22 - O amor perdido
O povo de Tleos não se interessa muito por política, mas a recente morte do Oxivonu Orozimbo deu início à disputa intensa entre Lerifan, Maltar e Beguino. Quando o Rei-Deus disse que não ia decidir antes de escutar a opinião a assembleia, a cidade foi tomada por grande agitação.
É, faz anos anos que o Rei-Deus não leva uma questão tão importante para a assembleia!
Gálius tinha muito trânsito na assembleia, foi lá mesmo, que há coisa de meses, se envolveu numa discussão com Lerifan que gerou a rixa e culminou na morte de seu amigo Yoltesh.
E pensar que eu queria me tornar membro da assembleia... Agora só consigo pensar em fazer Lerifan pagar.
A assembleia tinha um poder razoável na cidade e poucas vezes, na longa história de Tleos, o Rei-Deus contrariou alguma decisão do povo. O Oxivonu era a ponte entre a assembleia e Rei-Deus, decidindo que questões mereciam ser consideradas pelo governante supremo.
Orozimbo conhecia muito bem o Rei-Deus e sabia bem quando uma questão deveria ser levada. Ele vai fazer falta!
A assembleia era dividida em três bancadas, a Leste, Sul e a Oeste. Na porção norte do plenário, havia um grande espaço vazio com a estátua do Rei-Deus e um púlpito. Sempre houve uma tensão entre os membros da Oeste e Leste, o equilíbrio e decisões vinha da bancada Sul. No segundo e terceiro andares do prédio circular, ficavam as galerias populares. Era dali que Gálius assistia os discursos.
As bancadas estão divididas... A Oeste apoia o crápula, a Sul, Beguino e a Leste, Maltar. Totalmente previsível.
Gálius sempre esteve alinhado os lestistas e Lerifan, representava o pensamento típico dos oestistas: tradições e rituais acima de tudo. Portos fechados, separação das castas de trabalho, casamentos apenas entre pessoas da mesma casta, etc. A verdade é que a sociedade de Tleos mudava muito pouco, mas eventualmente, mudava. A lei de casamento nas castas já havia caído há mais de mil anos, mas ainda assim, mesmo não sendo proibidos, eram raros os casamentos que quebravam aquela tradição. Não era um crime, mas não quer dizer que não houvesse desaprovação e discriminação. Toda mudança, sempre vinha do leste, e este estava sempre empenhado em influenciar o sul, já que era impossível fazer os oestistas enxergar algo além de suas duras e cristalizadas convicções. Gálius ficou tenso ao observar Lerifan subir os degraus de mármore que levavam ao púlpito.
Crápula de nariz empinado! Bem que podia tropeçar e cair daí de cima!
— Povo de Tleos. Todos sabem que sou amigo das tradições. São elas que dão estabilidade à nossa cidade. Mas é fato que se olharmos para trás, veremos que as tradições não são imutáveis. Elas mudam. Estudei e observei que todas as mudanças ocorreram quando o povo percebeu algo errado, algo que já não proporcionava o bem-estar de todos. Tenho para mim que para ocupar o cargo de Oxivonu é necessário haver um projeto, um ideal. Escutei atentamente os discursos de meus veneráveis colegas, os vonu Maltar e Beguino. São excelentes pessoas, que nunca se ponha dúvida sobre isso, mas não consegui perceber um projeto. É claro, falaram sobre o bem comum, o bom funcionamento da cidade, a harmonia milenar sob a qual vivemos. Quem ficaria contra isto? Ora apenas um demente! Porém, há algo em nossa cidade que observo e me enche de tristeza, os silfos. Sim, olhem ao redor? Há apenas um silfo nessa assembleia? Por que eles não vêm aqui debater os bons destinos da cidade? Eles não têm interesse algum? É claro, são empregados dedicados e, em geral, pessoas de bem. Mas olhem para a moradia deles? O gueto das orelhas é... desculpem me dizer assim, mas é uma bagunça! Me digam, quantos de vocês mandariam seus filhos dar uma volta no gueto?
Houve silêncio, ninguém se manifestou.
Ele é um canalha! O que pretende? Expulsar os silfos?
— Pois então — continuou ele — é um problema de nossa cidade que já ignoramos por tempo demais. Já sei o que estão pensando... O que devemos fazer a respeito, certo? Seguindo o exemplo, sempre benevolente de nosso supremo governante, penso que a primeira tentativa que devemos fazer é de integrar melhor os silfos a nossa cidade. Nós temos um Deus em carne e osso e sobre o que eles cochicham? Sobre a Deusa Mãe! Penso que os silfos devem abdicar de vez de suas crenças particulares e abraçar a verdade única de nosso Rei-Deus.
