33 - Esqueletos negros

Mais uma vez, Arifa se viu entrando naquela gaiola para subir o paredão de Or. Zane e Kerdon haviam subido primeiro. Os cavalos estavam no estábulo e seriam cuidados pelo pessoal do prior Yaren.

— Está nervosa? — indagou Josselyn.

— Você já andou nessa coisa? — respondeu Arifa, apreensiva.

— Bem, parece bem firme e não tive notícias de que já caiu alguma vez. Acho mais fácil você se machucar caindo de um cavalo do que caindo daqui.

— Sei disso, só não gosto de alturas e principalmente, não ter nada sob meus pés.

Josselyn fez um afago na nuca de Arifa e disse — Então, feche os olhos.

Arifa virou-se para ela, olhando ligeiramente para cima. — Prefiro ficar olhando nos seus olhos.

Josselyn sorriu.

Arifa ficou bem perto e o balanço da gaiola, ao ser erguida, aproximou-as um pouco mais. Não que pudessem ter uma sensação de pele contra pele, e sim, ouviram-se umas batidas e arranhões de metal contra metal, quando o peitoral de suas armaduras se tocaram.

— Tem uns desenhos muito loucos nos seus olhos — sussurrou Arifa e tocou os lábios dela com os seus. Aquilo ajudou a moça a relaxar. Mas antes que fosse longe demais, Josselyn se afastou.

— Não quero ninguém comentando nada a respeito...

Ali no meio do paredão, ninguém poderia vê-las direito, mas ainda assim, Josselyn estava determinada a evitar riscos, não só devido ao relacionamento entre mulheres, mas por que Arifa não era ninguém menos que a filha do próprio duque. Arifa se afastou, contrariada.

Aff! Tudo que eu queria é que esses malditos demônios sumissem para eu viver em paz com a Joss.

O tranco da gaiola chegando ao topo tirou-a de seus devaneios. Agora era o momento mais difícil, sair daquele piso instável e saltar para a passarela de madeira, vendo abaixo dos pés, um grande abismo. Saltar era um exagero, um passo de tamanho médio seria suficiente para sair da gaiola e pisar na prancha.

Por que estou tremendo assim?

Arifa suava frio, deu um passo hesitante e seu pé torceu.

Vou cair! Vou morrer!

Foi tudo o que pensou por uns instantes, mas uma mão firme a puxou de volta. Josselyn a segurou e Kerdon avançou para puxá-la de volta.

— Por Taior! Preste atenção onde pisa! — exaltou-se Josselyn.

Logo, ambas pisavam em terra firme.

— Pelos Deuses, garota! Tome mais cuidado com a espada! — repreendeu-a Zane. Se ela caísse com a espada sílfica seria o fim de suas remotas esperanças.

— Arifa, não vou estar por perto sempre que você tentar se matar desse jeito — Kerdon disse num tom mais leve. Referia-se ao dia que a pegou pelos pés, quase caindo da mureta do terceiro andar da academia.

Arifa logo se lembrou do ocorrido. De quando Josselyn ofereceu um lenço vermelho para colocar sobre os arranhões.

Naquele momento eu não tinha noção. Mas agora entendo. Foi naquele instante, quando ela me ofereceu o lenço vermelho, que me apaixonei por ela.

— Ai desculpa, gente! Minha perna ficou mole... Essa altura...

Kerdon retrucou — Certo! Pelo menos você já gastou uma boa parcela do nosso azar bem no início da viagem, isso deve ser um bom presságio.

Zane resmungou mal-humorado — E a sorte de Josselyn pegá-la a tempo também...

— Vamos — Josselyn adiantou-se e suspirou — Beber algo no templo, encher os odres e seguir adiante.

A passagem pelo templo foi breve. Arifa observou o local atentamente.

As coisas parecem mais organizadas do que da última vez.

Entraram no paredão de árvores imensas que constituía a floresta de Shind. A moça nunca havia entrado numa floresta como aquela. Estava boquiaberta e distraída. Por vezes, Kerdon e Zane conversavam sobre algo, mas Arifa não prestou muita atenção. Seguiram um bom tempo até que cruzaram um riacho. Pararam ali para descansar um pouco.

