6 - Juramento
Gálius seguiu com pressa da casa de Vonu Perembo para a região central. Toda aquela conversa sobre justiça ainda martelava em sua cabeça.
Como pode haver justiça enquanto ainda há tanta desigualdade? Há algum sentido oculto de justiça, que eu não esteja percebendo? A prisão de Yoltesh foi injusta! Aquele Lerifan...
E ademais, não há igualdade em Tleos! Essa conversa de igualdade não passa de tolice.
Finalmente chegou à frente do posto da guarnição. Havia dois guardas ali.
— Que o Rei-Deus os ilumine — cumprimentou Gálius.
Um deles acenou indiferente, mas o guarda grisalho o cumprimentou com um sorriso.
— Oi Gálius. Como vai sua mãe?
— Ocupada, como sempre, senhor Otu.
— Mande meus cumprimentos a ela.
— Pode deixar.
O guarda ser conhecido de Gálius, não chegava a ser nenhuma sorte. A mãe dele era uma pessoa muito popular na cidade, uma feiticeira que fazia serviços de todos os tipos, além do mais, conhecida por ser generosa com os pobres. Era o caso do guarda, que teve sua casa salva pela mãe de Gálius a troco de algumas galinhas.
Os guardas em Tleos não usavam muita roupa e também não portavam lâminas. Na cintura, carregavam apenas porretes de madeira, ou pequenos açoites.
Otu não era um guarda muito forte, e não tinha nenhuma barriga, sua expressão era um pouco cansada e tinha o rosto marcado por espinhas da juventude. Usava apenas uma calça escura, sandálias e o cinturão da guarda.
— Senhor Otu, sabe me dizer se meu amigo, Yoltesh, está preso aqui?
— O silfo?
— Este mesmo.
— Sim. Ele está encrencado... Desacatou um Vonu, pelo que ouvi.
— É... Será que eu poderia falar com ele?
O outro soldado, de pele mais escura, olhou feio para Otu.
— Melhor não...
Gálius sentiu que eles queriam evitar problemas.
— Eu não vim como um amigo, mas sim, como cidadão de Tleos a fim de defender o prisioneiro.
— Como é?
— Está nos anais.
Os dois soldados se entreolharam, não sabiam nada sobre aquilo.
— Por favor, verifiquem com seu superior.
— Não vou negar este favor — Otu cedeu. — Venha comigo, rapaz, e falaremos com o capitão.
Havia um pequeno vestíbulo depois do portão que dava para o pátio. O chão do pátio era pavimentado com pedras amareladas, antigas e gastas. Nas laterais, magros canteiros abrigavam algumas plantas mal cuidadas.
Alguns oficiais passaram por eles, diferente dos guardas, usavam coletes abertos e sinais de patentes desenhados no medalhão que ficava no lado esquerdo do peito. Havia apenas um seleto grupo de oficiais que tinha autorização para carregar lâminas. Armas brancas eram raramente usadas em Tleos.
O capitão era um oficial mais velho, calvo e que carregava um espadim decorativo na bainha cujo acabamento era artístico. Sua pele era morena, os olhos claros, um atributo raro entre as pessoas em Tleos.
— Este é o filho da Senhora DeLars, meu capitão. — Otu o apresentou.
O velho ergueu as sobrancelhas brancas e ralas.
— Você é o Norum?
— Sou Gálius, senhor Capitão. Gorum é o meu irmão mais velho.
— Bem, são muitos filhos... E esses nomes tão estranhos...
— Verdade, eu bem gostaria de ter um nome mais comum.
— Em que posso ajudá-lo, rapaz? — o capitão dispensou Otu com um gesto.
— Vim para falar com o prisioneiro Yoltesh. Meu desejo é defendê-lo, como cidadão de Tleos.
O capitão pressionou os olhos de vista cansada, avaliando-o por um momento. — Está mesmo certo disso? Poderá sofrer consequências.
— Se eu não fizer isso, ninguém irá fazer nada.
O capitão inclinou-se para perto de Gálius e disse baixinho — Não é sábio confrontar o julgamento de um Vonu, ainda mais um como Lerifan.
— Eu já me decidi. Será que posso falar com o prisioneiro? Gostaria de verificar informações antes de prosseguir com minha intenção de defesa.
— Pode sim, mas se quer um conselho, desista disso... Estou certo que o silfo só vai ficar preso por uns meses, no máximo, e depois, será liberado.
— A mãe dele precisa de sua ajuda. Além do mais, se eu estiver certo. Tudo não passou de um mau entendido. Então, por que ficar preso por meses se pode sair hoje, ou amanhã?
O capitão deu com os ombros e pediu para que ele o seguisse com um gesto.
A cela era pequena, mas limpa. Tinha um colchão de palha surrado, um vaso para as necessidades com tampa e uma pequena janela no alto, por onde entrava luz suficiente. Yoltesh estava cheio de hematomas, e com um naco do nariz em carne viva, mas sua expressão se iluminou quando viu Gálius passar pela porta.
— Seja breve, ficarei esperando aqui fora — informou o capitão e fechou a porta.
Gálius olhou para o amigo por um instante, condoendo-se com sua situação. Yoltesh se levantou e se abraçaram.
— Me desculpe. — Gálius tinha a voz embargada.
— Desculpar, mas por que, meu amigo? — Yoltesh nem suspeitava.
— Vonu Lerifan o prendeu, mas a culpa é minha!
— Como assim, amigo?
— Eu o envergonhei e ele o prendeu para me atingir.
— Gálius, você está delirando. Fique sossegado, isso não foi culpa sua.
— Se não acredita nisso, então me diga, Yol, por que você foi preso?
