25 - O Espectro de Situr
Tighas caminhava sozinho e apreensivo pelas ruas estreitas de Situr.
Não acredito que me convenceram a ser uma isca!
A maior parte da vila era um amontoado de casas que foi crescendo sem planejamento. Mas a parte baixa até parecia organizada se comparada com os casebres sobrepostos do morro baixo. As ruas não eram iluminadas, mas alguma luz vazava de frestas de portas e janelas das residências aqui e ali.
No morro alto, ficavam a mansão do lorde e o templo. Era possível acessá-los por uma longa escadaria, esta sim, possuía alguns postes onde lampiões a óleo queimavam até certa altura da noite. A escadaria sinuosa com pobre iluminação era o que mais se destacava em Situr pela noite.
Esse lugar é bem sinistro...
Tighas carregava um pequeno lampião parcialmente encoberto cuja luz estava direcionada para o chão diante de si. Eventuais insetos e ratos cruzavam seu caminho e a maior parte das casas já ia apagando suas luzes. Ouvia-se alguma conversa aqui e ali, mas a vila já se aquietava para mais uma noite sob toque de recolher. Nas torres de observação acima da pequena muralha, ao longe, via-se soldados com tochas fazendo sua ronda. Tighas procurava se distrair do nervosismo olhando para alguma fonte de luz distante como as tochas dos soldados.
Espero que o professor Tassip esteja mesmo me dando cobertura!
Kerson Tassip o seguia de perto, furtivo como um felino caçando, e não perdia o rapaz de vista. Mas nenhum dos dois percebia serem ambos seguidos por uma sombra que saltava de telhado em telhado sem fazer som algum.
Josselyn, no entanto, que os seguia de uma distância maior, pode sentir perturbações advindas do plano astral. Ela enviou pensamento a todos da equipe, que estavam partilhando um elo mental criado por ela. "Algo está se movendo perto de vocês dois".
Que ótimo! O que eu faço agora?
Tighas tentou enviar seus pensamentos, mas ninguém captava nada vindo dele. Olhou ao redor apreensivo.
Estão me ouvido, pessoal?
Ninguém respondeu sua pergunta, então lembrou-se do que o príncipe Kain havia lhe dito certa vez, sobre um trabalho que ele precisava que fizesse.
Droga, deve ser aquela coisa que o Príncipe Kain fez na minha mente...
— Eu tocarei sua mente com a ajuda do Dragão Negro — Kain mostrou um bracelete feito de metal escuro que usava rodeando seu antebraço — para você poder espioná-lo para mim. Vou tecer uma proteção contra a emanação de pensamentos. Você poderá receber pensamentos de mim, e até mesmo, poderemos nos comunicar caso eu esteja usando Dragão, mas pensamentos não sairão com facilidade de sua mente, nem poderão ser extraídos. Como estou usando um ampliador do jii, o efeito pode levar anos para se dispersar. Tudo bem?
— Isso é como um escudo mental, senhor?
— Precisamente. Poderá ser útil para outras missões. Mas no caso dessa, preciso que tenha paciência. Precisa ganhar a confiança dele, trabalhar para ele por muito tempo até que fique acostumado com sua presença, ao ponto de se esquecer que está lá.
A imagem vívida de Kain e o som de sua voz em sua mente foram interrompidas por uma pancada forte em suas costas. Tighas caiu rolando sem saber o que estava acontecendo. A sombra que saltou do telhado errou sua cabeça por pouco. Tassip correu e saltou dando um encontrão em Tighas tirando-o do caminho.
O lampião de Tighas se quebrou uma língua de chamas se acendeu sobre o óleo derramado no pavimento. Com aquela luz, puderam ver a silhueta quadrúpede de uma forma umbrosa. Um par de olhos azuis cintilavam no meio da massa sombria e abaixo deles, duas fileiras de dentes pontiagudos surgiram refletindo os tons alaranjados das chamas.
— Que porra é essa!? — Tassip gritou.
Tighas levantou-se e sacou uma espada curta.
Essa espada não vai dar conta dessa besta! Tô ferrado!
"Aguentem firme!" chegou até eles mais um pensamento de Josselyn. "Já estamos indo!"
A criatura saltou sobre Kerdon, que ainda estava caído no chão. Protegeu-se erguendo o braço para proteger o rosto. Os dentes pontudos penetraram a carne do antebraço após furar seu grosso casaco de couro.
Tighas avançou deu uma estocada na cabeça com a ponta de sua espada. A espada entrou e grudou, como o bicho fosse feito de piche.
Eca! O que é isso?
O braço de Kerdon gelou e suas forças foram rapidamente sugadas. Tighas tentou puxar a espada de volta, mas ele ficou presa e a criatura não parecia se incomodar com algo espetado daquele jeito em seu corpo.
