5 - O Templo de Shind
Era meio-dia quando Arifa e dois blackwings se destacaram do comboio que ia para Kamanesh. O objetivo do desvio era uma rápida passagem pelo Templo de Shind. O rei confiara a Arifa uma carta a ser entregue ao Prior Yaren.
Cerca de uma hora depois, seguindo a trilha, as montarias chegaram à encosta íngreme e rochosa do planalto de Or. As escadarias naturais ainda ficavam a horas de caminhada no sentido norte, mas não precisariam ir tão longe para subir. Havia um pequeno estábulo, trancado por fora, com uma viga de madeira e também uma pequena casa de madeira com uma torre. O local serviria de refúgio a algum viajante passar a noite, mas seu propósito era mesmo abrigar o sino.
— Espere aqui, senhorita — disse Mirth, um cavaleiro veterano de meia idade.
Arifa parou seu cavalo e aguardou enquanto os dois verificavam o local em busca de alguma ameaça. Ela olhou para cima e viu as duas longas toras de madeira. Lá no alto, pareciam palitos. Entre elas, a gaiola, balançando suavemente ao sabor do vento.
A dupla retirou a trava do celeiro, examinou o interior e então, Rencock, o mais jovem, a chamou — Pode vir, milady.
Arifa franziu o cenho, detestava ser chamada assim. O estábulo tinha pé direito duplo e no alto, janelas gradeadas que deixavam a luz entrar. Havia tonéis com água cobertos por lonas e uma jarra de metal grande para apanhar dela. O cheiro não era forte, pois o lugar não era muito utilizado. Beberam um pouco e colocaram uma boa quantidade no pequeno cocho para dar de beber às montarias.
Mirth retirou o elmo negro com asas na lateral e depois o forro que usava por baixo. Era calvo e o cabelo que restava nas laterais era grisalho. Lavou-se aliviado e disse — Vocês podem subir. Ficarei aqui embaixo cuidando dos cavalos.
Não era necessário ficar ali embaixo, pois os cavalos podiam ser trancados no estábulo. A verdade é que Mirth tinha medo de alturas.
— Muito bem — concordou Rencock. — Vou soar o sino.
Foi até a casa e puxou a alavanca que fez o sino da torre ressoar. Não demorou muito até que ouvissem o barulho do mecanismo sendo acionado, lá no alto.
— Já andou nessa coisa, milady? — indagou Rencock coçando o cavanhaque. Não fosse seu narigão vermelho, seria bem apessoado.
— Não. — ela engoliu seco observando a gaiola se descendo lentamente e resmungou. — Já pedi para me chamar de Arifa.
— Ah sim, claro.
A gaiola finalmente chegou. Não era grande, podia transportar no máximo seis pessoas de cada vez. Era um tablado de madeira reforçado com metal coberto por um gradeado de barras de metal bem finas. Lá dentro estava um rapaz magricela. Ele puxou uma alavanca para deter a descida e avaliar os visitantes.
— Quem são vocês?
— Somos cavaleiros de Kamanesh e viemos em nome do Rei.
O rapaz os olhou e destravou o freio, fazendo a gaiola balançar antes de começar a descer novamente, até tocar o chão.
Abriu a portinhola e ficou encarando Arifa. Ela entrou e Rencock se colocou entre eles e finalmente ele desviou o olhar.
— Oi, sô Rencock — o rapaz o reconheceu. O cavaleiro o cumprimentou de volta com um aceno.
O rapaz tirou uma sineta do casaco e tocou. Um pouco depois, veio um tranco e a gaiola começou a subir, balançando um pouco. Subia lentamente e aos poucos viam a casa e o estábulo ficando mais distantes. A princípio, Arifa estava tranquila e confiante, afinal, já havia feito um duro treinamento para acostumar-se à ação em lugares altos. Mas veio um vento forte e cortante que fez a gaiola trepidar e depois balançar um pouco mais. Arifa e Rencock agarravam as barras com força.
