54 - Além de Várzea Alta

Gálius lutava para manter sua compostura. Por dentro, estava muito abalado devido aos acontecimentos do dia anterior. Sua raiva queria sair, se houvesse um descuido, ele poderia pular na garganta de Lerifan e colocar tudo a perder.

Além da confusão mental, seus ferimentos coçavam muito, o que era bastante irritante. Sua mãe havia feito curativos e usado alguns unguentos ardidos e suas feridas.

— Mas o que houve com você, jovem Gálius? — indagou o Oxivonu ao colocar os olhos sobre o rapaz. Ele entrou no amplo salão de onde Lerifan despachava suas ordens, no terceiro pavimento do Palácio de Areia.

— Me machuquei salvando uma pessoa que se afogava, ontem.

— Ora, mas não estava supervisionando a evacuação do gueto?

— Sim, oxivonu, isso aconteceu depois, no fim da tarde. Mas foram apenas alguns arranhões.

— Muito bem. O Rei-Deus obviamente favoreceu suas ações. Não seria bom que tivesse se afogado, não com tantas tarefas pendentes que ainda lhe cabem.

— Sim! Sou sempre grato ao Rei-Deus. Como posso servi-lo hoje, meu vonu?

— Quero que você vá ao acampamento dos silfos e fique de olho em como estão as coisas.

— Certamente.

— Acompanhe o oficial que enviarei para oferecer trabalho aos silfos.

— Trabalho?

— Ah sim! Quero iniciar a demolição e reforma do gueto depressa. Já obtive autorização do Rei-Deus para despender os recursos necessários.

Gálius sentiu seu estômago embrulhando.

Contratar as pessoas despejadas para demolir seus antigos lares? Isto é uma medida cruel.

— Algum problema, jovem Gálius?

— Não senhor, problema nenhum. A benção... — Gálius inclinou-se, fazendo menção de sair.

— Eu te abençoo.

Gálius saiu dali, descendo a escadaria ampla da sede do governo. Lá fora, se encontrou com o oficial mencionado pelo oxivonu. Era um sujeito magro, rosto fino e nariz grande e achatado. Ele estava montado em um cavalo selado e com manta amarela com a flor vermelha de cinco pontas bordada num padrão uniforme.

— Ah! Finalmente! — disse o homem, usando uma túnica amarela de oficial e o chapéu quadrado de mesma cor. — Monte — ele indicou outro cavalo ao seu lado.

Gálius pisou no arreio e subiu. Felizmente seu pai havia ensinado a montar. Quando era mais novo, muitas vezes o acompanhava no trabalho, que era de cavalariço. Ele estranhou estar assim do alto, fazia anos que não montava. Não havia muitos cavalos em Tleos, eram usados por um número restrito de oficiais civis e militares e, ocasionamente, por templários e conselheiros. No passado, houve um número muito maior de animais, mas o Rei-Deus editou uma lei restringindo o uso de montarias.

— Meu nome é Rimalbo e você é o conselheiro dos silfos...

— Conselheiro? — Gálius estranhou aquele título.

— Só um modo de dizer, rapaz. — Rimalbo fez seu cavalo andar pelas ruas movimentadas da área central.

— Meu nome é Gálius.

— Claro, Gálius... Eu o vi na competição. Seu amigo já começou causando muitas mudanças, não é?

Ele está se referindo a Lerifan? Meu amigo? Aff...

— É...

— Vai ser bom respirar o ar do campo, não acha?

— Suponho que sim.

— É bom apertarmos o passo, caso contrário, não vai dar tempo de voltar para o almoço. — Colocou o cavalo para trotar e gritou — A frente! A frente! — para abrir caminho entre os pedestres.

Gálius o seguiu.

Sujeito esquisito...

Assim que alcançou Rimalbo o oficial seguiu tagarelando. Eles cruzaram a cidade toda trotando, agora levantando poeira nas ruas de terra batida que ficavam além da parte central, toda pavimentada. Aquela porção da cidade tinha muitas casas modestas cercadas por jardins e quintais. Alguns pequenos proprietários criavam animais como porcos peludos, pequenas aves e um pouco de gado pequeno. Os cavalos finalmente deram sinal de cansaço quando começara a subir as ladeiras que levavam Várzea Alta.

