29 - Bisbilhoteira

Arifa se viu tomada pela rotina de estudos e treinamento depois de três semanas em que nada de extraordinário aconteceu. Seu pai tomara com grande pesar a notícia do falecimento de Rencock.

Tighas saiu de Kamanesh por duas ocasiões com Tassip e outros alunos, mas ela não participou.

Desconfio que meu pai deve ter pedido ao diretor da academia para que eu não participar mais de expedições.

Durante esse tempo, ela e Tighas visitaram a residência da capitã duas vezes para ficar um pouco com Lila, conforme haviam prometido. A cidade se esforçava para se adaptar à mais recente onda migratória vinda de Homenase. O último ataque a Lirr já completava um mês e não houve notícia de novas incursões de demônios em Lacoresh ou Homenase, porém sabia-se que ainda chegava aos dois reinos, gente vinda de Trélis, Lairen, Griss e da Yrquônia. As notícias que esses miseráveis traziam era de destruição quase total de seus reinos por hordas demoníacas.

As pesquisas de Arifa a respeito do demônio Necranxelfer foram produtivas. Cruzando diferentes fontes e conversando com a Mestra Arze Termatus, descobriu que Necranxelfer fora um dos quatro lordes que lideravam as hordas do Duque Marlak, um demônio dos planos de fogo, durante a antiga guerra. Seu mestre, teria sido derrotado pelos povos aliados e seu corpo selado num local secreto. O corpo do Duque Marlak nunca voltou a reintegrar a união das quatro hordas.

Um novo líder fora apontado para assumir o comando, e por não ter sido escolhido, Necranxelfer se rebelou afastando-se das hordas. Ele e uns poucos demônios, teriam ficado livres na terra depois que o Elo do Abismo fora fechado ao fim da antiga guerra.

O morto-vivo Thoudervon, que liderou a tomada do poder em Lacoresh junto ao Rei Maurícius, mantinha Necranxelfer subjugado nas masmorras da necrópole até que foi convocado para tentar frear o avanço da praga de Maurícius, nos últimos dias do Império Lacorês.

O demônio fora visto pela última vez no antigo baronato de Fannel, há mais de vinte anos. Ele teria sido o responsável por destruir Rei Maurícius e Príncipe Serin e sumiu sem deixar sinais.

Era tarde e Arifa estava na biblioteca, sozinha com velas de fogo frio em castiçais para iluminar os livros e pergaminhos que estudava.

Onde esse demônio esteve durante todos esses anos? Fora de Lacoresh? Ou escondido, nos bastidores, preparando algo que só começava a vir à tona agora?

Sons de passos anunciavam alguém se aproximando, mas Arifa estava distraída e não se virou para ver quem era. Uma mão tocou seu ombro e ela se assustou deixando escapar um gritinho.

— Desculpe, não queria assustá-la — disse Josselyn.

— Joss? — Arifa se viu sorrindo.

Josselyn olhou ao redor e como não havia ninguém por perto, fez um afago discreto no ombro de Arifa.

— Algum problema? — indagou Arifa.

— Sim, meu amigo Zane retornou de uma missão e me pediu ajuda... Vou sair numa viagem, será perigoso, e...

"Queria te ver antes de ir" completou a frase telepaticamente.

Arifa ficou de pé e olhou ao redor.

Não vejo ninguém...

Muitas vezes, Orvile, o bibliotecário, se recolhia deixando Arifa ficar pesquisando até mais tarde. Arifa tomou coragem de dar um beijo e um abraço de Josselyn. Não durou muito, o medo de que alguém pudesse chegar ali fez com que Josselyn a afastasse.

— Não dá para eu ir como vocês?

— Seria perigoso...

— De que adianta eu ficar aqui treinando tanto, se não puder ajudar em algo?

— Nem eu, nem Zane, conseguimos uma autorização para você sair...

— E se eu pedir para a Mestra Ailynn? Seria uma oportunidade para eu continuar a investigação que o Rei me solicitou.

— Sobre procurar pelo Príncipe Kain? Já disse que as chances são...

