30 - Dia duro
A primeira tarefa já deu o tom, ou melhor, o odor, do trabalho do rapaz. Uma pilha de varetinhas com esponjas do mar nas pontas precisavam ser lavadas. O problema é onde essas esponjas andaram se sujando antes. Gálius então descobriu, que diferente do costume de sua família de lavar-se com as mãos e água, após fazer as necessidades, muitos nobres, e certamente templários frequentadores dos banheiros compartilhados do palácio, usavam essas esponjinhas para a higiene. O pior, elas eram reutilizadas, para tal, tinha que ser bem esfregadas até toda sujeira sair e depois serem colocadas para secar ao sol. Gálius pressionou os lábios.
Isso é muito nojento!
E havia mais tarefas inglórias. Os altos templários, e muitos shiovonus como Djoren, fixavam residência nas alas habitadas do palácio. Eles, é claro, durante a noite, não se davam ao trabalho de ir tão longe até os banheiros para se aliviar.
Mas o que é isso?
— Vai ficar aí olhando? Ou vai limpar? — a voz exigente do templário veio de trás de si.
— Sim, meu vonu, limparei.
Gálius nunca vira uma daquelas, mas veria muitas a partir daquele dia. Eram cadeiras de madeira, com braços e encosto, de aspecto confortável e finamente esculpidas. Porém, eram vazadas na parte inferior e ali se encaixava uma peça de louça com tampa na qual os dejetos ficavam acumulados.
Gálius retirou a louça, que mesmo tampada, fedia. Colocou-a num carrinho, e foi recolher mais. Com o carrinho cheio, foi esvaziá-las na vala de despejo.
Abriu uma delas e deparou-se o produto de diarreia tão nojento que lhe provocou vômito imediato.
Esse cara morreu e ainda não sabe!
Lavar tudo aquilo foi igualmente penoso. Deixou-as brilhando como requerido e colocou-as de volta nos aposentos.
Não fosse apenas a tarefa em si, desagradável, ainda chegou a ser repreendido severamente por alguns daqueles velhos templários, por fazer barulho demais, por não apresentar uma postura correta, ou mesmo, por não realizar uma vênia baixa o suficiente ou adequada.
Pobre Gicar... Que trabalho horrível!
***
Gálius olhou para a comida diante de si, desanimado. Era um ensopado esverdeado que lembrou o conteúdo de uma das louças que limpou pela manhã.
Não vou conseguir comer isto!
Maduja apareceu e zombou.
— Ah, humano! Ouvi dizer que assumiu as tarefas de Gicar. Um trabalho muito apropriado para alguém como você.
Gálius rolou os olhos e não respondeu. Estava enjoado e diversos cheiros desagradáveis pareciam estar impregnados em sua mente.
— Pessoas que fizeram merda, como Gicar fez, recebem o prêmio de assumir tal tarefa, muitas vezes, por anos. Você tem sorte de o estar substituindo por apenas alguns meses.
— Sim, muita sorte...
— Já limpou a vala das latrinas coletivas?
— Latrinas coletivas?
Maduja deu uma gargalhada contida, afinal, não podiam ficar fazendo barulho demais.
— Aposto que vai fazer isso a tarde. Boa sorte, humano.
Depois de não almoçar, foi conduzido até as latrinas coletivas, local onde todos do palácio faziam suas necessidades. Na entrada, havia um cesto com um bom estoque daquelas varetinhas limpas, ou quase, que as pessoas utilizariam para limpar o lugar onde o sol não bate.
Lá dentro, havia um cheiro desagradável, mas até tolerável. As latrinas de pedra e madeira, ficavam lado a lado em uma longa fileira ao fundo. Abaixo delas, havia uma calha de pedra por onde corria água de tempos em tempos. Apenas um filete constante seguia levando as coisas mais leves. Dois outros servos, de estiva, ajudaram Gálius a suspender as pesadas tampas das privadas revelando a calha, bem abaixo e com sujeira acumulada em alguns pontos.
Não dava para limpar estando do lado de fora, então, ele foi instruído a retirar os calçados, dobrar as calças e amarrar acima dos joelhos e entrar lá dentro com o esfregão para limpar. Dobrar as calças não adiantou muito, pois ele descobriu, da pior forma, que havia limo escorregadio em algumas partes, perto dos buracos e por onde entrava a luz do sol. Caiu sentado naquela água suja molhando também as mangas da camisa.
— Mas que merda!
— Desculpe — disse um dos servos de estiva — esqueci de avisar que as partes escuras são escorregadias.
Gálius olhou para ele irado, enquanto percebia que ele olhava para o colega com um leve risinho no canto dos lábios.
Após limpar a fossa das latrinas, seguiu para a ala de banhos, pois não podia seguir trabalhando sujo como estava. Maduja estava lá, e ficou contente em ter uma segunda oportunidade no dia para esfregá-lo impiedosamente. Ainda avisou.
— Não receberá seu pagamento de hoje, pois vai ter que usar um segundo conjunto de roupas limpas, elas custam, sabia? Tudo que você gastar a mais, ou desperdiçar, é descontado do seu pagamento.
Gálius segurou-se para não dar uma resposta atravessada. Maduja já o tratava mal o suficiente, e não queria que ele piorasse sua atitude.
— Talvez já tenha terminado todo o trabalho do dia, sim?
— Lomuz disse para eu vir me lavar e que depois eu deveria prestar serviço nos banhos do palácio. Isso é aqui?
— Não, pensador, não é aqui. Acha mesmo que os nobres e altos templários se banhariam no mesmo lugar que os criados?
Gálius deu com os ombros.
— Se é assim, talvez eu possa salvar seu pagamento de hoje.
