47 - Demônio de fogo
A recuperação de Zane seria lenta e não dava para ficar no templo por semanas, aguardando-a. Ele ficou sob os cuidados de Yaren e seus seguidores enquanto Arifa, Josselyn e Kerdon deixaram o templo para retornar a Kamanesh. Os medalhões que levavam, cujos poderes ainda eram um mistério, eram uma esperança para ajudar a cidade a se defender das crescentes ameaças. Havia uma tempestade nervosa se formando, aquela manhã. O trio teve que fazer duas viagens para descer para a base do planalto, usando a gaiola. Josselyn e Arifa desceram primeiro. Arifa não conseguia se habituar àquela coisa, e fez todo o trajeto de olhos fechados.
Depois ficaram de mãos dadas, olhando a gaiola subir para buscar Kerdon.
— Como se sente? — Josselyn indagou.
— Estou melhor. Ele não manifestou sua presença desde a última vez. Mas ainda estou preocupada...
— Com o que?
— Não sei, tudo. O futuro... Tudo parece estar piorando. Não sei até quando iremos resistir.
— Nós temos que ser fortes e temos que fazer isso por todos aqueles que não podem lutar, os velhos, as crianças... Simplesmente não podemos desistir.
— Eu queria que você estivesse sempre comigo, Joss, para me passar essa confiança.
Josselyn se inclinou e deu um beijo carinhoso em Arifa. — Prometo que estarei sempre com você. — sorriu.
Arifa ficou com as orelhas vermelhas — Seu nariz está um gelo.
— E você está quente, o que é isso, febre?
— Não sei, acho que é o medalhão. — Arifa pegou a mão de Josselyn e colocou sobre no lugar em que o medalhão estava, abaixo de suas roupas.
— Ele está quentinho.
— Ele me protege contra o frio.
Então, Josselyn se afastou de Arifa. Kerdon já estava chegando. Josselyn ficou andando de um lado para o outro, sentindo o peso da caixa com os demais medalhões na bolsa que levava a tira colo.
Kerdon desceu do elevador e disse — Eu podia ficar o dia inteiro subindo e descendo nessa geringonça.
Arifa fechou a cara.
— Olha — ele disse, bem-humorado — vocês duas não precisam ficar assim só por minha causa. Já saquei a um tempão o que está rolando...
— Rolando? Não tem nada rolando — Josselyn respondeu com rispidez.
Kerdon chegou perto do ouvido da amiga e disse — Me engana que eu gosto, hahá.
Josselyn respondeu dando um soco no ombro dele.
— Ai, ai! Você pode me socar, Jô, mas não vai mudar os fatos. — E então disse perto do ouvido dela — A única coisa que eu desaprovo é o fato dela ser novinha demais.
— Vai cuidar da sua vida, Kerdon! — Josselyn deu passos largos em direção ao estábulo onde haviam deixado as montarias. Constatou estarem bem cuidadas, o pessoal descia lá de cima para dar comida, água e até limpava os cochos.
"Vamos menina" ela comunicou-se com a sua égua "é hora de cavalgar". O animal relinchou, animado. Em pouco tempo, colocaram as selas e arreios e estavam prontos para partir.
A primeira hora de cavalgada foi tranquila. Conversaram um pouco a respeito do demônio que vivia no templo de Yaren.
— Conheço gente que colocaria fogo naquele lugar se soubesse que Yaren abriga um demônio — Kerdon ponderou.
— Principalmente o pessoal da Igreja de Lacoresh — concordou Josselyn.
Arifa não prestava muita atenção na conversa e ouviu um aviso dentro de sua mente "cuidado!". Imediatamente olhou em volta até que viu algo no céu, vindo atrás deles.
— Pelos deuses! O que é aquilo?
Havia uma linha de fumaça, lentamente, cruzando o céu. Na frente dela, uma chama.
— Não sei — respondeu Kerdon — Mas está vindo em nossa direção.
— Mas que droga! — Josselyn cutucou a barriga da água para ela correr mais.
