2 - Um amigo em apuros

Gálius partiu para cima do templário num impulso suicida, mas foi impedido pelo irmão que o arrastou pelo braço para longe da praça.

— Perdoe-o, Santo Amigo! É apenas sua compaixão exacerbada...

— Me larga, Gorum! Ele não pode fazer isso...

— Claro que pode, ele é o braço do Rei-Deus!

Gorum, que era mais velho e forte torcia o braço do irmão sem dó de machucá-lo. Era um palmo mais alto, duas vezes mais largo e usava os cabelos raspados à moda da Cidade de Tleos.

Vonu Lerifan, que tinha seu manto amarelo salpicado pelo sangue escuro do silfo, apenas olhava-os de cima para baixo, desejando em seu íntimo que fosse atacado pelo rapaz. Ele já queria há muito tempo acabar com um daqueles estrangeiros para que servissem de exemplo. Antes que levasse adiante tais pensamentos, foi interrompido pela mão ensanguentada do silfo que agarrou a barra de seu manto. Em resposta, o silfo choroso provou um pisão da sola áspera da bota do templário que lacerou seu nariz.

— Guardas! Levem este traste.

A dupla de guardas corpulentos, que trajavam apenas calças escuras e um cinturão dourado, com o brasão do cão de duas cabeças, pegaram o silfo mirrado e o arrastaram, abrindo caminho em direção ao posto da guarnição, ladeira acima.

Lerifan ergueu o pescoço em busca dos irmãos, mas eles já haviam se perdido no meio da multidão.

Finalmente, já longe do perigo, Gorum atirou o irmão mais moço e magricela para dentro de um dos canais.

— Fica aí um pouco até esfriar a cabeça.

Gálius havia recebido o nome de seu avô materno, mas não se parecia nada com ele. Tanto seus traços físicos, quanto disposição vinham de seu avô paterno, Armand Blackwing. Usava os cabelos longos e negros soltos, como fizera seu pai na juventude. Agora estavam emaranhados e sujos de água barrenta. Os cabelos longos faziam com que as pessoas da cidade o olhassem com desconfiança redobrada. Mas ele não ligava para olhares.

— Mas Gorum!

— Eu devia te dar uma surra! Quer se matar, tá bom, se joga embaixo das patas dum Zérfuro... Mas atacar um Vonu? Está querendo trazer desgraça para a nossa família?

— Eu não ia atacar ele!

— Ah, não? Pois foi bem isso que me pareceu.

— Eu ia discutir com ele. — Gálius tentava racionalizar, mas era possível que além de discutir ele bem pudesse agredir o templário naquela situação.

— Discutir? Com um vonu? Espere até nossos pais ficarem sabendo...

— Você não vai falar merda nenhuma.

— Ah é?

— Se contar, eu conto sobre a sua namorada.

— A Beluna não é minha namorada...

— Com certeza, não é só sua... Bastam algumas moedas e... — Gálius exibiu um sorriso debochado.

Gorum pulou para dentro do canal irritado afundando o irmão. Agora quem havia perdido a cabeça era o outro e poderia bem ter afogado o mais novo, se não tivesse recebido uma joelhada nos bagos.

Gálius saiu da água cuspindo barro e arfando enquanto o mais velho recostou-se na margem, choroso. Gálius escalou para fora do canal e voltou para a direção da praça.

— Espere aí! Onde pensa que vai?

— Vou avisar a família do Yoltesh.

— Você conhecia aquele silfo?

— Mas é claro, seu babaca. Por que acha que fiquei indignado? Aquele filho da puta só fez isso com ele para me atingir.

Gorum saiu também e foi saltitando atrás do irmão.

— Como assim, te atingir?

— É por causa do que eu estava falando outro dia... Ninguém tem coragem para questionar porra nenhuma nessa cidade...

— Você andou falando merda para um vonu?

— Não era só um, era uma reunião de templários.

— E o que você falou? Não andou ofendendo o Rei-Deus, andou?

— Você acha que sou estúpido? Eu estava discutindo sobre os parâmetros de julgamento...

— Quê?

— Você nem ia entender isso mesmo... A questão toda é que minha argumentação era mais forte. Mas ele não quis dar o braço a torcer, então, eu fui forçado a humilhá-lo diante dos colegas quebrando os seus argumentos falaciosos.

— Que merda, Gálius! Isso vai dar merda!

— Ah, vai. Mas vai dar merda para aquele idiota do Lerifan. Vem, é por aqui.

A dupla seguiu ao largo da praça da fonte azul e desceram as escadarias para a região portuária. Ali do alto puderam ver a Baía de Tleos apinhada de pequenas embarcações pesqueiras. Além das docas, perto dos rochedos, ficava o gueto das orelhas.

— Você frequenta esse lugar? — Gorum indagou temeroso.

— Deixa de ser frouxo, vem. Não tem nada demais aí. É só má fama, mas na verdade é um dos melhores lugares da cidade.