Conforme subiam, podiam ver ao longe, a linha da estrada cruzando a vegetação. O contrapeso passou por eles, indicando mais ou menos a metade do caminho. Ao subir mais, puderam ver a mancha de um povoado, talvez fosse Tebans, ou então Sorja. Não deixava se der uma linda vista, ainda que nenhum dos dois estivesse à vontade para realmente apreciá-la.
Lá no alto, entre as duas toras de madeira que sustentavam o mecanismo, havia uma meia-ponte de madeira estreita presa por correntes. O fim da ponte chegava bem perto da gaiola, mas ainda ficava a uma distância que oscilava entre trinta centímetros e meio metro. Arifa olhou para baixo e sentiu uma forte vertigem.
— Pelos deuses! — ela sussurrou.
— Calma moça, vô puxá mai'um tiquinho. — o rapaz pegou uma haste com um gancho e prendeu na borda da ponte, puxou um pouco e prendeu o outro lado numa das barras da gaiola. Isso fez com que ela balançasse bem menos e se aproximasse da ponte, deixando o espaço vazio de um passo para ser superado.
Ele destravou a outra portinhola e passou para a ponte. Ofereceu a mão para ajudá-la a descer. Quem aceitou foi Rencock, que já havia ido àquele local muitas vezes, mas não contava isso a ninguém. Vendo que Arifa estava paralisada, tomou-a pelo braço e puxou gentilmente.
— Venha, Arifa. Está tudo bem.
Arifa fechou os olhos e cruzou o abismo tentando não pensar na queda. Seguiram pela meia-ponte, que oscilava e rangia um pouco, mas era bem mais firme que a gaiola. Arifa finalmente deixou a ponte sentindo o coração pulsar forte. Estava incomodada com o fato de ter sentido aquela vertigem. Julgava não possuir problemas com alturas... Cobrou-se mais força e poder de concentração, poderia ouvir a Mestra Ailynn a repreendendo. "Aquele que domina o Jii deve antes dominar a si mesmo. Domar suas emoções, enterrar seus medos".
Rencock entregou uma moeda de prata ao rapaz, que agradeceu com uma dúzia de vênias e muito obrigados.
— Você é muito generoso — observou Arifa.
— É o que resta ser, em tempos tão difíceis.
Arifa não havia gostado do modo que o rapaz havia olhado para ela, mas notou que as outras pessoas que trabalhavam por ali, naquele pequeno entreposto, estavam todas magras. Eram tempos de necessidade. O rapaz foi logo soltar o par de bois barbados que estavam presos à roda que dava movimento ao mecanismo. Um outro rapaz veio ao encontro dos dois trazendo uma montaria magra.
— Um cavalo paí até o templo, meu senhô? — ofereceu.
Rencock aceitou mais para ajudar do que por necessidade. O caminho entre o entreposto e o templo era bem curto.
— Monte, senhorita. A acompanharei à pé.
Arifa aceitou a gentileza, mas como sempre, desconfiada de qualquer homem.
O local reunia apenas umas quatro casas modestas e um galpão. Ninguém dormia ali, por causa das assombrações. Era apenas usado para armazenar mercadorias que subiam e desciam pelo elevador ao menos algumas vezes por mês. Subiam sal, melaço, peças de metal e uma infinidade de coisas que não havia ali em cima, e desciam, principalmente frutos e nozes colhidos da antiga floresta.
Além do entreposto, havia um pequeno trecho de descampado até a floresta de Shind que surgia como um imenso paredão de árvores altíssimas e milenares. Os ares da floresta eram refrescantes. Arifa respirava com gosto e admirava as enormes árvores ao redor. Havia o canto de pássaros e sons de pequenos animais.
Antes que pudesse desfrutar mais daquele ambiente, chegaram até a clareira onde havia a base militar construída pelos nortenhos em torno da qual construiu-se o Templo da Conversão. Perto deste, havia poucas dúzias de casas que agora formavam um pequeno vilarejo.
O templo era a construção que mais chamava a atenção: largo e alto, todo feito em madeira, era quadrado e tinha três pavimentos. O portão, também quadrado, era todo esculpido em baixo relevo revelando uma intrincada trama de formas geométricas, que pareciam terem sido desenhadas por um matemático.
