49 - A colmeia de cem colmeias
O trio conseguiu recuperar duas montarias e seguiu para Kamanesh. Arifa dividia um cavalo com Josselyn enquanto Kerdon seguia com o outro. Kerdon tentava encontrar palavras para explicar a Josselyn e Arifa onde esteve e o que aconteceu, mas foram experiências tão estranhas, que viu faltarem palavras para descrevê-las, além disso, seus pensamentos estavam confusos. Era como quando alguém acaba de acordar e se lembra nitidamente de um sonho longo e complexo, então, à medida que pensa no assunto, muitas coisas que eram lógicas e faziam sentido no contexto onírico desmoronam, e, como um castelo de areia coberto por uma onda, cenas inteiras do sonho vão se apagando, uma após a outra, até que resta apenas uma vaga impressão e algumas imagens de toda a experiência.
Pobre professor Kerdon! Nada do que diz faz sentido! Será que ele enlouqueceu?
— Como assim Kerdon, não está dizendo coisa com coisa! — informou Josselyn.
— É difícil explicar. Era outra dimensão... Tudo tinha cores diferentes, mas não eram diferenças visuais apenas. Eu fui em Kamanesh, mas quando cheguei lá, todas as construções eram diferentes. Não havia gente lá, mas outras coisas. No início, eu não entendia nada do que falavam, então, a Rayera me ajudou a entender.
— Rayera?
— A senhora que vive no medalhão... Vocês vão achar que estou maluco, eu sei.
— Não — disse Arifa apontando para o próprio medalhão — eu te entendo. Eu quase endoidei quando o Iovük começou a se comunicar comigo.
— Iovük?
— É, o velho que mora no meu medalhão.
— Ah, tá...
— E aquela criatura? De onde você tirou aquilo? — questionou Josselyn — eu nunca vi nada assim.
— Era meu amigo, eu acho. Ele me mostrou a colmeia.
— Colméia? Como assim, de abelhas?
— Não... Eu não consigo explicar. Acho que era uma colmeia de almas.
— Colmeia de almas? Como assim, Kerdon?
— É complicado, Jô. Era a colmeia de cem colmeias, de mil colmeias... E que faziam uma escada entre dez mil lugares.
Ele só fala em colmeias! Está pirado! A não ser que...
— Quê? — Josselyn estreitou os olhos. — Acalme-se Kerdon, explique direito.
— Tudo fazia sentido! Ou pelo menos parecia fazer sentido, mas agora que estou aqui, não consigo entender mais...
— Acredito que onde você estava — arriscou Arifa — sua mente se expandiu, sabe, como o Mestre Dornall costumava ensinar. E agora que voltou, ela encolheu, então, as coisas que você sabia não cabem mais aí dentro.
— É pode ser... Enfim. Esse lugar, era um pouco parecido com aqui, onde estamos, mas, ao mesmo tempo, era muito diferente. Eu fui em Homenase. Minha cidade estava esquisita. Tinha rios de água no lugar das ruas, as pessoas voavam, era muito louco.
— E como você conseguiu voltar?
— Só voltei graças à ajuda de Rayera. Ela disse, que os outros medalhões iam indicar o caminho, já que estão fortemente conectados entre si. É uma conexão tão forte que vai além da barreira entre as dimensões. Mas eu juro que pensei que quando voltasse, muito tempo ia ter passado. Até agora não acredito que só sumi por cerca de um minuto.
— Sua história é bem maluca. Admito que se não fosse essa barba toda aí ia ser mais difícil de acreditar — disse Josselyn.
Kerdon passou a mão na barba e exclamou — Nossa! Eu tô barbudo!
— Ué? Você não deixou crescer lá?
— Não me lembro de ter barba naquele lugar. Eu nem sei se tinha um corpo igual a esse... Deixa prá lá. É muita loucura!
— Você não ficou mal assim — disse Arifa, tentando animá-lo.
— Valeu, Milady.
Arifa riu daquilo. Normalmente se irritaria de ser chamada assim, mas por algum motivo, não foi assim que se sentiu quando ele falou. Aqueles olhos esverdeados dele eram esquisitos, mas não conseguiram tirar de seu rosto a simpatia de sempre.
— Pelos Deuses, Kerdon! Obrigada! Você salvou nossas vidas. Eu achei que ia morrer hoje...
— Eu não fiz nada a não ser comer grama e rolar no chão. Mas meu amigo deu sua vida para nos salvar daquela coisa.
— Como ficou amigo dele, consegue se lembrar?
— Foi logo que eu cheguei. Eu estava com fome e vi umas plantas que pareciam cogumelos. Parei para comer e achei embaixo delas um ovo brilhante. Era muito bonito, então, eu o peguei. Logo depois, o ovo rachou e uma versão miniatura do meu amigo surgiu ali. Saiu logo andando pelo meu braço e ficou um tempo morando no meu ombro. Andei muito, muito até encontrar outras pessoas e ele vinha crescendo bastante, durante todo esse tempo. No final, vocês viram o tamanho que ele ficou.
— Nossa que triste — Arifa fungou — era um bichinho que você cuidou desde bebê.
— É, mas foi mais como se ele cuidasse de mim, e não o contrário.
— Triste, de qualquer forma — ela repetiu.
— Não, nem tanto. Ele voltou para a colmeia. Está bem, posso sentir.
— Se é assim, melhor. — ela encolheu os ombros.
— É... É assim.
— Você ainda consegue falar com ela, digo, a senhora do medalhão? — indagou Arifa.
Kerdon se concentrou por um momento, mas não aconteceu nada. — Não agora. Mas lá, demorou meses. Havia um zumbido. Depois, foi como se eu ouvisse sussurros. Demorei muito para entender estar falando com alguém e não comigo mesmo.
— Ela chegou a aparecer para você?
— Não, mas sua voz foi ficando mais clara. Era uma voz de uma pessoa velha, calma e paciente. Ela me disse para eu ficar tranquilo. Que tudo ia dar certo no final. Disse que me ensinaria a usar o medalhão, mas que isso ia levar tempo. Eu treinei muitas coisas. Usei o medalhão para saltar entre as colmeias. E outras coisas também. Um dia, ela disse no meu ouvido: "chegou a hora, Kerdon. Monte e se prepare." Então ela disse "vire para lá. Está vendo a linha?" eu demorei para enxergar, então vi uma fraca linha luminosa saindo do medalhão e indo para além do horizonte. Cavalgamos juntos na direção da linha até que ela me disse para abrir o portal onde a linha se dividia em quatro. E BAM! Eu atravessei já dando de cara com aquele demônio horroroso. Eu senti que meu amigo ficou furioso e descontrolado e caí rolando quando eles se atracaram. Quando consegui ver o que estava acontecendo, o demônio já estava morto e meu amigo, nas últimas.
— É loucura mesmo... — disse Arifa, ainda sentido pena da criatura.
— Bom — disse Josselyn e suspirou— lá está Kamanesh! Confesso que pensei que nunca mais voltaríamos!
— É mesmo — disseram Kerdon e Arifa ao tempo e depois deram risada daquilo.
Ao longe, viram a Torre Celeste acima da muralha e o rio fluindo para fora dela.
Mas ao invés de sentir que se aproximava de um lugar protegido, Arifa teve uma sensação terrível.
Não há mais lugares seguros! Kamanesh deve ser um dos lugares menos seguros de todo o mundo! É como se uma coisa maligna estivesse com os olhos fixos na muralha. Tudo o que quer é derrubar e conquistar.
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