4 - Através do Mingau

Gálius acordou bem cedo, escorregou para fora da cama, desviou-se dos irmãos, ambos roncavam. Gorum, o mais velho, tinha um ronco lento e baixo, enquanto Melgosh, que era um ano mais jovem que Gálius, dormia todo torto e roncava bem alto. O sol ainda não tinha sido trazido pela Deusa.

A casa estava escura. Desceu as escadas e viu luz e movimentação na cozinha. Estava iluminada apenas pelo fogo da lenha. Sua irmãzinha, Dora, mexia a panela sobre a chapa metálica com uma grande colher de pau. Desde que a irmã mais velha casou-se e saiu de casa, a mais jovem acabou herdando o posto oficial da cozinha. Fazia quase todo o trabalho sem reclamar. Sua mãe sempre passava longe dali, ocupada com trabalho o dia todo.

— Bom dia, Lius. Sente-se, o mingau está quase no ponto.

— Oi, Dorinha.

O cheiro estava bom e ele não pôde resistir. O cão da família, Pãozinho, estava enrolado do lado do fogão, mas ao farejar Gálius, levantou-se girando. Depois, se espreguiçou e bocejou. Era marrom com manchas brancas e veio abanando o rabo. 

Gálius fez um agrado, sem conseguir evitar encarar o olho caolho do bicho, com aquela carninha vermelha no lugar onde ficava o olho direito. Pãozinho tinha o pelo curto e seu corpo exibia uma coleção de cicatrizes. Se adaptava bem ao papel de um cão de uma família estrangeira, sempre brigando com outros cães da vizinhança. Gálius tinha ficado arrasado, quando viu seu cão todo arrebentado após uma dessas brigas, numa manhã de inverno, há vários anos.

— Você nunca acorda cedo, Lius. Que houve?

— Um amigo meu foi preso por minha culpa.

— O que você fez, mano? — Dora trouxe uma tigela com o mingau fumegando.

— Não importa... Eu tenho que consertar isso.

— Falou disso com o papai?

— O pai só ia me passar um sermão. — Gálius tentava comer, mas estava quente demais.

— Ele nunca me passa sermão. — retrucou a menina.

— Isso é porque você é a queridinha dele.

— Talvez você fosse também, se ajudasse mais em casa. Tudo o que faz é ficar por aí discutindo com os outros.

As orelhas dele esquentaram um pouco, mas ele não conseguia ficar com raiva de verdade da irmã — Já aprendeu a passar sermão como o pai, né Dorinha?

A menina moça deu com os ombros.

— Nossa, isso aqui tá muito bom! O que você colocou?

— Cereais, leite e raiz de jut.

— Raiz de jut... — Gálius murmurou baixinho, sua face se iluminando. — Será que dá para eu levar um pouco?

— Um pouco... — ela concordou examinando aquele olhar diferente que o irmão lançou.

— Ótimo! — ele sorriu e foi arranjar, do outro lado da cozinha, uma panela de barro pequena e com tampa para transportar.

— Ei, já está demais — Dora protestou, tirando a concha das mãos dele.

Ele embrulhou a panela num pano para manter o calor, deu uma bitoca no rosto da irmã e saiu pela porta dos fundos, sentindo a corrente de ar gelado fincando no rosto e nas canelas desprotegidas pelas calças curtas.

Seguiu pelas ruas da cidade bem desertas, ainda esperando o alvorecer para iluminá-la. Algumas janelas, aqui e ali já exibiam luzes amareladas ou alaranjadas. Mas cedo assim, podia ouvir os sons de animais, principalmente cães, grilos e sapos. 

No céu, a lua Teona, grande e amarela, estava iluminada pela metade, acompanhada pelas menores, ambas esverdeadas Titeny e Lim. Em Tleos, não eram chamadas por esses nomes, mas pela tradução de seus nomes do sílfico: Rainha da Noite, Pedra Verde e Concha Antiga.

Gálius se distraiu olhando para a superfície acidentada da Rainha, principalmente as fendas escuras. Ele sempre tinha a impressão de que algo poderia sair dali de dentro, como um ovo se chocando. 

Ao fim de sua caminhada, já no outro lado da cidade, no bairro dos ricos e poderosos, viu as primeiras luzes do dia iluminando os casarões e seus belos jardins. Não se usava muros altos naquele bairro, apenas pequenas muretas ou grades para a entrada de cães.

A Cidade de Tleos estava habituada a uma história de milênios de paz, sem nenhuma guerra contra qualquer outro povo. Tal paz era sustentada pelo poder miraculoso do soberano, o Rei-Deus, que dava o nome à cidade. Apesar da ausência de guerras, a cidade não estava livre de conflitos. A manutenção da paz interna era tarefa dos templários. Gálius conhecia muitos deles, pois sempre estava nos templos se oferecendo para fazer pequenos serviços.

A casa do Vonu Perembo era para ele território familiar, de modo que entrou pelo jardim frontal, seguiu um caminho de pedras contornando a mansão até os fundos. Lá, dois criados da casa já trabalhavam: um rapaz silfo e uma senhora humana, muito morena, que usava traje cinzento, sapatilhas pretas e um lenço muito azul na cabeça.

— Bom dia — cumprimentou Gálius — o patrão já está de pé?

A senhora exibiu um sorriso sem dentes, retribuiu o cumprimento e assentiu.

— Lendo?

— Sim, meu filho.

Gálius passou por ela e entrou na casa, sem cerimônia.