— Usa magia, ou jii, Tighas... — a voz de Kerdon mal saiu.
Tighas tinha a respiração curta, estava apavorado.
Sou péssimo com magia e pior ainda no kishar!
Ainda assim, tentou energizar o braço e concentrar o jii em seu punho ao socar o cachorrão de piche. Sua mão entrou na gosma gelada e também ficou presa.
— Eca!
Onde estão Arifa, Josselyn e Rencock?
Escutava passos correndo, mas não os via. Tighas olhou ao redor desesperado quando viu algo faiscando na direção da criatura. Era uma rajada projetada pelo golpe distante de Josselyn. O jii concentrado penetrou o lombo do monstro que ganiu, soltando as mandíbulas do braço de Kerdon.
Tighas sentiu a consistência da criatura ceder e conseguiu tirar a mão de dentro dela desequilibrando-se e caindo sentado dois passos para trás.
Ufa!
O bicho virou-se para Josselyn e rosnou. Em seguida, saltou para cima de um telhado e deste para outro, sem fazer barulho algum, como se mal tivesse peso.
— Como estão? — ela perguntou.
— Vou ficar bem — disse Kerdon exausto. Puxou a manga do seu casaco e constatou que, apesar da dor, não havia sangue e nem um ferimento físico em seu braço.
— Tô bem — emendou Tighas.
— Cuide dele — ela instruiu Tighas. — Nós três vamos atrás da coisa.
— Você viu para onde ele foi, Joss? — indagou Arifa bufando.
— Por ali, dá para sentir...
— Vamos então — concordou Rencock, que ajudava Tassip e ficar de pé.
Tighas e Tassip ficaram para trás enquanto o trio seguiu o rastro psíquico da criatura a passos rápidos.
Caramba! Que diacho era aquilo?
***
Josselyn era seguida por Rencock e Arifa. Andaram três quarteirões até chegar ao sopé do Morro Alto.
— Olha — apontou Arifa — está subindo a escadaria.
— Vamos — Rencock tomou a dianteira e apertou o passo.
Após subir dois longos lances de escada, Arifa pediu esbaforida para pararem.
— Eu tô... muito...
— Espere aqui, querida, você ainda está muito fraca devido à energia que absorveu daquele enfermo.
Arifa colocou as mãos sobre os joelhos e concordou com um aceno, respirando ligeiro.
Rencock e Josselyn seguiram subindo a longa escadaria. As pernas de ambos já começavam a queimar, mas gozavam de excelente forma física e isso não os impediu de prosseguir.
Havia uma pracinha arborizada diante do templo. Ali no alto, ventava forte e as árvores balançavam seus galhos vigorosamente. Havia alguns postes com lambiões, aqui e ali, dando o mínimo de iluminação ao local. No centro da praça, havia uma estátua e ao lado dela viram a criatura sombria agachada ao lado da silhueta de um homem magro e alto. Havia uma aura forte e sinistra que Rencock e Josselyn perceberam emanado dele.
— Se quiserem viver, vocês dois vão descer a escadaria e deixar minha vila em paz. — sua voz era calma e profunda.
— Sua vila? — confrontou-o Rencock — Quem é você?
— Sou o protetor dessa vila. Voltem para Kamanesh e digam que Situr está em boas mãos.
Josselyn investigou a aura do homem e ficou claro que ele não estava vivo. — Você não parece nada com um protetor.
— Só porque não respiro, não tenho carne e ossos, não quer dizer que não possa me importar com as pessoas de minha vila.
— Sua vila? Responda à pergunta, quem é você? — pressionou-o novamente Rencock.
— Ninguém se lembra de mim, mas fui o protetor dessas terras há muitos anos. Fui convocado para voltar a protegê-las, pois é um tempo de perigo. Demônios físicos e astrais ameaçam todo nosso povo.
— Quem o convocou?
— Meu mestre, o príncipe. Ele me mostrou. As hordas estão chegando. Precisamos estar prontos para confrontá-las.
— Se é mesmo o protetor da vila, porque está atacando seus habitantes.
— Por que é necessário. Necessito de sua força vital para construir o escudo. Não se preocupem, tenho escolhido apenas pessoas desprezíveis, ladrões, trapaceiros, mentirosos.
— Não acredito em você, nem confio em você — Rencock apontou sua espada para o espectro e convocou — Icti Flamare! — sua espada foi envolta em chamas.
— É um tolo... — o homem volitou na direção da dupla, suas pernas finas sem tocar o chão e sua aura escura se expandiu formando algo como asas negras atrás de si.
