45 - O espírito do medalhão
Levar Zane até o Templo da Conversão não foi fácil. Fizeram uma maca improvisada e se revezaram para carregá-lo durante todo o dia. Arifa fez sua parte em silêncio escutando, por vezes, sussurros que vinham do medalhão. Iovük tentava se comunicar com ela e ela com ele. A floresta de Shind estava a apenas uma centena de metros de distância do vilarejo em torno do templo e eles esperavam que isso fosse distância suficiente para evitar que a essência de Zane fosse sugada pela floresta, assim como advertira Dashmiir.
Assim que chegaram, houve alguma comoção e Yaren veio vê-los pessoalmente. Cumprimentou Josselyn com um abraço caloroso. Arifa ficou olhando.
Parece que já passaram por muita coisa junto.
Em seguida, ele a cumprimentou com um sorriso largo no rosto, era difícil não sorrir de volta, mas Arifa estava exausta. As dores nos braços e pernas pareciam subir por todo corpo e sentiu as bochechas doerem quando sorriu também.
Yaren tocou seu ombro e disse — Venham... Vocês precisam descansar.
Ele ajoelhou-se ao lado de Zane e tocou sua testa, estava fervendo de febre.
— E Zane precisa de mais que isso.
— E aí, padre? — Kerdon o cumprimentou.
— Não sou padre...
— Eu sei, só estou te zoando.
Yaren sorriu — São poucos os que fazem isso. Vejo que vocês passaram por maus bocados.
— Nem me fale...
Dois acólitos do templo assumiram a maca e levaram Zane para uma das casas. O céu assumira uma tonalidade lilás indicando que a noite já chegava. Um cheiro gostoso de cozido se espalhava pelo ar.
Todas as noites, havia uma refeição coletiva servida na entrada do templo. Arifa sentou-se com os demais, numa mesa longa, próximo de onde o cozido era servido em simples tigelas de barro. Não deixou de notar, depois que todos se serviram, a figura encapuzada e corcunda que se serviu e depois retirou-se, indo comer em algum lugar fora do templo.
Esquisitão. É o mesmo sujeto que encontrei quando vim aqui da última vez.
Arifa estava cansada, mas ao mesmo tempo, curiosa, então, levantou-se levando sua comida e seguiu o estranho. Viu que ele se sentou num toco não muito longe do templo. O sereno já descia àquela hora e Arifa encolheu-se um pouco por causa do vento frio e úmido.
— Você não gosta de companhia... — indagou sentando-se num outro toco. Notou que ele estava curvado sobre a comida. Não conseguia enxergá-lo além de seus contornos devido à noite.
— Se sabe disso, por que veio aqui me incomodar? — ele retrucou numa voz baixa e sibilante.
— Estou curiosa. Como se chama? — ela comeu um pouco do cozido, que esfriava rapidamente ali fora.
— Já fui chamado de Rolnirir, num tempo agora esquecido.
— É um nome estranho...
— Certamente estranho para um humano, mas não é isso que sou.
— Você é uma daquelas pessoas-lagarto?
— Olha você não tem sua vida para cuidar? — Rolrinir levantou-se irritado.
— Desculpe, não queria chateá-lo, eu só...
— Yaren quer que eu tenha fé em Deus, mas tudo que vejo adiante é destruição e sofrimento para o povo de vocês. Como ainda acreditar em Deus em meio a tanta desgraça? — o demônio deu as costas para Arifa e saiu dali dando passos amargos noite adentro.
Arifa ficou ali, sentada sentindo desconforto. Talvez tivesse sido melhor ficar quieta e deixar aquele sujeito em paz. Por outro lado, algo a atraia até ali. Uma voz dentro de si lhe dizia "vá atrás dele". Ela se levantou e apertou o passo.
— Espere! Desculpe, se o ofendi!
Rolrinir parou, ainda de costas para ela. Agora estavam um pouco mais afastados do templo e só podiam contar com a luz refletida nas luas.
— O que você quer de mim, humana?
— Eu não sei. Para falar a verdade, estou me estranhando. Vir até aqui para falar com um estranho não é nada que eu faria, mas ainda assim...
— Está vindo atrás da pessoa errada.
— Devo estar... — e então sussurrou para si mesma, baixinho — deve ser o medalhão.
— Medalhão? — Rolrinir se virou — Que medalhão?
Arifa conseguiu ver dois pontos vermelhos onde estaria os olhos dele, sob o capuz. Aquele olhar gelou sua alma e, com medo, sacou sua espada.
— Agora quer me matar? Então era isso? Vocês humanos não podem tolerar aquilo que difere de vocês, não é mesmo?
— Desculpe — ela retornou a espada para a bainha — Foi um reflexo, eu não estava pensando...
Aquela voz interna voltava a lhe dizer algo "não confie nele. É um demônio. Mate-o. Mate-o agora, enquanto ainda há tempo!" Arifa combateu o impulso e finalmente compreendeu.
— Você é o demônio que Yaren acolheu, não é mesmo?
— E se for?
— Sim, faz sentido! — Ela percebeu o que estava acontecendo e teve medo de ceder às ordens dadas pelo medalhão. "Não seja negligente assim, lute, é hora de combater o mal, não está vendo?" — Me desculpe, melhor eu sair daqui.
Arifa virou-se e correu de volta ao templo.
É o demônio que recebeu uma segunda chance... O que ajudou Edwain na ocasião de seu combate contra o soberano de Whiteleaf, possuído por um demônio. Eu não posso atacá-lo! Yaren o abrigou entre os seus!
"É um demônio e deve ser exterminado!"
— Cale a boca! — ela disse para si mesma. — Você não entende. Ele está lutando contra o mal que há dentro de si. Merece uma chance!
