64 - Um almoço com o Rei-Deus
— Deixem-nos — ordenou o Rei-Deus. Ele conseguia dar uma ordem incisiva, mas ainda assim, soar amável.
Lomuz e mais dois silfos que acabaram de servir a mesa de almoço fizeram uma vênia e deixaram a sala de refeições. Gálius suava.
Fui convocado pelo Rei-Deus! Por qual razão? Isso foi tão inesperado!
Gálius olhou ao seu redor, apreensivo.
A sala de refeições do Rei-Deus é mais simples do que eu imaginava.
Não havia muitos ornamentos, e do outro lado da sala a luz do sol era filtrada por uma série de placas de tecido grosso e claro penduradas junto às janelas. O piso de tábuas de madeira largas lustrosas chegavam a refletir móveis e pessoas apoiados sobre elas. O Rei-Deus olhava-o nos olhos.
Sinto que ele pode enxergar através de mim, como se eu fosse feito de vidro.
Gálius ficou olhando para a tigela de madeira contendo várias fatias finas de peixe. Tinha um cheiro forte e parecia que não era peixe cozido.
O Rei-Deus pegou uma porção pequena de sua própria tigela, deixou um pouco do molho escorrer e colocou na boca.
— O marinado está ótimo. Já comeu alguma vez?
Gálius sabia que algumas pessoas comiam carne crua com temperos, mas nunca havia experimentado. Olhou para a comida e hesitou.
— Vamos experimente. Se não gostar, há outras opções — o Rei-Deus indicou a presença de frutas sobre a mesa e também legumes cozidos.
O que era experimentar um pouco de peixe cru, perto de tanta coisa pelas quais ele tinha passado? Tomou coragem e levou uma porção até a boca. O sabor do molho era forte, mas muito bom. Combinava-se com perfeição ao peixe cru. Gálius se surpreendeu quando percebeu haver gostado muito daquilo.
— Está ótimo! — conseguiu dizer, apesar de todo o nervosismo ligado à situação de estar ali, a sós com o Rei-Deus.
— Conte-me um pouco a respeito do trabalho que está fazendo junto a meu novo oxivonu, Gálius. — pediu o monarca.
Gálius esfregou as mãos contra as calças, sobre as coxas, para limpar o suor.
O que eu digo a ele? Mentiras? Ou tudo que sempre quis dizer? Não seria desleal maldisser de meu superior para o chefe dele?
— É um trabalho duro, majestade. Mas estou me esforçando para fazê-lo o melhor possível.
— Ah sim, — o Rei-Deus sorveu um pouco do vinho que estava em sua taça de metal lustrosa — duro. Fale mais sobre isso? O que há neste trabalho que o torna duro para você, meu jovem?
Galius mordeu os lábios, nervoso.
Isso é algum tipo de armadilha? Teste?
— É duro observar o sofrimento e não poder fazer nada.
O Rei-Deus ergueu as finas sobrancelhas e ficou olhando para o rapaz por uns instantes. Gálius sentiu que ele o olhava de um modo diferente. Será que dei uma boa resposta?
— Tem razão. É mesmo duro. Nem com todo o poder do mundo é possível impedir a existência do sofrimento. O sofrimento é um elemento básico, é algo que está em nossa própria constituição. Sem ele, não haveria vida, não haveria a alma.
Gálius ficou quieto tentando absorver o significado daquelas palavras. O Rei-Deus era muito sábio e poderoso, e ainda assim, seu povo sofria.
— Coma mais, meu jovem. — ele pediu enquanto cortava um pedaço de raiz doce cozida.
Gálius provou uma das frutas vermelhas e pequenas que nunca comera, era azeda e doce ao mesmo tempo.
— Fale sobre o oxivonu Lerifan.
Isso fez com que a tensão retornasse.
Devo contar a verdade? Será que consigo falar sem deixar transparecer meu ressentimento?
— Ele viu algo em mim, majestade e me deu a oportunidade de servi-lo. Mais que isso, servir o povo de nossa cidade.
— Sim. E sua relação com ele, como é?
— Eu sempre o tratei com respeito, mesmo que já tenha discordado dele.
— Interessante, me conte sobre essa discordância, como isso tudo começou?
— Bem, antes de tudo começar, eu tomei gosto pelas discussões públicas da assembleia. Estava interessado nas leis, gostava de discutir jurisprudência. E houve um assunto... Falávamos sobre igualdade da aplicação da lei para todos habitantes da cidade. Em certa ocasião, houve uma discussão que talvez tenha se tornado um tanto pessoal. Acho que isso o irritou, e não vou mentir, aconteceram coisas e também me irritei com ele. O fato é que durante algum tempo não tivemos uma boa relação.
— Mas isso mudou.
— Sim, eu tive que admitir para ele que eu estava errado.