— É mesmo? Como? — Gálius sentia que precisava de receber algo que compensasse um dia tão ruim.
— Você pode vestir uma dessas — mostrou uma espécie de tanga — os nobres sempre precisam de servos para participar em seus jogos.
— Jogos?
— Ah sim, muitos deles gostam de jogar, antes de tomar seus banhos. Há jogos de bola e peleja também.
Gálius logo se animou, quando criança gostava muito dos jogos de bola, talvez pudesse fazer algo prazeroso no palácio, afinal.
— Essa aqui é do seu tamanho... — Maduja entregou uma tanga tingida de vermelho-escuro. — Eu o acompanho até lá.
Gálius se sentiu meio pelado e com um pouco de frio enquanto seguia pelos corredores até a área de banho. Havia um pátio interno, enorme, com a maior piscina que ele já havia visto na vida. Muitos templários, nobres e até alguns comerciantes abastados frequentavam o local. Ele e Maduja contornaram a piscina e foram até o pátio seguinte, onde havia um piso coberto com areia grossa e muitos jovens se dedicando aos jogos.
— Trouxe esse servo para trabalhar nos jogos. — Maduja mostrou Gálius ao silfo encarregado. Era um silfo idoso que avaliou Gálius estreitando os olhos.
— Mas, Maduja, esse rapaz é um humano...
— É o substituto de Gicar.
O velho ergueu as sobrancelhas. — Muito bem, encolhe essa barriga, rapaz. Ombros para trás!
Gálius obedeceu, corrigindo a postura. O velho andou em volta dele tocando o peito e musculatura do braço com um bastãozinho de madeira.
— Meio molenga... Mas poderá servir para enfrentar os novatos na peleja. Yté! Venha aqui untar este rapaz.
O coração de Gálius disparou, não percebera que sua amada estava por ali. Quando a viu vindo em sua direção com um pote em mãos, abriu um largo sorriso. Ela o olhou feio, de imediato e ele entendeu que tinha que engolir o sorriso. Fechou a expressão, mas continuava a observá-la com os olhos derretidos.
Ela destampou o pote e falou baixinho — Então, já te mandaram aqui no primeiro dia?
— O Maduja disse...
— Meu primo realmente adora você — ela derramou o óleo sobre os ombros e braços de Gálius e depois, espalhou com vigor.
— Deusa mãe, ele esfregou você pra valer! — disse ela observando os vergões vermelhos nos braços e nas costas.
— É... meu primeiro dia aqui está sendo maravilhoso.
— Está pronto. Tente não se machucar muito.
Gálius percebeu logo que sua ideia de um jogo de bola tinha evaporado. Foi levado ao quadrado, local onde alguns jovens praticavam peleja. Um rapaz alto, forte e mais musculoso que todas as estátuas que já vira estava instruindo um grupo de rapazes. Falavam a língua comum da cidade.
— Como se chama, servo? — o fortão indagou.
— Gálius.
— Já praticou peleja?
Ele havia brincado com os garotos silfos de algo que talvez fosse essa tal peleja, mas preferiu dizer que não.
— Seu trabalho é tentar derrubá-los. As costas têm que bater no chão. Não pode usar as pernas para chutar e nem morder, compreendeu?
— Sim.
— Rigo, você e o novato.
Um rapaz forte, nada como o instrutor, mas ainda assim, com físico muito superior ao de Gálius se apresentou. Usava uma tanga azul, assim como os demais.
— Vai!
Gálius ficou parado, estudando o oponente, mas o instrutor gritou — Ataque, Gálius, não está aqui para ficar aí parado!
Gálius atacou. Sentiu o corpo de Rigo chocar-se contra o seu e quando se deu conta, suas costas explodiram contra o chão. Ficou alguns momentos tentando recuperar o fôlego.
— Muito bem, Rigo!
O instrutor puxou Gálius para a lateral do quadrado, ali havia um piso de pedra circular e uma grade de metal no meio.
— Serva, água!
Yté jogou um balde com água fria sobre Gálius, fazendo a areia grudada em seu corpo escorrer.
— Gálius, Merek, no centro! Merek, quero ver uma torcida lateral.
E lá se foi ele novamente, direto para o chão. Era óbvio que era pior que todos os novatos e o instrutor se aproveitava para que seus alunos praticassem seus movimentos com ele. Foi derrubado, tomou cabeçadas, cotoveladas e socos. Mas também, vinha nele uma raiva crescente.
Que dia humilhante! Limpar merda, carregar merda, ser esfregado pelo miserável Maduja e agora apanhar, vez após vez.
Passou e ver nos olhos de seus oponentes, os olhos de Maduja e depois, melhor ainda, os olhos de Lerifan. Então, ele atacou com vigor. E à medida que aprendia um pouco da dinâmica daquela luta, conseguia ao menos dar um golpe ou dois em seus oponentes antes de ser derrubado. No último embate, chegou a derrubar um rapaz de lado, quase vencendo. Sentia-se exausto e bem miserável quando tudo acabou.
O instrutor veio a ele, no chão. E o ajudou a se levantar. Gálius não sabia seu nome, os rapazes apenas o chamavam de mestre.
— Você não é um daqueles filhos da feiticeira ruiva?
— Sou sim.
— Sabia já ter visto você em algum lugar. Bem, gostei muito de sua determinação para a peleja, Gálius. Se não se incomodar, vou pedir para vir servir aqui, diariamente.
Gálius ficou surpreso, não esperava por isso e ficou sem saber o que dizer.
— Meu nome é Romlod, vai ser um prazer ensiná-lo a pelejar.
Gálius só teve animação suficiente para concordar com a cabeça.
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