Rencock adiantou-se, então, olhou nos olhos do espectro que já estava a poucos metros de distância. Os olhos que tinham um brilho azulado e profundo e engoliram a visão do cavaleiro. Seu corpo gelou e sua espada escorregou de sua mão, apagando-se em seguida. Rencock se viu com sua família. Sua mulher estava lá. Estavam em casa. "Como isso era possível? Ela estava viva!"
O cavaleiro caiu de joelhos, indefeso diante do espectro, mas Josselyn veio ao seu socorro. Realizando uma sucessão de posturas de Kishar, ela projetou um golpe de jii concentrado contra o peito do espectro. Ele foi atingido, tomado por uma surpresa e recuou.
Josselyn seguiu atacando, agora atingindo-o com socos. Seus punhos brilhavam, carregados de jii que brilhava em tonalidades amarelas. O espectro, atordoado, tinha partes de seu corpo espiritual sendo dissolvidas.
Josselyn tinha a vantagem, mas foi atingida por um mordida do animal espectral que estivera quieto, até então. Os dentes penetraram na carne gelando toda a perna e fazendo-a ficar dura. Josselyn perdeu o equilíbrio e caiu. Mantendo a concentração que fazia o jii fluir de sua mente e do peito para os braços, socou a cabeça do cão espectral fazendo-o soltar sua perna. Ela arrastou-se para trás, incapaz de mover a perna atingida pela mordida.
O espectro agora se recuperava, volitando de volta para cima de Rencock. Ele tocou a cabeça do cavaleiro que estava de joelhos olhando para o vazio da noite. Josselyn conseguiu ver seu rosto. Era um homem muito pálido, de intensos olhos azuis-claros, cabelos escuros que esvoaçavam como se estive submerso num lago. As roupas escuras eram as de um nobre e as mãos brancas tinham unhas pontudas cravadas nas laterais do rosto de Rencock.
O espectro olhou nos olhos de Josselyn e exibiu um sorriso maligno. Rencock caiu para trás, seu corpo flácido, assim que a vida deixou de animá-lo.
— Não seja tola como seu amigo... Vá e não volte mais. — ele apontou a escadaria com o indicador em riste.
O canzarrão ficou rodeando Josselyn rosnando, seus olhos azuis pareciam famintos.
Josselyn foi se arrastando para fora da praça, o cão ameaçou um novo ataque, mas foi contido por seu dono.
— Não, Caniço. Ela sabe o que fazer.
Lágrimas brotaram dos olhos dela, enquanto se arrastava, tremendo para longe do espectro e seu cão. As palmas da mão sangravam dado o desespero de seus movimentos para se afastar.
— Não se preocupe com seu amigo. Ele morreu feliz.
Josselyn estava em choque. Nunca havia confrontado um fantasma como aquele. Seu olhar parecia pesar uma tonelada. Rencock estava morto. Ela precisava tirar Arifa e os demais dali, antes que algo pior acontecesse.
— Sua alma é valorosa e vai se juntar a mim para proteger Situr.
Josselyn murmurou para si mesma — Controle a respiração... Controle!
Conteve as lágrimas e seguiu se arrastando com movimentos mais controlados. Sim, havia sido derrotada, mas não quer dizer que não poderia descobrir algo a respeito daquele espectro. Deixou sua mente se expandir e tentou penetrar na mente dele. Ela viu algumas imagens. Uma caverna. Outro espectro. Este tinha longos cabelos brancos e o pescoço cortado em dois, costurado com uma espécie de arame de modo grosseiro. Viu também um demônio. Um demônio envolto em chamas. Não reconheceu nenhuma daquelas imagens, mas, escutou o espectro sussurrar dentro de sua mente.
"Ah! Não pode conter sua curiosidade, não é? Viu meus mestres? Você tem sorte. Pois, viu os salvadores da humanidade!".
"Quem são eles?" ela indagou
"Você irá servi-los, bem sei. Servirá ao Príncipe Serin e a Necranxelfer. São a última esperança que vocês tem, se quiserem sobreviver ao assalto de Lorde Grevos."
— Joss! — Arifa gritou.
Josselyn olhou para trás. Arifa acabava de subir os últimos degraus até a praça.
— Me ajude a ficar de pé! — Josselyn estendeu os braços para Arifa.
— E o Rencock? — ela indagou esbaforida.
— Está morto, vamos, me ajude. Temos que sair daqui.
Arifa olhou em direção à praça e viu dois pares de olhos azuis flutuando em meio ao breu. Aquilo causou arrepios. Esforçando-se ela conseguiu sustentar Josselyn e ajudá-la a descer a escadaria.
"Quando chegar o momento, Josselyn de WaterBridge, você verá que não restará alternativa senão servi-los" a voz do espectro continuava sussurrando em sua mente. Josselyn contraiu-se toda.
— Que foi, Joss?
— Nada — ela recobrou a concentração e disse — vamos, vamos logo!
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