Gorum olhou para aquele conjunto de casebres de madeira, amontoados uns sobre os outros e não teve a sensação de que realmente pudesse ser um dos melhores lugares.

— Nae, Muninediir Gondin. — disse um silfo esguio de calças marrons e blusa bege.

— Nae, Kalbin.

Gorum arregalou os olhos, não fazia ideia que o irmão falasse a língua dos silfos. Para falar a verdade, se dava conta do tão pouco que conhecia o próprio irmão. Ele e o silfo seguiram trocando palavras por mais algum tempo.

O silfo bateu no braço de Gorum dizendo — Relaxa, grandão. Tá tudo bem... Seu irmão é nosso truta, tá safo, tá trisafo.

— Vem Gorum.

Seguiram por entre becos, que não cheiravam pior que o restante da cidade. Ali predominava o odor da maresia. Entraram num barraco e nos fundos, encontraram uma senhora de joelhos, com vários cestos de vime ao seu redor. Estavam cheios de peixes e mariscos. Ali sim, fedia um pouco.

— Essa é Nashay, mãe do Yoltesh. Esse aqui é meu irmão.

— Olá.

A senhora tinha mãos calejadas, sujas de sangue e tripas de peixe e um rosto sofrido. Os cabelos ficavam escondidos embaixo de um lenço muito colorido, assim como sua roupa.

— Eu vim trazer uma notícia ruim: Yoltesh foi preso.

Ela uniu as mãos cobrindo a boca. — Pela mãe do mar! Mas o que esse menino foi aprontar, Muninediir?

— Ele não fez nada, Nashay. Foi tudo culpa minha.

— Como assim, culpa sua, Muninediir?

— Eu irritei um templário e ele pegou o Yoltesh para me atingir. Vim apenas dizer para não esperá-lo. Prometo, darei um jeito de libertá-lo.

A senhora fez uma reverência para Gálius — Muito obrigado! Que a deusa mãe ilumine seu caminho.

— Deusa mãe? — murmurou Gorum confuso e antes que continuasse falando alguma coisa, Gálius puxou-o pelo braço para saírem dali. Mas antes de saírem, Gálius voltou a falar com a senhora, angustiado.

— Olha, Nashay Gondin, me perdoe. Se soubesse que traria problemas para seu filho, eu não teria discutido com Vonu Lerifan.

— Não é culpa sua, Lau Jedha. Você tem bom coração, estou certa que nunca faria algo para prejudicar alguém.

Gálius fechou sua expressão, pois ouviu algo diferente do que gostaria. A culpa entrava mais forte dentro dele com aquela reação. Seguiram de volta saindo do bairro, envoltos num silêncio incômodo. Passaram ao largo do centro da cidade até atravessarem a ponte vermelha. Entraram no bambuzal para cortar caminho.

— Que conversa é essa de Deusa Mãe? — Indagou Gorum, curioso.

— Esquece que ouviu isso, está certo. — replicou num tom que deixou claro que não iria explicar nada.

— O que vai fazer agora, Lius?

— Ainda não sei... Tenho que pensar. Lerifan está querendo me pegar...

— Por que não pede ajuda para a mãe?

— Não vai adiantar. Ela é conformada, obediente. Não vai fazer nada para confrontar um Vonu.

Gorum deu com os ombros. — Eu não consigo pensar em ninguém, além de você, que se meteria a enfrentar um Vonu.

— É isso!

— Que foi, Lius?

— Acho que sei como salvá-lo, mas antes, preciso tomar um banho e trocar de roupas.

— Está aí uma boa ideia.

Saíram do bambuzal e puderam ver a casa deles que se destacava entre as demais, pelo estilo de construção estranho e, principalmente, pela torre. Gálius olhou para a janela e viu que seu pai estava lá. Ele ficava muito ali, pensativo, observando as ruas. Sempre que os filhos perguntavam se havia algum problema, se ele estava preocupado com alguma coisa, ele negava, desconversava.

— Olha lá o pai — disse Gorum — tem alguma coisa errada com ele.

— Você está cismado. Ele sempre foi assim...

— Para alguém que se acha muito esperto você não tem sensibilidade alguma.

— Deixa o velho, deve estar pensando em suas aventuras do passado. É só isso.

Do alto da torre, Kyle sentiu um frio no estômago ao avistar os filhos sujos, sem os reconhecer por um instante. Imaginou que seriam as pessoas a quem ele entregaria a espada. Relaxou ao perceber que eram apenas seus filhos. Mas a angústia não o abandonou por completo.

O sol já estava se pondo atrás do centro da cidade, fazendo seus contornos ficarem escuros vistos dali. Aos poucos a sombra do palácio cobriu toda a casa deles. Os dois irmãos chegaram em casa com as mentes cheias de pensamentos.

Gorum duvidava que seu relacionamento com Beluna poderia evoluir como ele desejava.

Já Gálius tentava formular uma estratégia para libertar o amigo, no dia seguinte.

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