Depois da subida árdua foram recompensados com a visão daquela campina e das fazendas que circundavam Tleos. Naquela campina o verde era a cor predominante, em contraste com os tons arenosos da cidade e do mar azul-esverdeado que a emoldurava. E realmente ali, havia ares mais puros que os de lá de baixo. Cruzaram com algumas carroças puxadas por colontos, um gado peludo, marrom, de pescoço longo, chifres espiralados pretos e olhos vermelhos, bem pequenos.

Pararam na margem de um riacho onde os cavalos mataram sua sede. Depois dali, atravessaram várias pontes de madeira sobre pequenos riachos e esta altura, Gálius já sabia tudo sobre a vida de Rimalbo. Ele havia crescido em Várzea Alta e seria um criador de porcos como seu pai, se não fosse um episódio numa negociação na feira em que ele demonstrou sinais de um entendimento intuitivo de matemática. O templário que negociava com a família dele ficou impressionado os cálculos que o menino havia feito de cabeça e, por curiosidade, aplicou alguns testes. Logo percebeu que uma inteligência daquelas não poderia ser desperdiçada e o tomou sob sua tutela. Rimalbo se instruiu e por fim, acabou arranjando trabalho junto ao tesouro de Tleos.

— Devo dizer que a soma disponibilizada para o empreendimento do oxivonu é mesmo impressionante. Há anos não vejo o Rei-Deus gastar tantos recursos.

— O oxivonu é mesmo muito persuasivo.

— Persuasivo? A coisa chega a ser escandalosa! Bem, não estou querendo dizer isso de um jeito ruim, sabe? Quem sou eu para criticar um oxivonu ou mesmo questionar o Rei-Deus... Mas esse gasto parece ser feito por alguém que não está pensando no dia de amanhã...

— É mesmo? Não fazia ideia. Mas o que poderia acontecer de ruim se os recursos acabassem?

Rimalbo encolheu os ombros — Muita gente sem receber salários? Alguma confusão? Não sei... Bom o Rei-Deus sabe o que faz, não é mesmo? Nossa visão é que é limitada... Tenho certeza disso. Não fosse verdade, não estaríamos aqui, não é? Após tantos e tantos séculos sob seu governo.

Gálius sentiu um frio na barriga.

A cada dia mais sinais apontam para o fim de tudo!

Agora estavam no fim da Várzea Alta. Passaram pelas últimas plantações até que a estrada voltou a ficar íngreme. Uma poeira fina de uma terra amarelada subia do choque dos cascos dos cavalos com aquela terra seca e fina. Subiram um caminho sinuoso entre pedras grandes. Do mesmo tipo que era retirado das pedreiras a oeste. Ali no alto, o solo era mais seco e arenoso, pois estavam longe dos riachos que cruzavam o vale abaixo. Lá do alto, podiam ver toda a extensão de campos cultivados formando quadrantes, aqui e ali. Os riachos cruzando o cenário e lá ao fundo, minúsculos, alguns dos prédios e cúpulas mais altos de Tleos contrastando com uma faixa de mar azul escura.

Foi um longo caminho. Agora a realidade dos silfos era ter que descer e subir, todos os dias para trabalhar em Tleos.

Era difícil sentir-se bem com tudo aquilo. Gálius sentia uma parcela de culpa naquilo tudo.

Talvez, se eu tivesse tido a coragem de matar Lerifan, nada daquilo teria acontecido.

Gálius suspirou enquanto Rimalbo falava coisas que nem sequer entravam em sua cabeça. Eles seguiram por mais alguns minutos.

— Nosso Pai, mas o oxivonu não gosta mesmo de silfos, não acha Gálius? Olha só pra esse lugar! — havia uma área plana entre as rochas da montanha. Pouca vegetação conseguia crescer ali em meio ao terreno rochoso. Umas poucas árvores de tronco baixo e retorcido. Um mato ralo amarelado e no meio daquele lugar desolado, centenas de tendas de tecidos coloridos abrigava o novo lar dos silfos.

Kalbin viu Gálius e veio recebê-lo. Seus sapatos e parte das calças estavam sujos daquela terra amarelada. — Nae, Muni!

— Nae, Kalbin — Gálius retrucou enquanto desmontava e depois inclinou-se para formar a típica vênia usada pelos silfos.

— Kalbin, esse é Rimalbo, oficial do tesouro de Tleos. Ele veio para coletar nomes de interessados para o empreendimento de demolição e reconstrução do gueto.

Rimalbo desceu do cavalo, limpou suor do rosto com a manga da sua túnica e ofereceu a mão para um cumprimento, sorrindo. Kalbin estendeu a mão de volta, sem sorrir.