O silfo deu com os ombros. — Preconceito... Estamos acostumados. Acho que o Vonu não gostou da minha cara, é só isso. Eu o ofendi também, sujando seu manto com meu sangue imundo. Então, já me interrogaram e eu contei tudo a eles. Me disseram que não ficarei aqui tempo demais, talvez me arranjem um trabalho divino em nome do Rei-Deus. Não precisa se preocupar.
Gálius ficou vermelho. — Droga Yol! Como você pode se culpar assim desse jeito? Não vê que foi injustiçado? Não está revoltado com isso?
— Calma amigo, a sua raiva não vai ajudar em nada.
— Você está certo. — Gálius andou de um lado para o outro — Mas saiba que vim para defendê-lo.
— Me defender? Mas como assim, amigo?
— Eu vou defendê-lo perante o conselho dos Vonu.
— Não, não precisa... não quero causar nenhum incômodo.
Então ouviram vozes vindas lá de fora. A princípio, baixas, mas depois puderam ouvir claramente.
— Preciso me repetir, capitão? Abra essa porta de uma vez!
Yoltesh ficou branco ao reconhecer a voz irritada do Vonu Lerifan.
A porta se abriu e imediatamente os olhares de Gálius e do sacerdote se cruzaram. Gálius sentiu-se atingido por uma corrente gelada que pesou em seu estômago.
— Ora, mas que boa surpresa. O Zeno que faz perfeita companhia para esse silfo imundo.
Gálius sentiu as orelhas esquentando, as imagens dele maltratando seu amigo voltaram fortes.
— O capitão me disse que veio para defender esse bandidinho nojento.
Gálius esforçou-se para fazer uma vênia e indagar calmamente — Pode me dizer qual crime ele cometeu, Santo Vonu?
— Ele roubou comida de um feirante, não foi mesmo? — Lerifan lançou um olhar gélido contra Yoltesh e Gálius viu um suave brilho azulado irradiar de seu cetro. Seu manto amarelo, e as faixas brancas com símbolos sagrados escritos em vermelho foram tingidos pela luz azul que aumentou de intensidade.
— Sim, Santo Vonu, eu errei, por favor, me perdoe.
— Está vendo, jovem Gálius? Ele confessou seu crime. Agora venha comigo...
— Não, o senhor o fez confessar, afinal, quem teria coragem para contradizer um Santo Vonu?
— Aparentemente, alguém como você.
— Não quis dizer isso de uma maneira ruim, apenas estou considerando a chance de que possa estar equivocado.
— Eu nunca me engano, pois trago comigo o próprio poder do Rei-Deus, para que se seja feita a sua vontade. — ele mostrou o cetro com a pedra cintilante.
A respiração de Gálius ficou curta e apertou os punhos com força até os dedos ficarem brancos.
— Peço perdão, Santo Vonu, eu não queria...
— Eu o entendo. É jovem e cheio de ideias, eu já fui assim. Não se preocupe.
— Obrigado, Santo Vonu, o senhor é sábio e misericordioso.
— Sabe rapaz, eu tive uma revelação do Rei-Deus, hoje. Algo que vou compartilhar com você.
— É bondade sua. — Gálius representava, mas estava tenso
— Eu percebi que esse silfozinho nojento e toda sua comunidade são uma chaga pulsando em plena cidade do Rei-Deus.
Lerifan o olhava nos olhos e ignorava a presença de Yoltesh, ali ao lado. De fora da cela, o capitão observava aquilo com um misto de curiosidade e apreensão.
— E tendo essa revelação — ele prosseguiu — decidi testar a vontade Dele. Eis o que vou fazer.
Lerifan virou-se para Yoltesh e apontou o cetro para sua cabeça. O rapaz, ajoelhou-se, tremendo e dizendo em sua própria língua, piedade, piedade.
— Se for mesmo de desejo do Rei-Deus, o seu poder se manifestará aqui e agora. Vamos ver o destino que Ele deseja para este criminoso.
Então as veias das têmporas do templário saltaram e uma expressão odienta se fechou em sua face. Um raio azul saiu da ponta do cetro e atingiu Yoltesh. O rapaz estremeceu e em seguida, caiu de lado. Fumaça saindo de sua boca aberta, o olhar esbugalhado e vidrado.
— Você o matou? — Gálius deixou escapar, atordoado.
— Não, eu sou apenas um instrumento. Essa foi a vontade do Rei-Deus.
— Mas ele... ele não fez... não cometeu... você, você...
Lerifan apontou o cetro para Gálius e o advertiu — pense bem no que vai dizer, meu rapaz! Talvez eu queira testar se a ira divina deva recair também sobre você.
Gálius engoliu seco e calou-se. Duas lágrimas pesadas escaparam de seus olhos.
Lerifan olhou-o de lado e disse condoído — Sinto muito pelo ocorrido.
Gálius olhou para baixo, fechando os olhos e erguendo os ombros tensionados.
— Eu poderia prendê-lo por desacato, mas já basta de problemas por hoje. Esteja grato pelo fato de sua mãe ser uma pessoa respeitada.
Virou-se para sair da cela. Antes de ir, disse ao capitão.
— Está provado que essa era a vontade do Rei-Deus, afinal, seu poder apenas se manifesta segundo a Sua vontade. Por favor, providencie o descarte do corpo.
— Si-sim, Santo Vonu. — o capitão fez uma vênia.
Gálius ajoelhou-se ao lado do amigo morto.
Maldito Lerifan! Maldito! Como eu pude ser tão estúpido! Agora Yoltesh está morto! Morto! É tudo culpa minha!
Ele sussurrou entredentes ao pé do ouvido de Yoltesh.
— Ele vai pagar por isso, Yol. Eu te juro que vai!
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