Kerdon e Arifa fizeram suas montarias apertar o passo, mas o esforço foi em vão. A chama voadora se aproximava deles, e agora que estava mais perto, viram que tinha asas, asas de fogo.
— Aquilo é um demônio? — Arifa não tinha certeza.
— Parece que sim, e é grande!
Josselyn virou o cavalo e diminuiu a velocidade — Melhor a gente se preparar então! — Disse e desmontou.
Arifa e Kerdon fizeram o mesmo. O demônio se aproximava, em grande velocidade e cada vez mais podiam ver detalhes. O bicho era grande, podia bem ser um dragão, ou coisa do tipo. A envergadura das asas era impressionante, o corpo esguio, avermelhado e espinhoso. As asas queimavam deixando um rastro de fumaça escura atrás de si.
Josselyn sentiu ser um oponente forte demais para eles e suou frio. Então, veio a ideia desesperada de usarem os outros medalhões.
— Kerdon, põe isso aqui — ela entregou um dos medalhões às cegas.
Kerdon pegou o objeto pela corrente e sentiu ser mais pesado do que aparentava. Enquanto ele o vestiu, Josselyn pegou um deles e colocou também.
Para ela, o choque foi imediato. Sentiu seu coração afundar como se quisesse ir para debaixo da terra. Suas pernas bambearam, devido à vertigem que sentiu.
Kerdon colocou seu medalhão e olhou ao seu redor, confuso. As cores do mundo, a pradaria verde, as chamas vibrantes do demônio, e tudo mais, ficou desbotado, cinzento. O tempo parecia congelado. Ele olhou o demônio se aproximando, cada vez mais, mergulhando em direção a Arifa. A boca enorme aberta, cheia de dentes pontudos e escuros. Após deixar de ver as cores, as coisas começaram a se dissolver. A imagem de Arifa, desesperada ficou fora de foco. Josselyn também. O demônio foi se desfazendo em pleno ar. O céu ficou escuro.
— Eu tô morrendo? — disse para si mesmo — e ouviu a própria voz ecoar de maneira estranha — morrendo, rrendo, endo...
Josselyn olhou para o lado e viu que Kerdon desapareceu. Sumiu, sem deixar vestígios.
"Kerdon?" transmitiu seus pensamentos por telepatia. "Kerdon! KERDON!" e nada de resposta. Ele não estava ali, invisível ou algo do tipo. Simplesmente havia sumido!
Enquanto isso, Arifa ignorava as ações de Josselyn, assim como o desaparecimento de Kerdon.
O demônio se aproximava e ficou claro que ela era o alvo de sua investida. Sentiu-se como um coelho sendo atacado por uma águia, sem chance de escapatória. "Vamos derrubá-lo" escutou o sussurro de Iovük em seu ouvido. "abra os braços, estique as mãos, espalhe os dedos..." instruiu o espírito.
Arifa obedeceu e sentiu uma forte energia fluir por seu corpo. Uma força totalmente diferente daquelas centenas de fagulhas de fogo vivo que evocou no santuário de Dashmiir. Eram como pequenos caracóis de vento. Sentiu então, uma grande quantidade de cutucões de ar por todo seu corpo. Eram muito e velozes. Sua armadura vibrou e fez barulho, como um telhado de metal sendo atingido por uma chuva de granizo. As roupas e os cabelos flamularam e o vento intenso fez com que tivesse que fechar os olhos.
"Abra os olhos! Abra!" instruiu Iovük.
Os olhos de Arifa lacrimejaram. E ela viu que o ar vibrava intensamente ao redor de seus braços. Os dedos das mãos, gelados pareciam estar sendo fervidos, rodeados por micro rajadas de vento.
"Una as mãos..." Arifa fez isso rapidamente "...devagar".
Duas rajadas de vento intenso se chocaram entre as palmas das mãos dela. Josselyn viu um pequeno tufão se formar arrancando poeira e mato. Arifa foi atirada para trás. O vento intenso começou a sugar as duas. Josselyn se jogou no chão e agarrou-se firmemente nos galhos de um arbusto. O tufão cresceu enquanto avançou, meio desordenado e elevou o cavalo de Kerdon, fazendo-o girar no ar. O demônio também foi atingido pela ventania sendo tragado pelo tufão que assumiu um aspecto cinzento ao ser preenchido pela fumaça do demônio.
