50 - O vazio de um gueto
Gálius se sentia desconfortável naquele traje de oficial, as tiras de couro apertavam sua cintura e as botas marrons apertavam os dedos do pé. Mas era um desconforto pequeno, perto do que sentiu ao ver aquelas crianças chorando, desconsoladas, arrastadas pelos pais para fora de seus lares.
— Eu quero meu quartinho! Minha cama! — a menina era arrastada por seu pai para fora da casa. Outra reclamava do pé de fruto-gul que não podiam tirar do quintal.
Não só isso, a cara da maioria dos silfos não era de muita satisfação com o que vinha acontecendo. Eles todos já eram oprimidos naquela sociedade, mas aceitavam aquilo e tiravam algo em troca. A vila deles, apesar da aglomeração, era um lugar feliz. Um lugar onde Gálius brincou durante toda sua infância. Um lugar que recebia sempre uma generosa brisa do mar. De onde sempre podiam escutar o constante murmurejo das águas se batendo contra as pedras.
Praticamente não houve problemas com silfos adultos, mas os guardas que o acompanhavam tiveram que prender dois deles, que se recusaram a sair de casa. Isso fez Gálius perceber haver limites para a influência de Kalbin.
— Não os machuque! — Gálius foi enfático com os guardas, mas ele não era superior deles de fato, apenas um encarregado geral, enviado pelo oxivonu.
Um silfo com os lábios crispados se aproximou de Gálius e cuspiu no chão, perto de seus pés.
— Muninediir or tap! Ireabula, yo!
Gálius ignorou aquele insulto direto. Um pai que levava uma criancinha chorosa no colo também o xingou à distância.
Ele repetia o que lhe cabia — Tenham paciência. A mudança será para melhor.
O lugar para onde os silfos eram conduzidos era longe e afastado do mar que eles amavam mais-que-tudo. Era necessário atravessar toda a cidade e depois uma boa parte da zona rural.
Gálius estivera lá, dias antes, para indicar o local onde os poços seriam cavados. Cerca de vinte voluntários escolhidos por Kalbin foram os primeiros a deixar o gueto para ir preparar o acampamento que receberia os demais. Era um pedaço de terra descampado e pedregoso, afeito a pouca vegetação.
Agora, o dia da evacuação final havia chegado. Nashay o reconheceu, a despeito dos trajes. A idosa veio caminhando lentamente em sua direção. Um dos guardas colocou-se na frente dela, pensando que ela poderia incomodar o representante do oxivonu.
— Deixe-a passar — Gálius ordenou.
Nashay trazia uma pequena trouxa com seus pertences. Usava um manto colorido, mas nada sobre a cabeça, deixando seus cabelos brancos escorridos emoldurando seu rosto muito marcado pela idade. Chegou perto dele, colocou a trouxa no chão e deu um forte abraço dizendo algumas palavras em sílfico, para que os guardas não entendessem. — Muni! Eu vejo que aquela ira já se aplacou. Mas será que você já aceitou mesmo seu destino?
— Eu não sei Nashay... Estou apenas fazendo a minha parte. Kalbin prometeu fazer a parte dele.
— Sim, ele a fará. Sei que quando chegar a hora, você fará a coisa certa. — ela sorria, parecia muito tranquila.
— Assim espero. Não está chateada por ter que deixar seu lar?
— De forma alguma, o único lar que tenho, de verdade é esse velho corpo. — ela piscou os olhos baços de tom cinzento — O resto, vem e vai, como as marés. Tenho fé que você verá as coisas assim, um dia.
Gálius conseguiu sorrir de volta — Pessoas, como você, são um exemplo! Deveriam ser reverenciadas.
— Não, Muni... Toda nossa reverência deve estar voltada para a natureza, que é a obra maior da deusa mãe, apenas isso.
— E o Rei-Deus?
— Ah, ele se esforça para fazer o melhor para seu povo. Mas a natureza é maior que o mais poderoso dos reis. Um dia, a terra poderia tremer e engolir toda a cidade. Não há nada que um rei, mesmo poderoso, possa fazer contra isso.
— Sua sabedoria sempre me surpreende.
— Eu vivi muitos anos... É só isso. — ela sorriu mostrando dentes ainda corretos, apesar de amarelados. Humanos com aquela idade teriam sorte de ter algum dente sobrando em toda a boca. — Não fique assim chateado devido ao choro das crianças e do apego de alguns de nós. Cada experiência vem para ensinar algo diferente a cada um. É só mais um dia de aprendizado nessa escola. E por mais que vivamos, sempre nos resta algo para aprender.
Então ela abaixou-se, pegou a trouxa e seguiu seu caminho.
— Adeus, Nashay.
— Venha nos visitar, Muni.
Gálius acenou para ela e ficou olhando para o local, agora silencioso, praticamente vazio. Não tinha mais nenhum silfo ali, ninguém para contemplar o vazio se não ele próprio.
— Podem ir, já não restou ninguém aqui para me ameaçar — dispensou os guardas e seguiu andando pelos becos vazios do gueto, sem saber bem para aonde ia.
A vida do gueto se foi. As crianças brincando, as soldas cantarolando, os jogos e conversas.
Gálius chorou. A mágoa tomou conta e logo se viu lembrando de seu amigo, Yoltesh. De como brincavam, correndo por todos os becos do gueto. Dele o ensinando a falar sílfico. E dele morto. E lembrou-se da promessa que fizera. Ele havia prometido que Lerifan iria pagar por aquilo.
Mas uma vingança não veio... Eu me tornei seu aliado. Ajudei-o a vencer a eleição. Esse gueto morto! É minha culpa! E o pior: em poucos dias, tudo isso será demolido. Não vai sobrar nada.
Gálius sentou-se ali numa escadaria de um dos becos e chorou sozinho.
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