3 - Surpresa no baile
Os olhos das tias de Arifa brilharam ao vê-la pronta para o baile. A diversão delas, no mês anterior, tinha sido encomendar e acompanhar a confecção do vestido na casa Defruss-Lars. Era um vestido de um amarelo suave, com decote redondo, mas discreto. Uma camada em renda floral mais escura se mesclava ao tecido amarelo pálido. Os cabelos loiros presos num elaborado penteado com pequenas tranças, seguravam as mechas lisas que caiam como uma cascata. Uma tiara prateada discreta combinava com o colar e par de brincos. A maquiagem forte fazia o papel de esconder as cicatrizes e manchas de seu rosto, acostumado a uma rotina de violência no duro treinamento da academia.
Quando entrou no salão, muitos se detiveram para admirá-la.
O salão era amplo e belíssimo, construído junto com o palácio no reinado de Maurícius, o velho. O chão de pedra polida em mosaicos de rejunte finíssimo, funcionava como um espelho, refletindo os trajes de gala da nobreza ali presente. No alto, a cúpula reformada de ferro e vidro apoiava uma dúzia de fontes de luz alimentadas por magia.
O rei Edwain estava cercado por alguns nobres e gaguejou ao vê-la. Enxugou as mãos no traje negro e sóbrio. Os lábios pressionados denunciavam a apreensão, mas fora isto, tinha um caminhar bem treinado que transmitia resolução e confiança. Edwain estava mais encorpado desde a última vez que Arifa o viu, há muitos meses, ainda era um dedo mais baixo que ela, mas compensava isso usando botas com sola grossa.
Arifa seguiu o protocolo e fez uma vênia à moda de uma dama. Se fosse como nos velhos tempos, daria um soco no ombro dele, mas agora, sob olhares da corte, e em especial de suas tias, não havia nada a fazer senão ceder às convenções sociais.
— Está encantadora, Lady Desbrin.
— Obrigada, Majestade. — Arifa conseguiu segurar o riso. Atuação teatral não era seu forte, mas se esforçava o bastante.
— E o treinamento? A Capitã continua lhe aplicando surras?
— Acho que a era das surras da Mestra Ailynn está finalmente chegando ao fim. — ela não conseguiu evitar o tom orgulhoso.
Edwain suspirou e disse baixinho — Sinto falta da academia... — mas então se animou. — Mas fico feliz em vê-la. Sabe...
O jovem rei foi interrompido por um de seus assessores. Era aguardado na mesa pelo Arquiduque de Whiteleaf, pelo pai de Arifa e outros nobres. Problemas não faltavam em todas as partes do reino que tentava a duras penas se reunificar e se reerguer.
Arifa suspirou aliviada assim que Edwain saiu. Ele foi um bom amigo no passado, mas eles já não eram tão próximos. Além disso, era difícil lidar com o interesse afetivo dele. Ela não se via em um relacionamento e nem amarrada a ninguém. Tudo que queria era completar seu treinamento e servir ao reino, proteger sua família.
Sua tia Hilde veio toda animada, rebolando num vestido vermelho que estufava suas formas. Arifa não acreditava na falta de noção da tia e já a recebeu mau humorada.
— Não me venha com essa conversa de casamento com o rei!
O sorriso de Hilde murchou.
— Não seja grossa, minha filha.
— Eu não sou sua filha!
— É só modo de falar querida — Hilde era insistente e já habituada aos maus modos da sobrinha. — Cedo ou tarde você vai entender que precisamos mais de você sentada no trono, do que segurando uma espada entre os soldados.
Arifa pegou uma taça de vinho e bebeu como se fosse água.
— Veja o rei... Como ele está charmoso. Não acha, querida?
Arifa esticou os olhos para ele, concedendo toda sua boa vontade, mas não conseguia deixar de ver o garoto que conhecera a anos atrás. Talvez, tudo fosse mais fácil se ela se sentisse atraída por ele.
Mas o pior já havia passado.
Arifa ainda se lembrava, com constrangimento, da ocasião em que Edwain se declarou a ela. Foi há dois anos, mas o mal estar de pensar naquilo, ainda estava fresco em sua memória.
Ele a havia convidado para passear pelos jardins do palácio. Vestiam roupas informais. Era um dia de verão com muito sol e bastante agradável. Talvez estivesse gozando da melhor fase de sua amizade. E então, ele teve que estragar tudo, vomitando tudo aquilo de uma vez.
— Arifa, você deve saber. Tenho sentimentos por você. Eu gostaria de fazê-la minha rainha. Você aceita?
— Ed! — aquilo havia sido uma surpresa completa.
Edwain empalideceu. Mas ficou na expectativa de uma resposta.
— Nosso reino está por um fio! Não há espaço para isso, não entende! Não há... Nós temos que... temos que... — o enjoo veio forte. Ela fez uma careta, segurou tudo aquilo que sentia e saiu correndo.
Sua tia Augustine tirou-a de seu devaneio tocando seu queixo gentilmente e disse — Sua roupa é linda, mas essa sua cara azeda estraga tudo. — Ela tinha um olhar compassivo que se converteu num sorriso.
— Vamos, sorria. Ninguém aqui vai obrigá-la a casar-se, você sabe disso.
Arifa baixou os ombros, que estavam tensos.
— Obrigada, tia.
— Por que você não aproveita que está aqui e se diverte?
— Me divertir? — Arifa não fazia ideia de como poderia ser possível se divertir num lugar como aquele.