— Por que não pega a espada e vê se consegue sentir algo? — sugeriu Zane.

Arifa tirou a espada da bainha e sentiu um comichão percorrer seu braço até parar na nuca. Então ela fechou os olhos e se concentrou. Veio uma leve tontura e os sons do vento, por vezes, pareciam querer formar palavras que sussurravam algo impossível de se entender ao pé de seu ouvido.

— E então? — indagou Zane — Captou algo?

— Suponho que sim, quero dizer, nada específico. Mas senti alguma coisa. Foi... não sei bem explicar... meio refrescante.

— Refrescante? — Zane franziu a testa.

— É, você não sentiu a brisa?

— Não precisei segurar uma espada para senti-la...

Arifa deu com os ombros e embainhou a lâmina. Seguiram por mais algum tempo até que Zane exclamou.

— Achei! Aqui! — indicou o solo.

Todos se aproximaram olhando para o chão.

— O quê? — Kerdon perguntou.

— Vejam — explicou — plantas murchas, folhas amareladas, quase sem vida.

— E daí?

— É uma trilha — ele apontou. Era difícil perceber, mas prestando atenção era possível ver que o padrão se seguia traçando um caminho no meio da floresta. — A trilha indica o local onde eles passam, pontos em que as trevas estão avançando contra a proteção da floresta.

— Certo — Kerdon disse apontando — vamos para lá? Ou para cá?

Zane tomou a dianteira — eles estão mais ao norte. É bom fazermos silêncio, há algumas tribos de bestiais habitando aquela região.

— Bestiais? — Arifa estava apreensiva.

— Estão pacificados. Se não os atacarmos há boas chances que nos deixem em paz.

— Como assim, pacificados?

Zane explicou — Normalmente os bestiais vivem suas vidas em paz, como não possuem um intelecto muito desenvolvido, são fáceis de escravizar e manipular, seja por magia, poderes mentais ou força bruta.

— Ah sim! Claro... Mestre Ivrantz falou sobre isso uma vez.

Foi quando Josselyn gemeu apoiou-se de lado numa árvore.

— Que foi, Joss? — Arifa foi acudi-la.

— Senti uma forte onda de angústia.

— De uma fonte externa? — perguntou Zane.

— Sim, adiante.

Kerdon disse — eu vou à frente para dar uma olhada. Tirou as botas, amarrou-as nas costas e seguiu rapidamente, pisando em raízes altas e evitando qualquer som.

Seguiram a trilha, procurando fazer silêncio até que Kerdon retornou e disse baixinho.

— Tem uma espécie de trouxa no meio de uma clareira adiante. Parece que tem alguém amarrado dentro dela.

— Vamos ver o que é — Josselyn concentrou-se — eu percebo as mentes. Estão assustadas, são três ou quatro, mas não foi delas que senti a angústia forte vir. Vamos.

Seguiram um pouco mais até que a trilha de plantas murchas abriu-se numa clareira larga. Alguns tocos de árvore derrubadas no local, já estavam cobertas de musgo e novos brotos. O que indicava que teriam sido derrubadas a coisa de um mês ou dois atrás. A parte central da clareira estava sem vegetação alguma, a terra escura à vista, misturada com cinzas, neste local, havia um pano grande amarrado e algo dentro dele se movia. Pelos sons, parecia ser alguns animais, talvez, cães ganindo?

Kerdon anunciou — Eu vou subir numa árvore para ficar de olho, qualquer coisa, eu assobio.

Arifa, Josselyn e Zane avançaram pela clareira até o local do embrulho.

— Ele lugar está com um cheiro esquisito — Josselyn torceu os lábios.

Arifa ajoelhou-se ao lado do pacote e cortou a corda rústica, feita de cipó trançado.

— Por Leivisa! — Arifa sentiu uma pontada de dor no peito — São bebês! Bebês bestiais.

Eram quatro bebezinhos que não conseguiam sequer engatinhar. Pareciam um misto de filhote de gente e filhotes de cão, porém de focinho bem achatado. Dois tinham pelagem marrom clara, o outro tinha o padrão malhado característico, com manchas e listras. Um era todo pretinho.

— Que fofos! — Arifa pegou o malhadinho no colo. — Mas porquê?