— Está dizendo que eles deverão ser forçados a seguir nossa crença? Isso ao menos é possível? — indagou um deputado da bancada sul.
— Boa pergunta! Como saber se é impossível sem ao menos tentar? O que eu proponho é que as crianças deles frequentem o templo e aprendam a doutrina nos dias de oração. Que reformemos o gueto, mas não só o gueto, todas as áreas da cidade que estão decadentes de modo a dar uma aparência melhor e também melhores condições de moradia a todos.
— Reformar? Explique-se, por favor, vonu Lerifan.
— Eu proponho uma reforma radical. Por abaixo todas as edificações do gueto, todas, sem exceção.
— Mas onde eles vão morar?
— Claro, tudo a seu tempo. Construiremos depois de Várzea Alta uma vila temporária para a habitação dos silfos. Será um sacrifício para eles, na verdade, para todos. Mas devemos ter em mente que estamos construindo um futuro melhor para todos. Alguém negaria que o próprio Rei-Deus não desejaria apenas o melhor para o povo de nossa cidade?
Ninguém na assembleia discordou e houve um murmúrio de aprovação, tanto nas bancadas como nas galerias.
Esse maldito mentiroso. Vai enganar a todos com essa conversa fiada! Não é possível!
Aquilo estava dando um nó no estômago de Gálius.
Ele não quer vida melhor para os silfos! Mentiroso! Maldito, mentiroso!
Ele suava frio, se segurando para não gritar mentiroso a plenos pulmões. Foi um toque delicado em seu ombro que o salvou daquilo. Gálius se virou e viu Yté, sua amiga de infância, olhando para ele com semblante sério.
Ela sussurrou em seu ouvido — Vem, Gálius. Não tem nada de bom aqui para você.
— Mas o Lerifan... — ele ia dizendo quando teve sua orelha puxada por ela, como fazia quando eram crianças.
— Vem, eu disse!
Gálius não conseguiu recusar e deixou Lerifan debatendo na assembleia enquanto Yté o arrastava para fora do edifício. Logo desceram as escadarias e seguiram pela avenida movimentada rumo ao palácio.
— Mas o que houve? O que deu em você?
— Nós vamos precisar de você, Gálius.
— Mas como assim?
— Se não fizermos nada, Lerifan irá vencer e colocar em prática o plano maluco dele para destruir o gueto.
— É só dizer o que preciso fazer, Yté.
Ela parou e puxou-o para um canto, saindo do movimento da rua. Ela ficou muito perto dele, mais do que ele suportava sem sentir desconforto, ou mesmo, excitação.
— É arriscado Gálius.
— Não tem problema, eu...
— Você não entende. Você e sua família podem se dar mal. Você arriscaria a vida de seus pais e seus irmãos para nos ajudar?
— Eu faria qualquer coisa por você, digo vocês, meus amigos. — Gálius enrubesceu. Seu coração conseguia estar mais acelerado quando próximo de Yté, do que quando confrontando Lerifan.
— Então você é um tolo!
Empurrou ele e saiu. Ele a pegou pelo braço — Espera! Me explica melhor. O que está acontecendo?
— Suponho que seja uma revolução.
— Revolução?
— Penso que o Kalbin perdeu o juízo. Eu estou com medo, Gálius.
— Yté, não estou entendendo nada. Se acalma vai, me explica o que está acontecendo?
Ela olhou para baixo, os olhos ficaram cheios de lágrimas. — Vem comigo. — Puxou-o agora em outra direção, e não mais para o palácio. Os dois andaram por um pequeno tempo de mãos dadas. Tempo suficiente para atrair olhares de reprovação de pessoas nas ruas. Então, ambos recolheram as mãos e seguiram. Estavam descendo agora.
— Para onde estamos indo?
— Tem um lugar... É logo ali.
Passaram por um monte de ruas que Gálius não conhecia bem. Finalmente, passaram ao lado de um armazém não muito distante do cais, umas duas ruas para dentro. Havia uma árvore ao lado do muro e Yté subiu nela como uma gata. Um tronco grosso passava por cima do muro e ela seguiu por este até saltar para dentro da propriedade. Gálius a seguiu precisando tomar cuidado para não escorregar. Então viu o terreno de aparência abandonada, tomado por mato e pulou para dentro. Havia uma trilha pavimentada quase inteiramente coberta por vegetação rasteira e levava a uma pequena cabana de madeira e de aparência abandonada. A porta sem trancas abriu ao ser empurrada pela silfa. O interior estava sob penumbra, mas Gálius notou haver algumas estantes e muitos objetos organizados. Entre eles, um búzio enorme que chamou sua atenção. Havia uma tigela de metal no chão com carvão dentro. Ela derramou um pouco de piche sobre o carvão e ateou fogo com uma pederneira.
