23 - Taverna do Liliu

Era a primeira vez de Arifa em Situr.

Esse lugar é bem maior que eu imaginava!

A parte baixa era cercada por uma muralha de madeira e torres de observação. A única parte desprotegida era o cais. A leste a cidade se espalhava subindo um morro com duas corcovas. Numa delas, via-se um templo de cinco torres, uma para cada deus filho. Perto dele, uma pequena fortificação de onde Lorde Alór liderava o conselho. A outra corcova, mais baixa, tinha um aglomerado de construções precárias construídas pelos refugiados depois da praga de Maurícius e da construção da muralha de Situr.

Na porção oeste, havia um lago em torno do qual os residentes mais ricos da cidade tinham suas casas. A casa da família Ralf era bem perto do cais, assim como o bar de seu tio. Kerdon e Josselyn já haviam frequentado muito a vila e se hospedavam na hospedaria do Liliu. O barco de Ralf atracou pouco antes do crepúsculo e todos seguiram para a hospedaria. Liliu era velho gordo e bigodudo e recebeu Josselyn e Kerdon calorosamente.

— Sejam bem-vindos também, todos vocês! — ele disse.

Arifa pressionou os lábios.

Esse lugar é um muquifo! Parece que vai cair pelos pedaços... Que cheiro de mofo!

— Faduga, minha véia, mostre os quartos aos nossos hóspedes!

A esposa de Liliu chegou no local mancando. Era uma senhora idosa, toda de preto, desdentada, muito feia e corcunda.

— Por aqui — ela disse com a voz fraca e rouca.

Arifa, Tighas e Rencock a seguiram. Uma ajudante levou as coisas de Kerdon e Josselyn que foram direto para o bar colocar a conversa em dia com Liliu. O corredor estreito, nos fundos, levava aos quartos. Eram pequenos, úmidos e modestos. Um deles estava aberto e havia um homem corpulento e pálido deitado na cama com uma vela sobre o banco. O homem gemia e tremia.

— O que há com ele? — perguntou Arifa.

— Meu pobre Gegê! Pegou o mal do espectro — explicou Faduga, chorosa.

— Posso examiná-lo?

— A senhorita é curandeira?

— Estudei um pouco de medicina na academia.

— Que ótimo, talvez possa aliviar um pouco seu sofrimento.

Arifa chegou do lado do homem. Devia ter uns quarenta anos. Era pançudo, sendo a curva da barriga bem evidente debaixo das cobertas. Seu rosto estava lívido, os lábios azulados.

Não parece nada bem...

Tocou a testa e sentiu a pele molhada e fria.

— Sinto frio. Ele é frio. É o frio da noite.

— Ele foi encontrado na rua encolhido e tremendo. Já são mais de dez pessoas em toda vila... — explicou Faduga num tom lamentoso.

— Você o viu?

— Não adianta falar com ele. Ninguém responde. Eles apenas tremem e deliram.

Arifa firmou a mão na testa do enfermo e respirou fundo. Abriu a os caminhos para a mente fazendo o jii fluir. Então vi um par de olhos azuis. Azuis e gelados envoltos por uma sombra. A imagem do espectro estava presa à mente do homem. Um arrepio gelado subiu pelo braço dela.

Que diabos!

Ela caiu para trás dando um grito, vapor gelado saiu em sua respiração. O grito físico de Arifa foi acompanhado de um grito psíquico que foi imediatamente sentido por Josselyn, no bar. Ela correu até o quarto e encontrou Arifa encolhida no canto, abraçando os próprios braços e tremendo. Tighas estava à frente dela, balançando-a pelos ombros e repetindo seu nome.

— Arifa! Acorda!

A velha estava encostada no canto murmurando, tomada de pavor — O mal passou para a moça... O mal passou...

Josselyn abriu sua segunda visão deixando o jii irradiar a partir de si. Ela viu linhas de energia azulada em torno do homem e também de Arifa. Josselyn respirou fundo fazendo o jii queimar em seu peito. Logo, ela viu o seu jii iluminar todo o quarto com seus tons amarelos vibrantes. Rencock, Tighas e Faduga não viam nada daquilo, é claro.

Josselyn deixou o jii se expandir a partir de seus braços e em poucos instantes, as linhas de energia azul se desprenderam de Arifa. Libertar o homem, por outro lado, iria requerer mais esforço. Ela se concentrou e se aproximou para tocá-lo.

— Não toque nele! Não toque nele! — advertiu a velha, mas foi ignorada.

Josselyn fez o jii cobrir todo o corpo do homem, cortando as linhas mais fracas que estavam presas, mas a mente dele estava num emaranhado maior, uma teia que relutava e resistia ao avanço do jii projetado por Josselyn.

O que a Joss está fazendo?