Então, Kerdon assobiou. Arifa colocou o pequeno bestial de volta no chão e sacou o espadim. Assim que o fez, sentiu-o tremer em sua mão. Então, eles viram.

Um grupo de esqueletos saiu do outro lado. Não eram parecidos com esqueletos comuns animados pela necromancia. Os ossos eram escuros, como se tivessem sido banhados em piche e nas órbitas vazias, via-se chamas verdes. Do mesmo jeito, o interior oco de seus tórax abrigavam aquela mesma energia.

Zane adiantou-se e bateu a ponta de seu cajado no chão, segurando-o com sua mão boa. Sussurrou uma convocação e da ponta do cajado três bolas de fogo zuniram na direção dos esqueletos. Os três que vinham na dianteira, foram envolvidos pelas chamas de Zane e se despedaçaram após alguns passos. Mas havia mais deles, talvez fossem uns dez.

Josselyn sacou a montante e avançou um pouco para receber a carga frenética dos mortos-vivos. Eles tinham lanças, espadas quebradas e porretes em mãos. Josselyn desviou-se da ponta de uma lança e girou a espada pesada sobre o pescoço frágil da criatura fazendo a cabeça quicar e rolar no chão. O corpo, sem cabeça, revidou, girando a lança que arranhou o peitoral de sua armadura. Josselyn pisou no joelho quebrando-o. O esqueleto sem cabeça caiu de lado.

Arifa defendeu-se de um ataque de espada e revidou, batendo forte no úmero do oponente. O osso aguentou bem o golpe, mas a chama que brilhava no tórax e crânio, quase se apagou. O esqueleto deu um contragolpe atingindo a coxa dela e mesmo sem a lâmina passar pela cota de malha, a pancada a fez gemer e dobrar-se de lado. Com lágrimas nos olhos ela projetou a ponta do espadim para dentro do tórax do oponente. Os ossos então, simplesmente entraram em colapso, como se nada mais unisse uns aos outros.

Zane, que estava adiante, ainda conseguiu evitar que dois esqueletos o atacassem, projetando da ponta de seu cajado, jatos de fogo concentrado, mas um terceiro desvivou-se e o atacou com um porrete. Ele tentou sustentar o golpe com o cajado, mas foi desarmado. O golpe seguinte vinha contra a cabeça, mas ele usou o braço morto para segurar o golpe. Ossos se quebraram, mas Zane não sentiu nada. Então, olhando-o nas órbitas vazias, deu uma palavra de comando. 

O esqueleto hesitou em golpear novamente, tremia, indeciso. Zane forçou mais, e conseguiu assumir o controle no momento em que mais um esqueleto vinha para atingi-lo. Com o braço morto caído de lado num ângulo estranho, Zane deu dois passos atrás e concentrou-se para que seu esqueleto combatesse o outro de modo eficiente. Dirigiu um golpe de porrete contra a cabeça. O crânio rachou e um pouco da chama verde escapou pelo buraco.

Kerdon vinha ao auxílio dos amigos, mas ainda estava distante do local de embate. Arifa mancava para perto de Josselyn quando um segundo esqueleto a assaltou pelo flanco esquerdo pulando para cima dela. Eles rolaram no chão. O esqueleto era forte, sendo que a pressão que suas mãos faziam contra o braço dela, mesmo com a armadura, machucava.

Arifa viu a mandíbula com os dentes pretos vindo em direção ao seu rosto. Por sorte, o espadim era curto o suficiente para ser manejado no chão. Ela cravou a lâmina no crânio por baixo da mandíbula fazendo a energia se dissipar. Ficou coberta por ossos desordenados.

Mais um esqueleto com um porrete vinha para cima dela. Arifa ficou sentada e se arrastou para trás, mas antes que o ataque chegasse, Kerdon avançou com sua espada defendendo o golpe. A espada de Kerdon não era tão pesada quanto a de Josselyn e não possuia nenhuma magia, então, seus golpes atingiam o esqueleto sem causar muita perturbação.