O oficial tirou um livro da bolsa que trazia a tira colo e perguntou — vocês têm uma mesa e cadeira onde eu possa me sentar para trabalhar?

Kalbin o conduziu para perto de uma das barracas. Mostrou um toco cortado. Rimalbo sorriu, sem graça e se sentou ali, abrindo o livro sobre o colo. Vários silfos se aproximaram, curiosos, em especial, crianças. Alguns deles, ao verem Gálius, franziam o cenho, ou viravam o rosto. Uma recepção nada amigável.

O trabalho de Rimalbo não levou muito tempo. Formou-se uma fila, logo depois que Rimalbo revelou o valor do salário, algo muito mais alto que se esperava para um serviço desse tipo. O oficial especulava ser uma compensação devido ao despejo coletivo. Mas Gálius percebeu ser a forma que Lerifan havia encontrado de humilhar ainda mais aquele povo.

Eles não recusarão um valor tão alto, e logo estariam demolindo de seu antigo lar com as próprias mãos. Afinal, por que mandar um oficial tão longe para contratá-los? Se o mesmo emprego fosse oferecido no centro de Tleos, todas as vagas seriam rapidamente ocupadas por humanos.

O quanto mais Gálius compreendia Lerifan, mais ele o achava um crápula nojento.

Rimalbo ficou ocupado por algum tempo, enquanto isso, Gálius teve tempo para conversar com Kalbin.

— Como estão todos?

— Não está sendo fácil, Muni, mas vamos conseguir. Tem havido algumas divergências, sabe. — Kalbin mostrou o topo de suas mãos, roxas, escoriadas e com alguns ferimentos. — Os dissidentes foram devidamente amansados.

— Bú! — um silfo chegou por trás de Gálius dando-lhe um tapa no pescoço.

Gálius virou-se e não se surpreendeu demais quando reconheceu o Maduja. Era o mesmo sujeito, exceto por um olho roxo que parecia recente.

— O Maduja me ajudou muito nisso — explicou Kalbin.

Maduja finalmente cumprimentou Gálius com uma vênia.

— Olha Muni, eu realmente acreditei que você não ia conseguir me afogar.

— Não foi fácil, viu?

O silfo abriu um sorriso, como se agora, depois de tudo aquilo, fossem melhores amigos.

— Aquele Lerifan é um bosta! — disse Maduja — Pena que ainda não consegui convencer o Kalbin a fazermos uma rebelião e tomar o poder.

— Pare de falar besteiras, Maduja — Kalbin o reprrendeu.

— E então, Kalbin, qual o plano agora? — quis saber Gálius.

— Eu ainda estou pensando, Muni, mas esses altos salários poderão vir bem a calhar...

— É? O que pretende?

— Assim que tiver certeza eu conto para você. Por hora, vamos jogar o joguinho de Lerifan e faturar algum dinheiro.

— Certo.

— E Gálius, eu tive que contar ao Maduja sobre a Yté.

— Quê?

Maduja cresceu para cima de Gálius e o ameaçou — Que foi que eu te disse que faria se chegasse perto da minha prima, hã?

Gálius se encolheu e engoliu em seco e então, Maduja o cutucou na barriga e deu uma grande gargalhada.

— Te enganei, hein, Muni!

— Como assim?

— Sabe, essa coisa ver a morte de perto me ensinou uma coisa.

— É? O que?

— Que é preciso aproveitar a vida. Viver e deixar viver... Esse é o meu novo lema, Muni.

Gálius ficou olhando para Majuda, incrédulo.

— Não liga para ele, Gálius. A raiz da pequena morte costuma fazer isso. Deixa as pessoas meio piradas.

— Mas afinal? Por que você contou sobre a Yté logo para o Maduja, Kalbin?

Kalbin deixou um riso aparecer no canto dos lábios — Foi um teste, Muni. Além de ficar meio pirado, o Maduja também pode enxergar certas coisas.

— Enxergar? Mas...

— O ponto é que ele ia descobrir, de qualquer jeito.

— Eu vejo a sua aura, Muni. E ela é muito brilhante, carinha. Uma coisa espantosa mesmo... E aquele seu novo amigo, sabe? — apontou para o oficial — Ele é um sujeito muito esperto. Dá pra ver.

— Você consegue ver também que ele é um tremendo dum tagarela?

Os dois silfos riram daquilo e Maduja abraçou Gálius de um jeito pegajoso.

— Muni, Muni, Muni, Muni! Você é o cara!

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