44 - As novas pinturas
Gálius ainda ficava nervoso toda vez que precisava se encontrar com Lerifan. Camuflar seus sentimentos para perseguir um objetivo maior, ainda era um desafio. Aquele seria o último encontro antes dele assumir o cargo de Oxivonu. Não fosse apenas isso, na manhã do dia seguinte era o torneio de peleja.
Gálius tinha o olhar fixo numa planta peculiar do jardim de Lerifan. Espirais sucessivas de folhas se desenrolavam a partir do centro até formar uma flor laranja no alto, que flamulava como uma bandeira. Lerifan se aproximou de Gálius sem que ele o notasse. Estava inquieto, trocando o peso entre as pernas e esfregando os polegares contra os indicadores.
— Está inquieto, jovem Gálius?
Gálius virou-se e fez uma vênia exagerada, do modo que Lerifan apreciava — Meu vonu!
— Soube sobre seu êxito para adentrar na truculenta disputa de amanhã. Suponho que deva parabenizá-lo por isto...
— Agradeço! Seria uma honra para mim poder dedicar uma vitória ao vonu favorito do Rei-Deus.
— Ficaria mais satisfeito se você não contrair nenhuma contusão séria nessa disputa popular. Afinal, preciso de seus serviços para iniciarmos o trabalho de evacuação do gueto já no primeiro dia do meu mandato.
— Tomarei cuidado, meu vonu! E fiz o que me pediu.
— E então?
— A sondagem foi positiva. Os silfos reagiram bem à perspectiva apresentada. Acredito que irão colaborar.
— Tanto melhor. Após a sua competição, está liberado para participar da cerimônia e festejar junto a população, como desejar, mas lembre-se, no primeiro dia, quero que venha cedo para iniciar o trabalho.
— Como desejar, meu vonu. Faço votos que sua cerimônia de posse lhe traga grande satisfação.
— Ah, sim! É o que deseja o Rei-Deus!
Lerifan ofereceu a mão para que Galius beijasse o anel. Ele o fez, atuando com perfeita reverência.
Gálius saiu da propriedade do vonu com algum amargor em sua expressão.
Ele ainda vai ter o que merece!
Mas deixou isso de lado e desceu as ruas apressado e com um sorriso no rosto. Yté tinha folga hoje, visto que trabalharia em turno dobrado devido à cerimônia de posse do Oxivonu. Gálius seguiu para a rua próxima do cais e aguardou o momento oportuno para saltar para dentro do terreno abandonado. A dupla havia trabalhado em algumas melhorias no interior da cabana abandonada. Uma destas era um acolchoado de palha forrado com um tecido grosso, algo que conferia o mínimo de conforto para estarem juntos.
Yté estava deitada com as mãos também cruzadas sobre o ventre. Cochilava respirando suavemente. Mesmo sob pouca iluminação, o rapaz pode apreciar a visão de seu rosto bonito e as belas curvas de seu corpo.
Ela é magnífica! Nem acredito que estamos juntos! Que posso tocá-la...
Muitas vezes ele se via querendo tirá-la de Tleos... Os dois fugindo para encontrar um lugar melhor, longe daqueles problemas.
Para onde iríamos?
Quase todas as histórias de seus pais sobre o mundo falavam de lugares horríveis, guerras, bruxos, piratas, etc. Mas, havia um lugar que capturara sua atenção, um santuário escondido onde havia uma árvore gigantesca. Uma vila com um nome engraçado, Banzanac.
Se ao menos eu pudesse levá-la ao paraíso! Poderíamos ser felizes!
Gálius ajoelhou-se ao lado dela e hipnotizado por sua beleza. Tocou suavemente a lateral de seu rosto. Ela despertou.
— Aí está você — ela sorriu. Em seguida ele se inclinou para um longo beijo.
— Senti muito sua falta — ele disse, deitando-se ao lado dela. Ele se aproximou, tocando-a, mas ela o afastou.
— Aconteceu alguma coisa? — Gálius indagou ao observar o olhar de Yté que evitava o seu.
— Sim, mas não sei o que pensar...
— O que foi?
— As pinturas do Rei-Deus. Faz dois dias que ele parou de pintar a cidade em chamas.
— Sério?