Seu rosto lindo se iluminou nos tons alaranjados das chamas que surgiram.
— Esse aqui é o meu esconderijo. Eu descobri esse lugar há muitos anos. Ninguém vem aqui... É seguro.
— Então, Yté. Afinal, o que está acontecendo?
— Eu vou te contar, mas você precisa me prometer que não vai falar disso com ninguém. Nem mesmo com sua família.
— Tá, eu prometo.
— Senta... Vai demorar um pouco.
Gálius viu que havia alguns bancos no local. Agora que estava iluminado, viu até que havia uma cama improvisada no canto.
Gálius se sentou e Yté ficou cutucando o fogo com uma vareta de metal.
— O Rei-Deus está enlouquecendo.
— Como assim?
— Nós sempre trabalhamos para ele, Gálius. Somos seus servos mais próximos. Minha avó trabalhou para ele. E a avó de minha avó também. Nós temos anotações, conhecimento sobre seus costumes, seus humores. Os ciclos de ação dele.
— Ciclos de ação?
— Sim. Ele muda o comportamento, mas leva tempo. Minha avó chama isso de fases. Era para ele estar na fase de garotas. Mas ele não as aceita mais.
— Vai ver ele só está ficando velho.
— Não, você não entende. Ele sempre foi velho, mas não tão velho que não tivesse seus apetites. Ele é sistemático. Seu comportamento já foi observado e anotado por nós por muitas gerações. Ele tem fases, sempre teve, mas isso mudou.
— Quando?
— Ele está atrasado. Parou na fase das pinturas. Ele acorda, faz as refeições e depois vai para sua sala de pintura. Ele prepara as tintas e pinta um quadro, diariamente. No fim do dia, ateia fogo no quadro.
— Isso não significa que esteja louco, ou algo assim...
— Ele está atrasado há mais de dez anos! Dez anos! Já houve variações de meses, em suas mudanças de ciclo, mas nunca de anos. Ele pinta as ruas de Tleos. Pinta as pessoas. Pinta todas as paisagens. Ficam lindas, perfeitas. Então, faz uma pausa para o almoço. Depois, retorna e pinta por cima. Ele pinta por cima a cidade em chamas. As pessoas agonizando, sofrendo. Queimando. Em outras vezes, apenas as cinzas e corpos amontoados enegrecidos, queimados.
— Vocês pensam que ele pretende queimar a cidade e acabar com tudo?
— Alguns de nós acreditamos que sim.
— O que pretendem então? Matá-lo?
— Não, isso é impossível. Em nossos registros, temos anotadas mais de trezentas tentativas de assassinato. Todas falharam, mesmo aquelas que estiveram perto de ter sucesso. Ele já foi envenenado, afogado, queimado e até mesmo, decapitado. Ele apenas levanta, retorna e manda matar todos os assassinos e conspiradores. É impossível.
— Ouvi uma história ou outra, mas nunca acreditei que isso fosse verdade.
— Eu não acredito que ele queira destruir a cidade. E nos ama. Ele ama a cidade. Mas ele está obcecado. E não mudou de ciclo. É por isso que ele está ignorando as ações de Lerifan. Em outros tempos, ele não deixaria que um de seus vonu agisse do modo que Lerifan vem agindo.
— Caramba! Nem sei o que pensar...
— Escuta, Gálius! — ela pegou a mão dele e apertou com força — Isso que te contei é o maior segredo de nosso povo. Todos nós juramos não contar nada sobre os registros dos servos para ninguém de fora. — e chorou — eu fui fraca, Gálius. Eu não aguento mais ver ele pintando a morte, todos os dias. Eu falhei com meus irmãos.
Gálius ajoelhou-se ao lado de Yté e a abraçou. Ela o apertou com força e chorou por alguns instantes.
— Era para eu te levar ao palácio. Eles iam usar você, Gálius. Iam usar tudo o que você viu para atingir Lerifan, mas eu fiquei com medo... Medo de perder você.
Ela o segurou com ternura em ambas orelhas e o puxou para si num beijo proibido que segurava dentro de si há anos. Ela sempre gostou dele, mas a família e as tradições e depois, a responsabilidade da irmandade dos servos, a impediam de seguir seus desejos.
Gálius sentiu que a amava, desde sempre, mas aquilo havia se apagado quando ela foi levada para o treinamento como serva palaciana e sumiu por vários anos. Agora estava tudo de volta. Tudo explodindo.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top