— Fora! Fora! Fora daqui! — ela gritou. E a teia etérea se descolou da mente de Gegê e saiu do quarto.

O homem sentou-se inspirando ruidosamente, como se estivesse emergindo de um lago para tomar fôlego.

— Pelos Deuses! — ele disse, depois os olhos rolaram e caiu de volta deitado na cama. Gradualmente, o sangue voltou a corar sua face e seus lábios.

— Um milagre! Milagre! — a velha Faduga chorou de emoção. — Ela é uma santa! Que Leivisa nos ilumine!

Josselyn cambaleou e apoiou-se sobre um joelho, ao lado da cama do enfermo. Estabeleceu contato mental com Arifa. A conversa telepática ocorria de modo acelerado, sendo que os demais não a perceberiam.

"Você está bem?"

"Hã? Sim, agora melhor... Uma coisa gelada envolveu minha mente e meu corpo..."

"Se o que vimos aqui é apenas o rastro do espectro, podemos esperar um confronto com uma entidade muito forte."

Josselyn recuperou um pouco das forças, ficou de pé e virou-se para ajudar Arifa a se levantar. Arifa tomou a mão e Josselyn e sentiu um calor irradiar da fonte de jii interno da tutora. Apesar da pouca iluminação, os olhos de Josselyn pareciam ter um brilho bonito e especial aos olhos de Arifa. Ela conseguiu sorrir e deixou-se levantar pela força da mulher.

Em seguida, a velha tocou o ombro de Josselyn agradecendo-a sem parar. Acabara de ver o milagre de uma santa. Em resposta Josselyn lhe disse — Alimente-o com algo quente, uma sopa. Ele vai ficar bem.

Arifa estava fraca e Josselyn deixou que Tighas a ajudasse.

— Descanse um pouco no quarto e venha daqui a uma hora para jantarmos.

Arifa consentiu com um aceno. Suas pernas tremiam de fraqueza.

Se apenas a força residual do espectro causou tanto impacto, imagine só confrontar a entidade!

— E você — ela disse a Tighas — fique com ela. Eu, Kerdon e Rencock estaremos lá na frente.

Tighas retornou com uma vênia quase zombeteira — É claro, chefa, 'xá comigo.

Arifa se deixou cair na cama tomada por forte cansaço. Tighas se esforçou para tirar as botas dela.

— Seus pés 'tão bem detonados... E fedem também. — Tighas torceu o nariz.

— Não enche... — ela murmurou com a voz roufenha.

— A filha do duque num divia ter pés assim... — Tighas seguiu avaliando os pés dela. Tinha vários hematomas nos tornozelos, peito do pé e os dedos estavam tortos. Sem falar nas unhas que não tinham também uma aparência nada boa.

— Aquelas suas tias num te ensinaram a cuidá dos pé? — Tighas provocou.

Arifa acabou rindo.

Imagina só a cara das minhas tias se me vissem. Sozinha no quarto com um rapaz dizendo coisas sobre os meus pés nús.

— Não vou nem dizer que você...

— Já sei, sou um idiota, estrume, ou coisa pior. — ele riu-se e sentou-se na outra cama.

Esse quarto é pequeno e mofado, mas melhor que dormir ao relento.

Tighas seguiu falando. — Eu tava pensando no Ed... Como seriam as coisa se ele continuasse sendo o Eduard Redwall? Sabe, foi até legal descobrir que ele era o Príncipe Edwain, mas... Uma coisa leva a outra e agora ele é rei. Tá longe daqui e tudo mais.

Então, foi só quando Arifa roncou que Tighas percebeu que ela não estava escutando nada daquilo.

Tighas tirou os sapatos. Ele não gostava de botas. Seus próprios pés não tinham uma aparência melhor dos que o da garota, mas também, considerando sua origem humilde, poderiam estar bem piores.

Tighas ficou de pé sobre a cama para alcançar a pequena janela que ficava no alto. Ele a abriu e viu um pedaço de céu recortado. As primeiras estrelas estavam surgindo, mas ainda não era noite plena. E então viu a pequena lua esverdeada. Não estava cheia, apenas um terço dela era iluminado pela luz crepuscular. O ar fresco que entrava ali ao menos fazia diminuir o forte cheiro do cômodo.

Antes que pudesse se distrair com outra coisa, viu que Arifa se mexeu com vigor, ainda deitada. Ela murmurou algo incompreensível. Estava sonhando. Pela expressão em seu rosto, não era um sonho agradável. Tighas ficou de olho no rosto da amiga. Mesmo fazendo aquelas caretas, era muito bonita. 

Ele sabia que não adiantava ficar pensando em coisas. Ela não era do tipo que se casaria com ninguém, ou mesmo, que fosse arrumar um homem. Além disso, ele não conseguia parar de pensar na enteada da Mestra Ailynn. Precisava voltar a casa dela para cuidar da Lali, a filha de Ailynn, como desculpa para ver a moça novamente.

