21 - O barqueiro
Alguns dias depois do retorno de Arifa, a rotina de estudos estava se reestabelecendo. Arifa mergulhou a fundo no estudo sobre os demônios. Como aluna do sétimo ciclo, já tinha acesso à maioria dos livros da seção reservada da biblioteca. Sentada sozinha num canto da biblioteca, sob a luz de um candelabro, foleava o Tomo dos Mil Demônios. Ela riu consigo mesma.
Engraçado! Não faz muito tempo tivemos que roubar esse livro para investigar sobre os demônios infiltradores.
Fazia anotações em seu caderno de bolso sobre a linhagem de demônios. A maior parte dos demônios que realizaram ataques na região de Lacoresh eram alados e pertenciam às hostes do Duque Marlak. Estava registrado que o líder dessas hostes fora derrotado e aprisionado na época da grande guerra. Já os demônios horrendos que vira em Lirr, pertenciam às hostes do Duque Zimbros, também conhecido como O Senhor do Caos.
Comeremos todos vocês humanos em nome de Lorde Grevos! Sugaremos suas almas!
Arifa ainda escutava a voz horripilante de Welmarg em sua mente.
Aquela massa gorda de carne, bocas e tentáculos foi a coisa mais horrível que já vi!
— Aí está você! — disse Tighas.
Arifa saltou na cadeira e deu um soco no braço do rapaz.
— Ei, calma aí!
— Você me assustou!
— Também, cê não larga esses livros.
— Nós temos sorte de ter esses livros!
— Tá, mas azar de ter feito aquela viagem com Mestre Tassip. Ele nos convocou para outra...
— Para onde?
— Situr. O pessoal de lá não está dando conta de um espectro, então pediram ajuda à academia.
— Espectro?
— Foi o que ouvi eles dizerem. Vamos arrumar nossas coisas.
Arifa deixou os livros para trás.
Mas que droga, ainda tenho muito o que aprender! Precisamos nos preparar para o próximo ataque! E se Kamanesh passar a ser alvo dos zimbronianos?
As palavras de do demônio Welmarg ainda vibravam em sua mente. Ele dissera que Lorde Grevos avançaria sobre Lacoresh.
***
Os demônios vão invadir logo, tenho certeza!
Tighas cutucou Arifa no cotovelo. Estava distraída com seus pensamentos. Então, ela percebeu que Kerdon Tassip estava diante dela falando.
Nossa! O que ele falou?
— Ah! Sim, me desculpe.
Kerdon fez uma careta para Arifa. Seus cabelos estavam desgrenhados e havia bolsas escuras sob seus olhos — Você escutou o que eu disse?
— Não, na verdade, eu estava...
— Certo. Procurem um barqueiro chamado Ralf no cais pequeno. Encontrarei vocês lá, logo mais. E o Duque já foi avisado.
— Obrigada.
Kerdon seguiu pelo corredor apressado.
— Ele está tão esquisito... — observou Arifa.
— Também, depois do que ele passou em Lirr? — Tighas coçou os cabelos curtos espetados.
— Tem razão, estou sendo...
— Se me permite dizer, cê tá mais esquisita ainda.
Os passos de ambos ecoavam pelo corredor do segundo andar da academia. O local estava sob penumbra.
— Eu só estou preocupada... Falei com o Ed, outro dia.
— Quando esteve na capital? Faz mais de um mês.
— Não, quando chegamos de Lirr. Falamos por telepatia.
— Sei como. Ele usou um amplificador de Jii, né?
— Quê? Como sabe disso? — Arifa parou e pegou o colega pelo braço.
— Eu sei das coisas Arifa. Já devia estar acostumada. — Tighas se desvencilhou e seguiu caminhando.
— Ele falou com você também?
— Não, não...
— Eu juro que um dia ainda vou entrar na sua mente...
— Pode tentar — Tighas deu uma risadinha e apontou para a testa — vem!
Arifa rolou os olhos e passou por ele. Ele não a seguiu, mas foi em outra direção e disse.
— Te encontro no portão, vou pegar meus troços.
Arifa desceu a escadaria, cruzando com um grupo de estudantes do segundo ano. Ela acenou para eles. Os garotos vibraram e ela não conseguiu evitar escutar o que eles diziam sobre ela. Que ela era demais e coisas assim. Era uma admiração tanto por sua beleza, quanto por suas habilidades e crescente fama. A recente batalha em Lirr era o assunto mais popular aqueles dias na academia.
Quando cruzava o pátio sentiu o estômago gelar.
É a Joss!
Josselyn conversava com a Mestra Ailynn. As duas acenaram para Arifa e ela respondeu, com um aceno e um sorriso tímido. Em seguida, se assustou, ao perceber a mente da Mestra Ailynn próxima demais.
Ela está sondando minha mente?
Fechou-se de imediato envergonhada quanto ao que ela poderia descobrir se invadisse sua privacidade.
Será a mestra faria isso? Ou estou ficando paranoica?