— Pelos Deuses! — Arifa gritou, saindo do chão e começando a girar — como que eu paro isso?
"Estique os dedos, menina!" disse Iövuk.
Arifa esticou os dedos, mas não fazia ideia de como controlar aquela magia, se é que era possível aplicar algum conceito de controle àquela situação. A dor da queda foi a resposta. De algum modo, funcionara. O vento subiu e o padrão giratório do tufão se desfez, gradualmente. Arifa rolou, mas sentiu que algo pesado também se batia e quicava no chão, perto dela.
Josselyn voltou a sentir o chão tocar seus pés e soltou os galhos do arbusto. Suas mãos estava sangrando, mas ao menos conseguira evitar sair voando por aí. Ele caiu de costas e viu as nuvens, bem acima se abrindo num padrão circular, enquanto o vento subia veloz abrindo caminho. Arifa estava caída, a mais de trinta metros de distância. Estava tonta, sem conseguir ficar em pé.
O demônio também estava caído. Uma de suas asas estava quebrada, dobrada de um jeito feio. As chamas que antes o envolviam, estavam quase extintas, eram como meras fagulhas emergindo de sua pele espinhosa, aqui e acolá. Estava tonto, e se arrastava enquanto urrou, irritado. Não demorou até que estivesse recuperado, agora tropeçando em direção a Arifa e dizendo algo em seu idioma impuro.
Josselyn ainda estava zonza e não escutou voz alguma em sua mente, nem mesmo sentiu haver qualquer poder à sua disposição devido ao uso de medalhão. Pensou em tirá-lo, mas não havia tempo.
— Arifa! Levanta! Sai daí! — Ela correu para ajudar a jovem. Arifa, ainda zonza e ferida, não conseguia firma o passo, se arrastava e tropeçava tentando se afastar da criatura que se aproximava.
O demônio se recuperava a cada passo e desprendeu de seu cinturão um longo porrete com pontas de metal. Arifa levantou-se, mas tropeçou em seguida.
Ai, ai minha perna!
Se arrastou um pouco antes de conseguir ficar de pé novamente, mancando. O demônio estava logo atrás dela. Ele tinha cerca de três metros de altura, os braços esguios, mas muito musculosos. O golpe desceu, se não fosse fatal, provocaria um aleijão, na certa.
Josselyn perdeu o fôlego, ela queria dizer, corre, sai, pula, mas nada saiu de sua boca. Ela esticou a mão para Arifa, como se pudesse alcançá-la e tirá-la dali. Seu coração subiu bateu forte e ela sentiu a pressão do sangue nos ouvidos. Arifa ia morrer, então sentiu algo gelado vir do medalhão e percorrer seu braço até a ponta dos dedos. Uma rajada de energia invisível saiu de sua mão.
Ela observou o ar tremer, como fazia quando havia uma fogueira forte abaixo. O poder do medalhão atingiu a arma do demônio e antes que atingisse Arifa nas costas, partiu-se em três pedaços.
O impacto de perder subitamente o peso da arma em suas mãos fez o demônio se desequilibrar um pouco e cair de joelhos. O demônio olhou para elas, enfurecido. Levantou-se e avançou mostrando bem as longas presas que saiam de suas mandíbulas alongadas como as de um crocodilo. Na ponta dos dedos, haviam garras pretas afiadas como navalhas e gradualmente, o fogo voltava a percorrer seu dorso. Os olhos vibraram com ódio num vermelho intenso. Aquele olhar expressava apenas uma coisa: morte.
Ao encará-lo Josselyn sentiu seu sangue gelar e um vazio na barriga, como se estivesse caindo de um abismo. O olhar do demônio a paralisou. Ainda que fosse uma mentalista poderosa, não conseguia quebrar aquele efeito. Arifa, finalmente mancou até alcançá-la. Puxou-a pelo braço.