Havia muitos monges por ali. Usavam mantos simples, num tom bege desbotado como os dos Naomir, mas sem as faixas listradas. Todos tinham os cabelos raspados e não usavam barbas. Arifa apeou e um monge jovem conduziu o velho pangaré para uma sombra.
Rencock parecia à vontade ali, cumprimentou vários monges e conduziu Arifa para o interior do templo.
— Pelo visto, você vem muito aqui...
— Sempre que posso — ele revelou.
— Então, você... é...
— Sim, sou devoto do Deus único.
Arifa não fazia ideia. Apesar da pouca convivência com ele, nunca havia percebido qualquer indício daquilo. A verdade é que aquela nova doutrina era vista com desconfiança em Kamanesh e com desgosto, na capital e em Whiteleaf.
Superficialmente, não diferia muito do neonaomirismo, a principal doutrina de Kamanesh depois que o Rei Dwain reformou a igreja, há cerca de duas décadas passadas. Mas o fato de cultuar um Deus único e pregar o perdão, mesmo aos inimigos, era algo de difícil assimilação na cultura do reino.
A existência do templo e proteção a seus fiéis eram garantidos por decreto real, mas na prática, ocorriam incidentes relacionados à intolerância dos demais ao novo credo. Não havia proibição por parte do rei, mas o líder da religião, o Prior Yaren, não incentivava a pregação fora dali.
O prior fora avisado sobre a chegada de visitantes e veio recebê-los. Arifa o reconheceu. Estava bem diferente de quando vivia em Kamanesh. Tinha os cabelos raspados e estava mais magro. Seu manto era tão simples quanto o dos demais monge e não havia nenhuma forma de distingui-lo deles. Abriu um sorriso sincero.
— Sejam bem-vindos a esta humilde casa!
Não era um lugar luxuoso como os templos de Lacoresh ou Kamanesh, mas o piso de tábua corrida lustrosa e encerada não dava um aspecto pobre ao local.
Rencock fez uma vênia e beijou a mão de Yaren, mas Arifa apenas apertou sua mão.
— É a senhorita Arifa Desbrin, estou certo?
— Sim, Prior Yaren.
— Apenas Yaren por favor... É difícil dissuadir os devotos do uso desse título, mas sinceramente não me faz a menor falta.
Eles já haviam se encontrado no passado, mas não se conheciam bem. Yaren notou que ela estava amadurecida.
— Por favor — indicou o caminho. Passaram pelo centro do templo, onde o piso formava um quadrado de madeira clara, de onde ele fazia as pregações. Era rodeado por quatro alas de bancos de madeira bem bonitos, esculpidos com formas geométricas.
Passaram por ali, os passos ecoando mais na parte central. Arifa olhou para o alto e viu que bem acima, ficava o telhado acima do terceiro pavimento. Abaixo dele, numerosas janelas que iluminavam a parte alta e deixavam a luz entrar até embaixo.
Apenas o miolo do templo era todo aberto, promovendo também a circulação de ar. Nos fundos do templo, assim como nas laterais, havia várias salas e os acessos para os pisos superiores. Em nenhuma delas havia portas, mas eram separadas dos outros ambientes por cortinados de tecido cru, sem tingimento.
— O rei pediu que eu tivesse uma conversa particular com o senhor.
— Ah sim, compreendo.
— Quer usar uma das salas para orar, caro Rencock?
O cavaleiro assentiu e caminhou para a sala adjacente desafivelando as correias que prendiam as peças de sua armadura. Seria uma boa oportunidade para algum descanso também.
A sala escolhida por Yaren estava ocupada e uma figura toda encapuzada, que parecia estar de joelhos no centro, levantou-se para sair. Arifa sentiu um cheiro estranho, azedo e rançoso. Em seguida veio um arrepio quando o homem passou ao seu lado. Ele mancava e tinha o rosto coberto por um véu escuro. Não pôde sequer ver seus olhos. Quando ela percebeu, já usava o Jii para sondar a mente daquele estranho, mas nada captou. Isso a deixou apreensiva. De fato, não era alguém normal.