— Estou disposta procurar, mesmo que seja improvável encontrá-lo.

— Muito bem, peça a autorização. Eu, Zane e Tassip vamos nos encontrar amanhã a noite no Gigante Hilário para combinar os detalhes. Se conseguir a autorização, nos encontre lá.

— O que vai fazer agora?

— Eu queria ter o tempo, Arifa... Já está tarde e você já deveria estar de volta no castelo.

— Nem me fale — então Arifa puxou Josselyn novamente para si e a beijou, mais uma vez.

Josselyn saiu apressada, deixando Arifa para trás com o coração batendo tão forte que podia sentir seus pulsos contra a parte interna dos ouvidos. Ela arrumou os rapidamente os livros, apagou as velas de fogo frio e fechou a porta da biblioteca. Tinha esperanças de seguir Josselyn e talvez, roubar mais um beijo. 

A academia estava bem quieta, de modo que ela pode notar, do outro lado do pátio, no corredor do segundo andar, duas figuras conversando. Uma delas, parecia muito com a Mestra Arze Termatus. O rapaz com que ela conversava estava muito inquieto, andando de um lado para o outro e falando um pouco alto, exaltado. Ainda assim, não podia entender bem as palavras.

Arifa não tinha a intenção de bisbilhotar, mas antes que pudesse perceber, estava lançando sobre o rapaz um canal de leitura de pensamentos superficiais. Arifa havia aprendido aquela técnica, não chegava a ser uma invasão de pensamentos, pois normalmente, quando uma pessoa fala em voz alta, seus pensamentos estão quase totalmente sintonizados com o que está dizendo.

"Quer dizer que em um mês estarei morto?"

Assim que tomou contato com a mente dele, percebeu que sua aura era muito estranha, havia algo de sombrio. Arifa sentiu um frio na barriga, compartilhando a mesma sensação que o rapaz estava sentido, a de que a morte chegava para ele. Ela também sentiu como se pudesse morrer logo. Tantos demônios... A morte parecia mesmo inevitável.

"Já sei que não conseguiu a cura, Mestra! Eu vi o Ted... Falei como ele."

Arifa não conseguia escutar a voz de Arze.

Não me atrevo a sondá-la. Uma feiticeira experiente como a Mestra Arze captaria minha espionagem, sem dúvidas. O mentalismo e a magia são muito próximos.

"Sim, ele está morto, mas consciente. Uma porra dum zumbizão consciente."

Arifa pensou nas histórias que Josselyn contava. Lembrava-se daqueles alunos do sétimo ano, quando ela ainda estava no primeiro. As cinco estrelas... Josselyn, Zane, Tassip, Ted e Rulf. Esses dois últimos morreram, há anos, mas, o tal Ted ainda estaria por aí, numa existência de morto-vivo.

"Sei, sei, cavaleiro da morte, tanto faz! O mestre dele é aquele Hendrish, de quem eu tinha lhe falado. Ao que parece, eles têm uma base em plena Shind. O lugar não deveria ser blindado contra as trevas, mestra?"

Já ouvi falar nesse Hendrish. Um dos necromantes do antigo regime que ainda vagam por Lacoresh. Estaria ele associado a Necranxelfer?

"Santuário dos silfos? Sério isso? Ai! Essa porcaria de espadim queimou minha mão. Tá bom, tá bom, carregar pela bainha... A Jô deve conseguir segurar esse troço..."

Arifa viu que ele pegou um objeto e deixou cair no chão, depois, abaixou-se para pegá-lo novamente.

"Quê? Um virgem? Onde vou arrumar uma pessoa virgem?"

O rapaz seguiu andando inquieto e Arifa ainda conseguiu captar os pensamentos dele resmungando.

"Claro, problema meu... Será que aquele moleque, Figas ou Tighas é virgem? Não... Puta merda... Onde vou arrumar uma pessoa virgem... Não posso sequestrar uma criança por aí, nem nada. Bem, mais uma coisa para a Jô resolver para mim. Tô mesmo muito ferrado..."

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