56 - Exposição
Três dias haviam se passado desde que Gorum tentara se matar. Era bem cedo e o sol ainda não havia nascido. Gálius encarava o irmão. Sentia a empunhadura de sua espada de treino suada, sua mão, dolorida.
Kyle observava atentamente o embate entre os filhos. Gálius era mais baixo, mais fraco que o irmão, assim como na peleja, tinha que contar com a velocidade para ter alguma vantagem. Seus ferimentos ainda incomodavam, mas como dizia seu pai, na hora da batalha, é preciso vencer.
Gálius usou uma técnica que havia funcionado por vez ou outra na peleja: imaginou o rosto de Lerifan se sobrepondo ao rosto do irmão. Seu ataque veio com uma energia adicional, como se fosse ali uma situação de vida ou morte. Gorum caiu de lado, um corte na cabeça fazendo o sangue descer.
— Porra! Era melhor ter me deixado morrer, Gal! — queixou-se Gorum.
Kyle ficou quieto observando. Ele vinha suspeitando que o quase afogamento de Gorum pudesse ter sido algo a mais que um acidente.
— Muito bem, Gálius! — Kyle deu um pano para Gorum estancar o sangramento e o ajudou a ficar sentado. Pegou a espada que o filho deixou cair no chão e voltou-se para o mais novo. — Vamos ver se consegue me vencer também.
Kyle firmou sua postura e segurou a espada em riste, com atenção total nos olhos de Gálius.
O olhar severo de seu pai desmanchou a técnica de imaginar Lerifan. Gálius atacou duas vezes e teve os golpes bloqueados. Em seguida, Kyle deu um encontrão nele derrubando-o no chão. Quando ele olhou para o pai, encontrou a ponta da espada a um dedo de distância de sua garganta. Fora derrotado, novamente.
— De pé — disse Kyle. — Vamos de novo.
E assim, treinaram por mais uma hora até que no fim, Gálius tinha as mãos doloridas e o corpo todo suado.
Os três voltaram para casa e encontraram uma grande bagunça na sala. Tinha um fedor esquisito no ar, pior do que comida estragada. Kiorina estava dando lições de magia a Ector e Dora. Ector tentava conter as gargalhadas silenciosas, rolava no chão, com a barriga doendo de tanto rir.
Gálius, com uma mão sobre o nariz, indagou — O que deu nele?
Dorinha irritada, deu um chute nas ancas de Ector e saiu da sala batendo os pés. Gálius não viu direito, mas tinha a impressão que o cabelo da irmã estava verde. Kiorina tinha uma expressão desanimada e sentou-se, parecendo exausta.
— Bom dia, amor. Como foi o treinamento?
— Razoável. Tem mais um curativo para fazer na cabeça do Gorum. Ele tá lá fora no jardim.
— Pode deixar que eu faço — Gálius se ofereceu, antes que alguém pedisse para ele limpar aquela gosma verde espalhada pelo chão.
— Ector — disse Kiorina estalando o dedo — Você vai limpar essa bagunça.
A voz de Ector voltou, mas as gargalhadas morreram imediatamente. — Mas mãe, não foi culpa minha!
— Sua irmã vai ter muito trabalho para lavar o próprio cabelo. Então...
— Tá bom... Tá bom...
Kyle deu um abraço em Kiorina. — Você está todo suado.
— E desde quando você se importa? Lembra de quando viajávamos e ficávamos semanas sem tomar banho?
— É... — ela aceitou um beijo do marido.
Gálius foi saindo dali rápido, antes que tudo ficasse mais esquisito.
Encontrou Gorum cabisbaixo sentando num toco do jardim. Ele fazia carinho em Pãozinho.
— Porra, Gal! — ele coçou a cabeça — Era só a droga dum treino!
— Desculpa, mano, mas nosso tempo está se esgotando. Sei que logo mais vai chegar a hora de proteger nossa família. Temos que estar preparados.
— É... — concordou Gorum. — Você está certo.
— Deixa eu fazer o curativo — Gálius tirou o pano enrolado na cabeça. Usou aquele unguento verde de cheiro ardido no local. Gorum fez uma careta e gemeu. Em seguida, Gálius enrolou a cabeça dele com uma faixa de pano limpo.
— Vai ficar bom.
— Tá, tá... — Gorum empurrou o irmão de leve.
— E como você está? Superou o fora da Beluna?
— Eu pirei no dia, mas já tô melhor agora. E também, eu fui lá ontem.
— Você voltou lá?
— Voltei. Ela conversou comigo. Me pediu desculpas, mas quando eu tentei beijar ela, me afastou. Disse gostar de mim, mas que precisava de um tempo. — Gorum sorriu — E um tempo, irmãozinho, já é bem melhor do que não vê-la nunca mais!
Gálius balançou a cabeça — Olha, Gorum. Vai com calma dessa vez... Vê se aprende alguma coisa, tá? Vê se aprende a não fazer mais besteira! — acabou dizendo com mais raiva do que gostaria.
— Tá, tá! Eu aprendi minha lição, falou. Não precisa ficar assim...
Gálius calou-se, cruzou os braços e virou de lado.
— E a sua garota, como está?
— Ah... — suspirou Gálius — Não tenho tido muito tempo de me encontrar com ela. E... As coisas estão complicadas.
— Você teve lá no acampamento ontem, né?
— Vou quase todo dia. Aquilo lá tá uma loucura. Mas espero que dê tudo certo no final.
— E o que exatamente significa isso?
— Ainda não sei, mas andei pensando que algo como simplesmente sairmos todos nós, com eles, viajando para o norte em busca de um novo lugar para viver seria a solução mais fácil.
— E, porque não?
— Eu perguntei a mesma coisa pro Kalbin, mas ele está com outra ideia em mente. Ele não quer me contar... Talvez considere que haja um risco de eu deixar essa informação escapar para o oxivonu.
— Ele não confia em você?
— Eu acredito que sim, ao menos, em parte. Talvez seja melhor eu não saber de nada.
— É... Só espero que dê tempo de irmos na exposição.
— Exposição? Do que está falando, mano?
— Eu fiquei sabendo ontem, quando tava bebendo com uns amigos e esperando para falar com a Beluna.
— Exposição?
— É a exposição de pinturas do Rei-Deus.
A cor fugiu do rosto de Gálius.
— Pinturas do Rei-Deus?
— Por que essa cara, Gal?
— Não é nada... É só que eu lembrei de uma coisa.
— Você mente muito mal, maninho.
Gálius ignorou aquilo e saiu de lá apressado.
— Onde você vai?
— Tenho que ir trabalhar, lembra? — Entrou em casa, tomou um banho de gato, trocou de roupa, engoliu algo e saiu.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top