O ambiente da sala era bem iluminado por uma janela que dava para os fundos e podia se ver além dela um algumas casas e mais adiante a floresta. Yaren foi até a parede esquerda, onde havia uma prateleira com várias velas apagadas, mas uma acesa. Usou-a para atear fogo num incensário de metal que balançou enquanto expelia fumaça branca e cheirosa.
Havia oito bancos, forrados com penas de ganso e cobertos com tecido escuro e aveludado. Yaren sentou-se no banco mais próximo, muito ereto, enquanto Arifa passou por cima do tapete redondo de palha no centro e escolheu um lugar perto da janela, para respirar.
Yaren aguardou, compenetrado. Arifa ainda estava incomodada com a figura estranha que ali estava, mas retomou o foco e disse — Edwain enviou uma mensagem, mas só como pretexto para que pudéssemos conversar um pouco.
— Muito bem. O que houve?
— Alguém fez uso do Jii para uma tentativa de assassinato contra Edwain.
— É mesmo?
— Sim. Além disso, o ataque plantou desconfiança nos súditos. O assassino, após falhar, bradou que Edwain era um impostor, um demônio.
— Compreendo. — assentiu, quase imóvel. — ele deseja que eu vá até Lacoresh?
— Não. Disse que o senhor tem seu papel a cumprir aqui mesmo.
Yaren sorriu ao ouvir aquilo e aguardou.
— Na verdade, ele me pediu uma coisa. Ele quer que eu encontre o Príncipe Kain.
— Certo.
— Antes de partir, o príncipe esteve aqui, não é mesmo?
— Sim, na verdade, ele me ajudou a desenhar este templo, na ocasião.
— Então tiveram tempo de conversar?
— Muito. Kain é um missionário, assim como eu. Agiu como tal, toda sua vida. Mesmo idoso, decidiu partir numa jornada perigosa.
— Jornada? Para onde.
— Não sei ao certo, acho que isso depende.
— Do que?
— De onde estivesse o seu filho.
— Ele tinha um filho? De antes do casamento com a Rainha?
— Sim, de muito antes. Mas na verdade, coincidências à parte, a mãe era a própria Hana.
Arifa ficou boquiaberta. Nunca soube daquilo.
— Então, ele seria o verdadeiro herdeiro de Lacoresh? — disse erguendo um pouco o tom de voz.
— Bem, essa questão de herdeiros é controversa. Há quem diga que os verdadeiros herdeiros sejam da linhagem dos Blackwing, que foi usurpada há cerca de quatrocentos anos pelos Greysnow. O velho Rei Dwain acreditava nisso.
— Entendo. Mas então, sobre Kain. O senhor sabe para onde ele foi?
— Ele me disse que iria em Kamanesh primeiro e depois Tisamir, mas acreditava que seu filho pudesse estar na necrópole. Ou que talvez lá, houvesse alguma pista sobre seu paradeiro.
— Falou mais alguma coisa? O motivo de ir nestes lugares?
— Ele queria conversar com Josselyn. Disse que precisava ter certeza, antes de continuar.
— Josselyn de WaterBridge? — Arifa indagou surpresa, a imagem dela oferecendo um lenço ainda estava vívida em suas memórias.
— Ela mesmo. Viajamos juntos uma vez. Estivemos na necrópole para resgatar a Capitã.
— Sim, sei dessa história. Eu sei...— ela não sabia o que pensar. Por que motivo o príncipe Kain precisava vê-la?
— Eu tentei dissuadi-lo, ele não tinha coisas boas em mente, tentei mostrar para ele que não valia a pena, que ele precisava exercitar o perdão, mas ele não me deu ouvidos. Tenho esperanças de que ao retornar a sua terra natal, possa ter pensado melhor no assunto e ter desistido em prosseguir com a busca.
Arifa ficou em silêncio pensando no assunto. Ao menos agora sabia onde procurar, mas a ideia de ir até a necrópole era assustadora.
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