O rapaz passou algum tempo ali, com muitas coisas em mente, revirando na cama.

Murmurou — O cerco dos demônios estava ficando cada vez mais intenso... O que alguém como eu pode fazer a respeito? Nada.

Então ele olhou para cima e viu que já era de noite, o pedacinho de céu que via através da janela estava cheio de estrelas. Calçou os sapatos, desceu da cama e cutucou Arifa no ombro.

— Acorda. Acorda miladi...

— Miladi é o cara...

— Isso não são modos, Arifa! — disse imitando o tom de voz da tia magra de Arifa.

Arifa se sentou na cama e deixou os pés tocarem o soalho frio e irregular de terra socada.

— Você tirou minhas botas?

— Num tá alembrada?

Arifa apertou os olhos. Estava pregada antes da soneca. Fora conduzida até o quarto, mas não se lembrava direito dos detalhes. Ela xingara, Tighas, sim, mas sempre fazia isso, de qualquer jeito.

— Obrigada.

— Como assim?

— Obrigada por me ajudar. Só estou agradecendo.

Tighas encolheu os ombros. — Ora, de nada! Mas cê nem precisava agradecer...

Arifa não retrucou, apenas fez força para fazer os pés e pernas deslizarem de volta para as botas.

— A chefe qué discutir nossa estratégia durante a janta.

Arifa ficou de pé.

Que fome!

A dupla seguiu para o salão na frente da estalagem.

Que cheiro bom! Se eu pudesse, me teleportaria para o outro lado do salão.

Observou a dupla de cavaleiros e o Mestre Tassip. Havia muito movimento agora, a taverna do Liliu era mesmo popular. Ela teve que se desviar de um monte de sujeitos estranhos que pareciam querer comê-la com os olhos. Alguns assobiavam ou diziam coisas indecorosas.

Esses idiotas! Se eles ao soubessem quem eu sou! Eu bem que podia chicoteá-los com o jii, mas melhor não. O espectro já constitui problema demais para eles.

— Você fez sucesso com a homalhada de Situr, hã Arifa? — zombou Tighas.

Ela apenas ignorou se se sentou à mesa com os demais. Josselyn tocou-a na mão e indagou — Você está melhor?

— Sim, obrigada. Só estou faminta. — disse sem olhar para Josselyn, salivando ante à Galinha de Griss, farofa de ovos e ensopado de peixe que estavam servidos na mesa.

— Sirva-se, senhorita — Rencock passou o espeto e a faca para ela. Os pratos eram simples cuias de cerâmica mal acabadas, mas Arifa nem ligou para aquilo. — Tirou um naco grande da galinha e levou à boca numa dentada nada polida.

— É assim que se faz! — comemorou Tighas. — Nunca pensei que a veria comendo deste modo.

Novamente ela ignorou Tighas.

Hum! Isso tá muito bom!

Apenas fechou os olhos saboreando a carne macia e bem assada. Gordura da pele escorria pelo queixo e pingava na mesa.

Tassip colocou-os à par da situação — Daqui a uma hora vai soar o toque de recolher. Nesses dias, nem mesmo a guarda está circulando por aqui depois disso. É aí que entraremos em ação.

— É? — quis saber Tighas — Qual o plano? Mandar eu na frente como isca e emboscar o espectro?

— Sabe que não é uma má ideia? O que acha Rencock? — Tassip sorriu para o colega.

— Já que ele se ofereceu, podemos fazer isso.

— Ei, eu não me ofereci. Eu estava apenas...

— Apenas sugerindo um ótimo plano — concordou Josselyn. — Você é certamente o mais magro e fraco entre todos nós.

— Mas, e a Arifa? — ela nem tomava conhecimento do que eles estavam falando. Apenas comia agora boas garfadas de farofa e postas do peixe ensopado. Tinha um tempero maravilhoso, se pudesse, levaria a cozinheira para o castelo em Kamanesh.

— O que pensa que o Duque faria conosco se soubesse que usamos a filha dele como isca para um morto-vivo? — indagou Tassip. — E pior, se algo ruim acontecesse a ela.

— Já entendi... Eu sou mais dispensável e inútil mesmo.

— Muito pelo contrário, jovem Tighas, você será muito útil — riu-se Tassip.

— Professor, zombar dos alunos não pega muito bem.

— Ainda bem que não estamos na academia. Você achou mesmo que ganhar esses créditos das incursões seria moleza?

— E é melhor levar alguma comida no bolso — sugeriu Arifa — se você se esbarrar no tal espectro vai ficar faminto.

Todos riram, menos Tighas, que sentiu um calafrio ao pensar num encontro com o fantasma.

— Ah tá... muito engraçado.

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