Ela fez que sim com um aceno e disse — Ele fez uma pintura sua, Gálius.
— Minha? E como eu estava?
— Bonito...
— Fala sério!
— Além disso, você estava com uma roupa diferente. Não era bem como um traje de um vonu, mas algo parecido.
— Eu, vestido como um vonu? Mas o pior de tudo, eu? Por que logo eu?
— Eu lá vou saber, tonto! Talvez ele tenha ficado entediado após passar tanto tempo pintando a tragédia do fogo.
— Não, não é isso. Aposto que tem algo a ver com minha família.
— Mas não foi só isso. Ele pintou outras pessoas também. Pessoas que nenhum de nós já vimos. Uma delas dá medo.
— Como assim, dá medo?
— Medo ué! Só de olhar para aqueles olhos negros... Digo, é a figura de um homem, magro, pálido e seus olhos são todos pretos, sem a parte branca.
— Havia gente assim no reino de meus pais. Ao que parece, muitas pessoas com olhos assim nasceram por lá, talvez por influência de magia maligna. Eles me contaram, que antes deles saírem de lá, todos desapareceram, embarcaram num navio e nunca mais foram vistos.
— Você pensa que eles podem estar vindo para cá? Que essa gente de olhos negros vai queimar nossa cidade?
— Não sei... Minha mãe dizia que eles não eram malignos, mas sim amaldiçoados, ou algo do tipo. De qualquer maneira, preciso que você me conte tudo o que viu. Talvez assim vamos conseguir entender mais sobre esse desastre. Precisamos descobrir quando vai ocorrer para nos proteger, ou talvez, fugir.
— Você está pensando nisso, fugir?
— Sei que você é corajosa, Yté, e admiro isso em você, mas talvez, não nos reste outra alternativa.
— Não gosto da ideia de fugir.
— Eu só quero proteger você e minha família.
— É uma boa causa...
— De qualquer forma, preciso tirar essas coisas todas da cabeça. Tenho a competição pela frente e depois, a remoção de todos os silfos.
— Eu não gosto nada disso, Gálius, mas se Kalbin e os anciãos estão entendendo que devemos deixar nosso lar por causa daquele maldito vonu, que assim seja.
— É melhor que confrontá-lo. Eu só não me conformo com o Rei-Deus ter dado tanto poder a alguém como Lerifan. — Gálius olhou para baixo, lembrando-se da morte de Yoltesh — Você já viu algum vonu usando raios para matar alguém?
— Para matar não, mas uma vez, no palácio, vi Maltar atingir um acólito.
— Como foi isso?
— Ele estava muito descontente com o rapaz e disse que o marcaria para que nunca se esquecesse daquela lição. Então, usou o cetro. Um raio acertou o braço do rapaz queimando sua pele. Ele tem a cicatriz até hoje.
— O poder de todos eles vêm desses objetos?
— Não sei bem, mas nós sabemos que os cetros de poder são antigos. Dizem que quando Tleos foi fundada, antes de ser uma cidade pacífica e ordeira, havia muita violência. Os vonus usavam a força de seus cetros para conter excessos e fazer justiça.
— Justiça do tipo executar pessoas?
— É.
— Conte mais sobre as pinturas. Além de mim e do homem de olhos negros, quem mais havia.
— Uma jovem humana muito bonita com cabelos cor-de-sol. Algo que não se vê por aqui.
— Interessante.
— O engraçado é que ela tinha roupas de metal e um medalhão bonito.
— Armadura.
— Suponho que sim. Não é o tipo de traje que nós vemos por aqui. Ela também tinha um olhar sinistro.
— Sinistro?
— É, sei lá. Causava incômodo olhar nos olhos.
— O Rei-Deus fala com vocês sobre as pinturas? Há algum comentário dele a respeito?
— Não, não... Ele nunca fala. Mas não ordenou que essas pinturas novas fossem destruídas. Pediu para guardar, como costumava fazer com algumas, antes de começar a pintar os incêndios... e as mortes... Olha, não quero mais falar sobre essas coisas agora.
— É? Que falar sobre o quê?
— Não quero falar... Quero só que você venha aqui... — e puxou-o para si. Com tantas possíveis ameaças no futuro, era importante também aproveitar o pouco tempo que tinham juntos.
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