Na cozinha, havia uma chaleira no fogo e o cheiro forte de pães sendo assados veio como um tapa na cara do rapaz. Ele colocou a panela sobre o balcão, desembrulhou e verificou se o mingau ainda estava quente. "No ponto!" pensou.

Serviu uma porção generosa num prato fundo e levou-o até a sala de refeições. Como esperado, encontrou o velho templário sozinho e lendo um grosso volume à luz de uma fileira de velas apoiadas num candelabro no meio da mesa. O piso frio de pedras polidas exibia belas padronagens cheias de cor. As paredes internas eram pintadas de azul e cobertas por pequenas tapeçarias brancas com os símbolos sagrados de Tleos: A flor vermelha de cinco pontas, o cão de duas cabeças e o círculo dourado da ordem superior.

Gálius entrou e curvou-se reverenciando o Vonu que tanto admirava.

— Bom dia, amado Vonu. — colocou o prato sobre a mesa de madeira vermelha bem polida.

O templário ofereceu o dedo com o anel com a flor vermelha.

Gálius o beijou e disse: — A benção.

Perembo respondeu com sua voz rouca — Que o Rei-Deus o abençõe.

O velho farejou e olhou para o prato.

— O melhor mingau de raiz de jut de toda a cidade — Gálius ofereceu com mais uma vênia.

— Muito bem, vamos ver... — indicou com um gesto para que ele retirasse o livro.

Gálius pegou o livro e deu uma olhadela na página antes de fechá-lo e acomodá-lo sobre um balcão que ficava na lateral. O título da passagem dizia: O Peso da Justiça.

O templário usava uma roupa de peça única de algodão cru, tamancos de madeira forrados com o mesmo tecido bege. Provou a sopa e seu rosto se iluminou.

— Foi você que fez, rapaz?

— Eu queria ter esse dom, meu Vonu. Foi minha irmã mais nova.

— Diga a ela que se quiser, pode vir trabalhar para mim.

— Eu direi isso, meu Vonu.

— Então, você veio aqui me oferecer esse agrado na esperança que eu possa oferecer alguma ajuda em relação a Lerifan.

Gálius sorriu. — Sua assertividade é mesmo uma de suas qualidades mais admiráveis, Vonu Perembo.

O templário olhou com seus olhos verdes e cansados, mas muito expressivos.

— Lamento, não há muito que eu possa fazer.

— Eu não esperaria isso do senhor, meu Vonu. Eu apenas vim para obter seu conselho.

— Muito bem, sente-se. Pegue uma fruta, se quiser.

Gálius aceitou, sentando-se do outro lado e descascando um poxim rosado e de aparência viçosa.

— Sei que o senhor já soube do ocorrido, soube o motivo?

— E que diferença o motivo faz?

— Toda, em se tratando de justiça. O pobre Yoltesh não fez ofensa alguma, tão pouco crime.

— Se não causou ofensa, porque foi preso?

— Vonu Lerifan não admitiria isso, mas o prendeu para me atingir. Fui eu que proferi a ofensa.

— Me parece estranho. Por que Lerifan então não o prendeu?

— Não o fez, por que não quer admitir a ofensa e também por causa da posição de minha mãe, não poderia me atacar diretamente sem que houvesse alguma contestação. Mas um silfo pobre do gueto das orelhas... Quem se levantaria para defendê-lo?

— Ninguém, exceto você.

— Mas sou um simples filho de Zenos.

— Sim, é um filho de Zenos, mas nasceu sob nosso solo sagrado. Antes disso, é um cidadão de Tleos, diferente de seus pais.

— Desculpe questionar isso, meu Vonu. Não tenho nenhuma intenção de ofender o Rei-Deus. Mas como um Vonu, o mais alto representante da justiça do Rei-Deus, pode ter agido assim, de forma tão injusta?

— Veja meu rapaz... Falta-lhe a perspectiva para analisar os fatos. O que ocorreu ontem pode lhe parecer injusto. Mas a justiça divina nem sempre se mostra de imediato. Talvez, você não saiba de algo. Algo que Yoltesh tenha feito para merecer a punição que recebeu, ou então, que o desenrolar dos fatos ainda venha restabelecer o equilíbrio da balança.

Gálius aproveitou-se da fala longa do templário para devorar a fruta. Estava deliciosa. — Desculpe, mas realmente não consigo enxergar justiça nisso.

— O senso comum diz que um Vonu nunca pode errar, pois está imbuído do poder dado pelo próprio Rei-Deus. Entretanto, os Vonus não são imunes ao erro. Não ocorre há muito tempo, mas os anais sagrados já mostraram, por mais de uma vez, que Vonus erraram.

— É mesmo? Nunca ouvi falar disso.

— Realmente, não é algo que se fale por aí... É mais fácil para o povo acreditar que os Vonus sempre irão acertar. Mas quando erram, eles precisam se redimir, ou então, confrontar o julgamento final do Rei-Deus.

— Então, acha que há alguma esperança para Yoltesh.

— Algo me diz, que a esperança de Yoltesh está bem aqui, diante de mim. Acredita mesmo que seu amigo é inocente? Pois então, vá até a guarnição e apresente-se para defendê-lo.

Ao ouvir aquilo, o rapaz teve uma forte sensação nas entranhas. Um misto de esperança, mas também de apreensão.

— Obrigado, meu Vonu. — Gálius curvou-se ao lado do sacerdote.

— Que a graça do Rei-Deus esteja contigo.

Gálius já ia saindo quando recebeu o agradecimento — Obrigado pelo mingau, rapaz.

— Obrigado pela conversa, meu Vonu.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top