— Vamos, Joss! Anda, anda! Temos que fugir. — puxou-a com força, mas os músculos de Josselyn estavam duros como pedra.
O demônio deixou escapar uma gargalhada gutural e caminhou lentamente aproximando-se das duas. Seus pés agora estavam quentes e deixava atrás de si, pegadas de mato carbonizado contornado por chamas baixas. Era o pior demônio que Josselyn já vira, assim de perto. Mais ameaçador que o demônio que enfrentaram anos atrás, quando foram a Necrópole resgatar a Capitã Ailynn. Era seu fim. Essa única ideia havia se fixado em sua mente. Os músculos endurecidos doíam pela força da contração involuntária. Arifa continuava a puxá-la, chorando, sem conseguir tirá-la do lugar.
Quando já não havia esperanças um brilho esverdeado surgiu diante delas. Primeiro surgiu uma linha vertical de faíscas verdes em pleno ar. Aquilo se expandiu rapidamente e até tornar-se um imenso disco oval. Tremulava como se fosse a superfície agitada de um lago e então, de dentro daquilo, surgiu uma imensa criatura. Vários pares de pernas finas, longas e articuladas, quase rápidas demais para serem percebidas. Um corpo alongado e formado de placas escamosas, que assim, como as pernas, exibiam alguma transparência. Algo que lembrava de modo distante um enorme inseto, ou aracnídeo. Em seu dorso, havia uma figura humana segurando-se em espinhos longos e curvos que vinham de trás da cabeça. O demônio mal teve tempo de se virara para ver a criatura que o atacou.
A criatura que se parecia com uma armadura de vidro com muitas pernas, tinha mandíbulas em forma de tesoura que morderam o demônio cortando fundo e levantando-o no ar. O demônio se debateu e conseguiu arrancar uma das pernas com um puxão. Um líquido viscoso púrpura, dotado de luz própria se espalhou pela vegetação.
Josselyn finalmente caiu para trás, livre do olhar paralisante do demônio.
As duas criaturas rolaram no chão e o homem que montava caiu rolando. O demônio envolveu o estranho inseto com chamas, mas sua mandíbula forte seguiu cortando a carapaça do demônio, decepando primeiro um dos braços e em seguida, dando o golpe final contra a cabeça. O demônio tombou de lado e suas chamas se extinguiram.
O imenso inseto teve parte do tórax esmagado e muito daquele fluido brilhante escorria. Agonizando, deu alguns passos vacilantes, até que arriou no chão, alguns metros depois. O homem vinha montado nela, foi até lá e ajoelhou-se ao seu lado.
Josselyn e Arifa haviam sobrevivido, mal podiam acreditar naquilo. Percebiam algo de familiar naquele homem, mas não o reconheceram.
— Obrigado — disse Arifa — obrigado por nos salvar.
O homem ergueu o olhar para elas e houve um choque. Reconheceram os olhos de Kerdon, mas havia um estranho brilho neles, como se estivessem mergulhados num líquilo verde. Ele também parecia diferente. Havia pelo menos um palmo de barba baixo do queixo e quando o viram, há poucos momentos, ele tinha a barba feita. Seria o pai de Kerdon? Algum parente?
— Jô? É você mesmo, Jô? — Kerdon parecia não acreditar no estava diante de de seus olhos. Então ele se levantou e deu um abraço apertado nela e chorou lágrimas que escorriam em gotas verdes e brilhantes em sua face.
— Eu pensei que nunca mais veria você! Que nunca mais veria minha família.
— Kerdon? É mesmo você? — Josselyn afastou-o olhando para seu rosto. Haviam rugas sob seus olhos. Estava um pouco envelhecido.
— Sou, me conta tudo que aconteceu.
— Você sumiu e apareceu montado nesse bicho. Foi isso.
— É, mas e o casamento da minha irmã, como foi?
— Casamento? O casamento ainda não aconteceu, Kerdon.
— Não é possível! Demorei anos! Anos para encontrar um jeito de voltar.
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