— Arifa? Você está bem? — Josselyn surgiu à sua esquerda. Arifa estava tão transtornada com o que acabou de acontecer que mal notou a aproximação.
— Tô bem! Quero dizer, não sei!
— Vem aqui — Josselyn a envolveu num abraço. Ela ainda estava quente, pois acabara de sair do templo há pouco.
— Joss, eu estou pirando com esse medalhão. Agora ele está falando comigo...
— Calma, nós vamos encontrar uma maneira de lidar com isso.
Arifa sentiu calor e conforto que finalmente a acalmaram. Sem se importar se alguém pudesse estar olhando, beijou Josselyn. O contato íntimo conectou as mentes delas de modo superficial. Então Josselyn percebeu a presença da mente emanando do medalhão.
"Preste atenção, querida" Josselyn fez se ouvir dentro da mente de Arifa. "Você precisa bloquear a mente de Iovük. A mente no medalhão é como qualquer outra mente externa, potencialmente hostil."
"O que faço?"
Josselyn afastou-se de Arifa, mas ainda tocava ambos os ombros com as palmas das mãos. Uma olhava nos olhos da outra. "Concentre seu jii. Defenda-se, como se houvesse um ataque em curso. Você vai pegar o medalhão e tirá-lo de seu pescoço."
Arifa seguiu as instruções, porém, sua mão tremia e não queria subir.
"Concentre-se!" incentivou Josselyn.
"Tirar o medalhão não vai resolver" veio a voz de Iovük. "Nossas mentes já se tocaram. Eu estou um pouco em você e você em mim."
Arifa gemeu, mas finalmente conseguiu a força para tirar o medalhão e largou-o no chão.
— Consegui!
Mas, Arifa saltou ao ouvir a voz de Iovük ainda em sua mente. "Devia ter dado ouvidos a mim. Eu não estou aqui para causar problemas, tão pouco me interesso em dominar sua mente. Só quero que trabalhemos juntos..."
— Ele ainda está aqui — Arifa bateu na cabeça, chorosa.
Josselyn abriu a mente liberou a passagem dos fluxos de jii. E então, viu ao lado de Arifa a figura esguia que falava com ela. A princípio parecia um homem, mas ao olhar melhor para ele, percebeu que as proporções não pareciam certas. A testa larga demais, queixo fino e os olhos um pouco grandes demais.
"O medalhão é valioso demais para deixar assim, caído ao relento" ele disse e ambas o escutaram.
Josselyn abaixou-se e pegou o medalhão.
— Você também pode ouvi-lo?
— E vê-lo também. Ele está ao seu lado, quase tão real quanto você, exceto pelo fato do cordão luminoso que está saindo da nuca e vindo até aqui — Josselyn apontou a gema no centro do medalhão.
"Escutem, moças. Não sou o inimigo, está bem? E se perguntarem a minha opinião, ela sempre vai ser esta: nunca confie num demônio. Um dia eu e alguns de meu povo confiaram. É algo que nunca vou deixar de me arrepender."
— Você não estava tentando me controlar? — indagou Arifa, ainda enjoada.
"Não julgo que eu conseguiria fazer isso, mesmo se quisesse. Posso apenas aconselhar e também, ajudá-la a usar a magia contida no medalhão."
— Desculpe, eu fiquei assustada...
"Não é preciso se desculpar. Quem não se sentiria assim ouvindo a voz de um fantasma sussurrando em seu ouvido?"
— Desde que coloquei o medalhão, o senhor esteve sempre assim, ao meu lado?
"Não, sair dele me custa muito. Custa muito ao potencial do medalhão também. Eu senti uma coisa... Aprendi a sentir a presença de demônios. Então sugeri que você investigasse. Conforme a coisa foi se confirmando, fiquei preocupado, e pensei que era melhor dar instruções mais diretas. Desculpe se a assustei fazendo isso."
— Tudo bem... Já passou.
"Tenho que me recolher... Suponho que essa tentativa de redenção por parte desse demônio faça algum sentido para vocês. Para mim, é difícil acreditar que isso seja possível. Ainda que decidam que não é o caso de matá-lo, meu conselho é que ao menos, não confiem nele."
— Obrigado.
"Sinto muito causar toda essa pressão. Em outro momento voltaremos a conversar. E me desculpem também pela situação constrangedora. Vocês duas podem... bem, eu não tenho nada com isso e, enfim, não deixem de aproveitar o que puderem enquanto há vida em vocês. Para aqueles que não tem mais um corpo... Estou falando demais, desculpem. É que passei muito tempo praticamente só."
Então Josselyn viu a forma de Iovük se desfazer e retornar para dentro do medalhão como um líquido luminoso escorrendo para dentro de um ralo.
— Se isso não foi uma das coisas mais esquisitas que já vi — Josselyn comentou.
— Eu não vi nada, mas podia jurar que ele estava bem aqui ao meu lado.
— E estava.
— Você às vezes vê espíritos, assim como viu Iovük?
— Posso fazer isso, mas prefiro deixar a mente fechada ao mundo invisível. A coisa toda pode ser muito confusa.
— Pensa que eu posso aprender?
— Com a prática, sim, mas a coisa é mais para uma maldição do que um dom.
Arifa encolheu os ombros — Só pensei que isso poderia ser útil.
— Às vezes, é útil, mas na maior parte do tempo, é o mínimo, perturbador.
— Você pensa que ele está nos ouvindo agora?
— Talvez, mas pode ser que não. Ele não é um espírito livre. Está preso ao medalhão... Ainda não sabemos como os medalhões funcionam, mas já percebi que teremos que aprender sobre isso, rapidamente. Eu tenho tido sonhos, você sabe, sonhos premonitórios, e tenho certeza que coisas ruins estão para acontecer.
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