo dado dentro daquele local incrível.
Havia um frescor ali dentro que chegava fazer a pele formigar suavemente, como se estivesse anestesiada. Havia plantas de cores e formas que Gálius nunca vira antes. Folhas azuladas em vários tons. Folhas vermelhas, roxas, amarelas e até brancas. Flores pequenas e grandes, simples e da maior complexidade. Sozinhas ou agrupadas. Centenas de espécies. Odores variados. Os olhos de Gálius se encheram de lágrimas, não pelo que estava antes em sua mente.
É magnífico!
A beleza daquele lugar o atingiu como uma pancada.
Lembrou de quando era criança, em dias quentes... Após estar todo suado, todo vermelho, saltava das pedras no istmo, além do gueto, para se chocar contra a água fria e refrescante do mar.
— É lindo. — disse o Rei-Deus — É meu pedacinho do mundo. Houve uma época, quando os portos da cidade estavam abertos, que as sementes chegavam aqui de vindas de todas as partes do mundo e pagávamos muito bem por elas.
— Foi um ótimo investimento, se me permite dizer.
— Venha para ver a joia mais preciosa deste jardim. — O Rei-Deus afastou com os braços as folhas de samambaias que desciam como uma cascata bloqueando uma das trilhas internas da estufa e sumiu no meio do verde. Gálius o imitou, passando pelo portal de folhas. Havia uma pracinha construída com tijolos de piso num padrão que alternava placas octogonais e hexagonais. Um desenho abstrato que lembrava uma espiral dentada fluía das extremidades da praça para o centro e formava pontas para o alto quando subia meio metro para formar um canteiro central. Não era um canteiro muito grande e nele, havia uma relva formada por plantinhas verdes de folhas redondas e que lembrava um tapete. Bem ao centro, uma arvorezinha que parecia antiga, de tronco complexo, folhinhas pequenas, como se fosse a miniatura de uma árvore adulta. Dela pendiam pequenos frutos parecidos com pêssegos, mas de casca transparente. O interior deles, via-se uma polpa clara, também translúcida com padrões em forma de finíssimas raízes se bifurcando. As frutas pareciam pulsar suavemente e devagar, um lento vai e vem que remetia ao movimento das ondas do mar.
O Rei-Deus prostrou-se diante da árvore e permaneceu em silêncio por alguns momentos, reverenciando-a.
Gálius imitou-o, sem se sentir tolo, de maneira alguma. A planta possuía de fato uma aura, um ar de majestade. Era como se estivesse diante de algo, realmente divino, pela primeira vez em sua vida.
— Os frutos dessa árvore, Gálius, não possuem sementes.
— Então, como ela foi plantada?
— Ela foi criada diretamente pelas mãos de um deus, Gálius. Havia três delas sob os cuidados de meus ancestrais. Mas outras foram feitas como um presente do deus pai da magia para os primeiros homens.
Ela é realmente divina!
— Eu sou seu guardião há muitos milênios, mas ela é muito mais antiga que isso. Foi o esforço conjunto de dois deuses que trouxeram à existência nossos povos. Originalmente, houve oito raças numânicas, das quais, atualmente, apenas a de homens, como você, Gálius, prevalece. Nos primeiros tempos, todas essas raças tiveram uma denominação comum: Numös. Duas dessas antigas raças, os Hölmos e Vetmös, foram favorecidos com o dom da imortalidade por um de seus pais e dominaram o mundo, se expandindo por ele e o governando por milhares de anos. Isso não aconteceu da noite para o dia, foram necessárias algumas gerações. Muitas dessas plantas foram destruídas, ou mesmo, secaram e morreram. Todas as oito tribos de nümos receberam árvores como essa, mas no fim, apenas duas linhagens conseguiram preservar as dádivas de Asimoir. Meu povo, os Hölmos e nossos primos, os Vetmös. A história antiga é complexa e longa e infelizmente quase todos os registros se perderam durante a grande guerra milenar. Eu ainda era jovem, quando a grande cidade branca ruiu sob o ataque da horda. Eu vivia no palácio, pois era o bisneto do grande monarca da família Prístimos, Öfinnel. Era uma família grande e complicada a minha. Meu bisavô previu o fim de Umm, a cidade branca. Muitos de nossa família tinham o dom da premonição. Assim como meu bisavô, eu também tenho essa capacidade. Desde muito jovem, me apaixonei pelo jardim central de Umm, um lugar muito parecido com este em que estamos, e no qual esta árvore e outras duas ficavam. Eu aprendi tudo sobre todas as plantas e aprendi a cuidar delas, aprendi a amá-las, talvez até mais que amava meus parentes. E quando eu vi o jardim queimando, e as árvores morrendo, eu tomei uma decisão. Decidi caber a mim, salvar nosso legado. Recolhi sementes de variadas espécies e esta, que era a menor entre e as árvores celestes. Abandonei Umm, mesmo antes da invasão e acompanhado apenas de um pequeno grupo de seguidores, em sua maior parte, pessoas que serviam como guardiões do jardim central. Me despedi para sempre de minha família, meus pais, meus irmãos e primos. É uma história longa, Gálius, uma história que vou lhe contar.
— Mas porque eu, Majestade?
— No tempo certo, você vai entender. E quando entender, sua vida terá um novo propósito. Infelizmente, são muitas informações, e não conseguirei contar tudo de uma só vez. Por ora — o Rei-Deus estendeu a mão e tirou um dos frutos da árvore. — Tome, é um presente.
Gálius sentiu a textura aveludada do fruto em sua mão. Era fresca ao toque e muito bonita de se admirar.
— Em cada fruto, concentra-se um imenso poder e fonte de vitalidade, meu jovem. Foi com poder desses frutos, que pude viver por tanto tempo, enquanto todas as pessoas de meu povo pereceram. Além disso, o poder dos frutos me permitiram construir essa cidade, protegê-la de ameaças externas. Toda magia que possuo e que também é repassada a meus vonus, vem dessa árvore, Gálius. Agora compreende por que eu a chamo de O Coração de Tleos.
— O que eu faço com a fruta?
— Ora, o que é natural. Coma — os olhos de Tleos brilharam encarando intensamente os olhos de Gálius.
— Coma, coma. Não precisa ter medo.
E então, quando Gálius mordeu o fruto, todas as cores do universo invadiram sua alma.
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