— Sobre o assunto que gerou a primeira discussão?
— Não de uma maneira direta. No fim das contas, eu acho que minha proximidade com os silfos o fez perceber que eu poderia ser útil na concretização de seus planos de reforma do gueto. — Dizer aquilo tudo foi uma espécie de ginástica para Gálius. Ele não mentiu diretamente, ao mesmo tempo, não expressou todos os detalhes, não disse toda a verdade. Mas como poderia sem fazer uma denúncia direta contra Lerifan?
— Todos nós carregamos segredos, não é mesmo Gálius?
— Não posso discordar, majestade.
— O sofrimento humano, Gálius, pode vir de fonte externa, mas muitas vezes, ele vem de dentro. Da incapacidade aceitar os acontecimentos, tais quais eles são.
— Seria certo provocar o sofrimento?
— De forma alguma, mas se o provocarmos, o que isso deve significar? Uma condenação? A morte? Acredita que uma vida perdida deve ser paga com outra? Julga que a vingança é uma boa solução para os problemas?
Gálius ficou olhando para o Rei-Deus, assustado.
Será que ele sabe sobre a morte de Yoltesh? Sobre o crime de Lerifan?
— Não sei dizer, senhor. Tenho poucos anos de vida e sou inexperiente. Se puder me honrar com sua sabedoria, qual seria a sua resposta?
O Rei-Deus esboçou um leve sorriso. — Carregamos nossos crimes em nossa própria consciência, Gálius. Ela é a primeira a cobrar, mesmo contra a vontade do criminoso. E quando nos recusamos a ouvi-la, os ouvidos invisíveis dos demais escutam e, cedo ou tarde, o mundo traz a resposta.
O Rei-Deus seguiu comendo sua refeição e Gálius o imitou. Passaram algum tempo assim, trocando olhares. Gálius desviava o olhar com frequência sob o pretexto de procurar algo mais para comer, cortar algum legume, ou pegar mais uma porção do marinado.
— Desculpe minha impertinência, majestade. Mas posso perguntar por que me chamou aqui?
— Bem, precisava conhecê-lo melhor, meu jovem. Tenho coisas a fazer e pela primeira vez, em muito tempo, estou cheio de dúvidas. Eu sei que você sabe sobre os acontecimentos que estão por vir. São tempos de mudança. Quando tudo começou, há muito, muito tempo atrás, eu sabia que não seria uma experiência infinita. Tudo na vida tem o seu tempo, tudo um dia acaba. Essa cidade, esse mundo. Não são eternos. Eu vivi o que tinha para ser vivido. Construí essa cidade, moldei o destino de um povo, o mantive afastado dos conflitos e guerras. No fim, penso que consegui dar uma vida melhor do que é possível no mundo, lá fora.
— Então o senhor não sabe de tudo, como alguns supõem.
— Sei menos que tudo, e mais que muitos acreditam. Meu poder tem limites, apesar do que dizem. Tomam meus poderes como algo divino, mas sua mãe também tem poderes, não é mesmo? Poderes que não tem relação com oração ou devoção a um deus. Quando eu permiti que seus pais viessem morar aqui, eu já sabia que o fim do isolamento de Tleos estava chegando. Grandes mudanças podem ser traumáticas.
Gálius bebeu vinho. Era doce e forte. Diferente do que se consumia na cidade.
— O meu pai também viu o incêndio — Gálius deixou escapar.
— Sim, sei disso. Já está satisfeito?
— Sim, muito obrigado.
O Rei-Deus se levantou — Venha comigo, Gálius, está na hora de responder a sua pergunta. Vou lhe mostrar o porquê de tê-lo chamado.
Gálius se levantou e o seguiu apreensivo. Suas pernas e braços tremiam um pouco. Sentiu os pelos da nuca se arrepiando. O coração batia acelerado. Escutou as palavras do Rei-Deus ecoando em sua mente "Todos nós carregamos segredos, não é mesmo Gálius". Saíram da sala de refeições e cruzaram um longo corredor. Criados se curvavam na medida que os dois prosseguiam pelo interior do palácio. Outros abriam portas e portões, para poupar o Rei-Deus e seu convidado deste trabalho. Subiram escadarias até chegar no terraço do palácio. Gálius perdeu o fôlego ao ver a cidade dali e, ao mesmo tempo, belos jardins que se estendiam nos níveis ascendentes do terraço. Havia alguns servos ali também, cuidando das plantas e pequenos animais circulavam. Era tudo muito bonito. No terraço mais elevado, uma magnífica estufa formada de uma estrutura metálica pintada de branco e muitas vidraças. O Rei-Deus ergueu uma das mãos fazendo os portões ricamente ornamentados com metal moldado com motivos florais deslizar para dentro.
— Entre, Gálius, no Coração de Tleos.
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