Os músicos começaram a tocar. E Arifa abraçou o próprio braço, retraída. Temia que logo mais, nobres e talvez, o próprio rei fossem convidá-la para dançar. Ela queria simplesmente sumir, mas não poderia até que seu pai a tirasse para uma dança. Era algo que fazia parte do acordo. Dançar com ela era algo que trazia boas memórias de quando sua esposa ainda era viva.
Aquele baile era pior que uma das surras da Mestra Ailynn.
E então, a surra veio até ela. Primeiro, o nobre nortenho, barrigudo e com hálito de cerveja. Depois, o filho dele, um magricela com cabelos sebosos. Soube das tias, que ele tinha feito generosas propostas a seu pai para um casamento. Arifa olhava com o canto dos olhos para seu pai. Ele ainda estava naquela mesa, envolto numa discussão acalorada com outros nobres. Quando ele viria salvá-la? Edwain saiu da mesa primeiro. Arifa notou que sua expressão não era nada boa.
— Esses cabeças duras... São tão irritantes — Edwain desabafou.
— O que houve, Ed? — já podia chamá-lo assim, pois com a música e tudo mais, ninguém poderia ouvi-los.
— Por que eles não conseguem concordar. Cooperar. É disso que nosso reino está precisando...
— Por que você não dá ordens?
— Eu já dou ordens demais! E ademais, não é assim que se deve governar. É preciso ouvi-los, ceder também, senão...
— Entendo. Ainda escuta muito a voz do seu avô lhe aconselhando?
— Sempre. E eu estou me cansando de falhar...
— Você é um bom rei, Ed. Muito melhor que a Rainha Greysnow e Kain.
— Temo que ser apenas um bom rei, não seja o suficiente. Essa gente, nobres, bispos e comerciantes, não enxergam que se não cooperarem será o nosso fim. O problema é que muitos ainda não me concedem toda autoridade e lealdade de que preciso.
— Achei que você vinha aqui para me convidar para dançar.
— Eu sou péssimo nisso, e além do mais, a gente não...
— Minhas tias vão ficar loucas se nós dançarmos.
— Se dependesse delas, já teríamos dois filhos, não é?
Arifa riu. Estava um pouco aliviada também. Já não sentia Edwain a pressionando. Ele já teria superado aquilo? Esperava que sim.
Edwain entrou no papel de rei e cavalheiro e pediu — Aceita dançar comigo, Lady Desbrin.
Ela atuou de volta — Ficarei honrada, Majestade.
Arifa e Edwain finalmente relaxaram um pouco. E até, se viram rindo juntos. Era divertido fingir que havia alguma coisa acontecendo entre eles. Ao menos era assim que Arifa se sentia.
— Devo roubar minha filha agora, meu rei. Temo que vocês dois já tenham dançado por tempo demais. Assim, vão acabar fofocando por aí que vocês dois vão se casar.
Edwain sorriu para Galdrik.
— Não vou mentir que tal ideia não seja do meu agrado, Duque Desbrin. — Edwain entregou Arifa nas mãos do pai.
Arifa dançou com o pai, mas no meio da dança sentiu uma forte vertigem. Empalideceu e foi sustentada pelo pai para não cair. Galdrik também sentiu um desconforto.
O campo de Jii no salão havia sofrido um forte distúrbio.
Não havia gente armada por ali, exceto alguns guardas na entrada e laterais do salão. Mas então, o Arquiduque de Whiteleaf, que se servia de carne em uma das mesas, avançou contra o rei com uma faca nas mãos.
— Impostor! — ele gritou.
Edwain pressentiu o ataque. Apenas ficou olhando para a faca se aproximando de seu peito, mas então, desviou a mão do atacante com um movimento rápido e emendou uma joelhada contra o abdome do agressor. O homem curvou-se e antes que pudesse reagir, recebeu um chute de sola de pé que o empurrou para trás, fazendo-o cair sobre a mesa de comida. Coberto de comida, mas com uma estranha expressão no rosto, o Arquiduque se levantou.
— Ele não é Edwain! É um demônio impostor!
O rei se afastou e os guardas chegaram ali para deter o nobre enlouquecido. Ele foi detido e levado aos berros para fora do salão.
— Você está bem, Ed? — Arifa recuperou-se rapidamente do enjoo e correu para o lado do rei.
— Sim.
— Eu senti uma perturbação forte no Jii.
— Eu também. O arquiduque não agiu por conta própria. Algum mentalista poderoso o forçou a agir daquela maneira.
— Com licença, Lady Desbrin... — o bispo de Lacoresh chegou ali, ansioso para examinar o monarca. Ele aproximou o cetro da cabeça do rei.
— Se vossa alteza me permitir...
— Prossiga.
Em todo o salão, as pessoas cochichavam.
Todo aquele clima de paranoia que havia em Lacoresh se acendeu como uma pira cheia de óleo atingida pela fagulha de desconfiança.
Aquele ataque não causou um arranhão sequer no rei, mas sua imagem, a confiança que vinha tentando construir entre os nobres, foi seriamente atingida. Apenas a desconfiança de que o rei pudesse ser um demônio impostor, como outros tantos que haviam surgido nos últimos anos, poderia eliminar o tênue equilíbrio das províncias recém unificadas.
E o pior de tudo era que os problemas, mal haviam começado. Edwain previra uma grande turbulência. Aquilo poderia bem ser o início de toda a tempestade.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top