Cruzou com mais alguns estudantes que seguiam mestre Nermick. Havia uma garota de uns doze anos naquela turma.
Puxa, como o tempo passou! Outro dia eu era como aquela pirralha com o longo rabo de cavalo. Agora, falta apenas um ano para eu me formar... O Ed me convidou para Faltava apenas um ano para se formar... Já recebera um convite de Edwain para servir em sua guarda, em Lacoresh. Será que deveria recusar um segundo convite dele? E se for uma convocação, no lugar de convite? Isso me levaria para longe de Kamanesh, para longe de Josselyn...
Arifa balançou a cabeça querendo expulsar fisicamente tais pensamentos.
— Qu'éisso, Arifa? — disse Tighas num tom debochado. Vinha apressado com uma enorme mochila nas costas.
— Para que isso tudo?
Tighas encolheu os ombros.
— Ué! Nunca se sabe...
O cais pequeno não era longe da Academia. Ficava a apenas duas quadras abaixo da ponte que ligava Kamanesh a Clyderesh. Havia uns três barcos pequenos atracados no pier mais longo.
— E aí, Ralf?
— Tighas? Fala aí, seu bostinha. — o grandalhão olhou para Arifa e se corrigiu — quero dizer, meu bom rapaz.
— Tudo pronto para sair? — indagou o rapaz.
— Estou sempre pronto — exibiu um sorriso com um dente faltando. Ralf era barbudo, alto e gordo, quase uma cópia de seu irmão, Rulf, um amigo de Kerdon e Josselyn que havia morrido no resgate da Capitã Alynn, na Necrópole. Porém, Ralf tinha vestimentas simples de um barqueiro.
Tighas tirou um embrulho da mochila e entregou para Ralf — Aqui está. O que você pediu.
Os olhos de Ralf brilharam — Aí garoto! Você é foda! Quero dizer, me desculpe as palavras, miladi.
— Olha só, se me chamar de miladi de novo, jogo essa porcaria aí no rio.
— Desculpe, eu só tava...
— Dá pra entender? — Tighas apertou os olhos — Um monte de mulheres dariam tudo para ser a filha do Duque...
— Isso não tem a ver com meu pai, seu idiota! — Arifa retrucou toda vermelha — Eu só...
— Calma aí, Arifa. Você quer um abraço? — Tighas chegou perto dela com os braços abertos.
Em resposta, ela o ameaçou com o punho em riste.
Ralf deu uma gargalhada — Já vi que essa viagem vai ser divertida!
— Nossa Arifa, você tá me botando mais medo que aqueles demônios gosmentos de Lirr. — zombou Tighas.
Enquanto os dois continuavam a discutir, Josselyn, Kerdon e Rencock chegaram ao cais pequeno.
— Oi Joss... — Arifa a cumprimentou com timidez. Josselyn respondeu colocando a mão em seu ombro e sorrindo.
Ralf foi até Kerdon e o cumprimentou com um abraço forte que o tirou do chão, como se fosse um garoto.
— Fala, sua bicha homenaseana!
— Miserável fedorento do caraleo! — Sempre que Kerdon se encontrava com Ralf, falava um pouco do jeito que Rulf costumava falar. Ralf apreciava aquilo.
— Jojô! Hoje a noite vamos beber no bar do tio Liliu!
Josselyn cumprimentou-o dando dois tapinha no ombro.
— É? Tomara que dê tempo... Queremos saber mais sobre o espectro.
— Vixe! A coisa tá feia, eu te digo! Quem não morre fica com o mal... Tem um cara na minha rua que está de cama, há dias. Já veio padre, mago e ninguém dá solução. Esse espectro é muito sinistro!
— Tem aparecido diariamente?
— Olha, Jojô, sabe como é o povo, né? Esses dias se tem dois gatos brigando a noite no outro dia tem cinco histórias diferentes falando da coisa. Eu nunca vi nada, graças a todos os Deuses! Mas, muita gente que viu algo fala também duns cachorros que sempre estão por perto do fantasmão. E tem um povo que jura que a aparição é o fantasma do Barão Calisto. Tio Liliu diz que isso é bobagem, que Calisto não gostava de bichos e nem tinha cães.
Barão Calisto? Isso é interessante!
Arifa indagou — Lá em Situr contam muitas histórias sobre o Barão Calisto? Alguém já falou no pai dele?
— Pai do coisa ruim? Dizem que um necromante enterrou um ovo de ganso axiano numa catacumba e o Barão nasceu de lá.
— Pensei que o povo de Situr gostasse do Barão. — Arifa puxou os cabelos de lado.
Ralf encolheu os ombros. — Dizem que na época que ele governou, sim. Mas isso foi antes de todo mundo saber que ele estava mancomunado com os necromantes, né?
Rencock jogou sua mochila para dentro da embarcação e disse — Pessoal, a conversa está muito boa, mas se quisermos chegar em Situr antes do anoitecer, é melhor sairmos logo.
— Tem razão, cavaleiro, vamos!
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