Josselyn usava sua força e o peso da espada para descolar ossos dos esqueletos que a atacavam. Desarmou o primeiro arrancando-lhe o braço que trazia uma espada. Este ainda tentou agarrá-la e morder, sem sucesso. Sua armadura completa a protegia das mordidas. Então, mesmo com um esqueleto grudado em si, combateu o seguinte e o derrubou no chão ao quebrar o osso mais fino da canela.

Agora três esqueletos um tanto desossados ainda tentavam agarrá-la e feri-la de algum modo. O sem cabeça e perna, o sem braço e o sem pé. Os golpes de sua espada não os destruía, mas apenas arrancavam ou quebravam um osso, ou outro.

Foi a espada de Arifa que salvou o grupo. Primeiro ela estocou o esqueleto que Kerdon combatia, desmantelando-o. Em seguida, veio até Josselyn de desmanchou os três que estavam subindo nela. Por último, ajudou Zane desmanchando o último oponente. Restou apenas um deles, o que Zane agora controlava.

— E melhor você destrui-lo também, não sei se consigo manter o controle.

Arifa atravessou o tórax com a lâmina e os ossos caíram formando uma pilha.

Arifa olhou ao redor, não havia mais nenhum deles, então, nas sombras da floresta, além da clareira, viu um homem mascarado. Tinha uma aparência sinistra. Ela projetou os pensamentos para tentar captar alguma informação, mas recebeu de volta uma espécie de chicotada que doeu como se fosse um açoite pesado de pregos e espinhos em suas costas nuas. Ela gritou e caiu no chão, quase desmaiando, tamanha a dor que sentia. Largou o espadim e o corpo se dobrou todo de um modo bizarro, os músculos em espasmos.

Josselyn percebeu o ataque e revidou projetando o jii na direção do homem. O ataque dela o atingiu fazendo com que desse um passo atrás e depois, ele agachou apoiando o peso do corpo com as mãos e um joelho no chão.

O ataque sobre Arifa cessou e ela relaxou suspirando.

Kerdon avançou na direção do homem, certamente um necromante. Mas este, ficou de pé e recuou saindo do campo de visão do professor. Kerdon o seguiu, saindo da clareira, então viu que ele estava montando em um cavalo. O necromante ainda olhou para Kerdon, fazendo-o sentir calafrios. Suas mãos, muito brancas estavam trespassadas por inúmeros espinhos.

— Hendrish? — Kerdon o reconheceu.

Mas o necromante nada disse. Apenas tocou seu cavalo disparando para longe dali.

Arifa se levantou. A dor causada pelo ataque do necromante evaporou sem deixar vestígios de dano, mas a pancada que recebeu na coxa doía muito, de modo que ela agora mancava.

Kerdon retornou ao grupo e disse — Era o Hendrish.

— A base dele deve estar perto — disse Zane.

— Então, estamos perto de achar o Ted. — disse Josselyn.

— Não tô gostando nada disso — disse Kerdon. — somos só nós quatro. Pode haver mais necromantes além dele, esqueletos, zumbis e sabe mais lá o que...

— E quanto aos bebês? — Arifa indagou, com um deles no colo.

— Parece que o Hendrish estava vindo buscá-los. Ele deve estar atormentando os bestiais e usando os filhotes dele para sua necromancia — explicou Zane.

— Talvez possamos obter a simpatia dos bestiais se devolvermos os filhotes — Arifa sugeriu.

— É... — concordou Kerdon. Poderíamos tentar isso.

— Mas se não formos atrás do Hendrish agora ele vai ter tempo de preparar suas defesas, ou então, fugir.

— Ele vai fazer isso de qualquer jeito — disse Josselyn. — Primeiro os filhotes — e abaixou-se para pegar um deles.

Kerdon foi pegar um deles — Ei! Ele me mordeu!

— É só um bebê, Kerdon — zombou Josselyn.

Zane improvisou uma tipoia para prender seu braço e resmungou, conseguindo fazer os dedos mortos se moverem — Está mais morto do que nunca.

Depois, enrolou o outro bebê formando uma trouxa e levou-o com o braço bom.

— Se é para fazer isso, vamos de uma vez!

— Agora entendi — disse Josselyn. — A angústia que senti. Foi a mãe bestial que teve a ninhada tirada de si. Ainda posso senti-la... É por ali — apontou.

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