19 - Ponte mental
— O ataque dos demônios pegou o concelho dos magos de surpresa. — observou Arifa.
— Eles se supunham muito bem protegidos pelo Escudo Azul — devolveu Yurkan, um rico comerciante de Lirr.
Kerdon, que tinha a mãe recostada em seu colo com as feridas cobertas por curativos, disse — Agora o concelho deve ter aprendido a não subestimar as artimanhas dos demônios.
— Antes de partir, meu primo me disse que Lirr poderia ter caído se não fosse o alerta que vocês trouxeram.
— Eles nos agradeceram o bastante, foram gentis conosco a despeito do caos que tomava a cidade, após a investida ser finalmente repelida. — comentou Arifa, segurando-se, quando a carruagem balançou forte ao passar por um calombo no caminho.
— Fico grato que Lorde Kirlan e o concelho não tenha impedido nossa caravana de partir — disse Yurkan.
Havia, viajando com eles cerca de trezentos cidadãos de Lirr que decidiram deixar a cidade depois do ataque. Esse grupo grande, em que se incluíam Cléria e Keira, mãe e irmã de Kerdon. Seguiam para Kamanesh.
A mãe de Kerdon estava muito mal, era levada na melhor e era levada na melhor carruagem de Yurkan, parceiro de negócios da família Tassip.
— Senhor Yurkan, por que decidiu deixar Lirr? — indagou Arifa.
— Já temos alguns negócios em Kamanesh e acredito que minha família e meus empregados estarão mais seguros em sua cidade.
— O senhor ordenou que todos seus empregados viessem? — indagou Kerdon.
— Não fiz isto, mas muitos vieram. Entre família, empregados da casa e da manufatura estão vindo cerca de cinquenta pessoas.
— Porque sua família não está aqui? — Arifa estava curiosa.
— Meu filho, Ardas, conduz o carro da vanguarda. Alguns sobrinhos trabalham na escolta, com a cavaleiro de WaterBridge.
— E sua esposa?
Yurkan olhou para baixo — Há muitos anos a perdi.
— Ah! Desculpe...
— A senhorita não tinha como saber.
Arifa ficou quieta, observando os detalhes internos da carruagem. Era muito luxuosa, com assentos aveludados, belas cortinas e até mesmo o teto tinha um forro de tecido com padrões geométricos.
A irmã de Kerdon escutava a conversa com atenção. Com o silêncio de Arifa, Yurkan voltou sua atenção para Keira, irmã de Kerdon. Se engajaram numa longa conversa.
Kerdon olhava pela janela, enjoado com o tom meloso que sua irmã falava com Yurkan.
O comerciante tinha cabelos grisalhos, era magro e ainda mantinha um rosto jovial. Estava muito sorridente, apesar da tragédia que havia caído sobre Lirr, ainda há poucos dias. Vestia-se de uma maneira sóbria para os padrões de Homenase, mas a gola simples e redonda e laranja da túnica ainda era colorida demais para o gosto de Arifa.
— Realmente a sorte é minha — disse ele — de ter a mais bela jovem de Lirr me fazendo companhia.
Keira corou e soltou umas risadinhas.
Arifa cochichou com Kerdon, que estava sentada ao lado dela — Esses dois vão acabar se casando.
Kerdon fez uma careta — esse velho mulherengo só está tentando se aproveitar de minha irmã.
— Ele não me parece tão velho assim. Para falar a verdade, o senhor está mais derrubado do que ele, professor.
— Não me vem com essa de senhor, Arifa, ou então vou te chamar de miladi. Sinceramente ainda não sei onde o diretor estava com a cabeça quando me chamou para ser professor na academia.
— Ei, o que vocês dois estão cochichando aí? — indagou Keira não gostando do jeito que era observada.
Kerdon hesitou para responder — é... nós...
Arifa veio salvá-lo — Eu só estava dizendo ao seu irmão que o senhor Yurkan foi muito gentil em nos oferecer lugares em sua carruagem.
— A senhora não merece menos, miladi. — retrucou Yurkan sorridente e simpático. — Será que me concederia a honra ser apresentado ao senhor seu pai?
— Claro — Arifa retornou.
Keira ficou encarando Kerdon com um olhar reprovador. Ela sabia bem que ele não andava falando boa coisa.
Kerdon esticou o pescoço para fora novamente, viu ao longe uma das pequenas estalagens com torre de madeira que circundavam Kamanesh. — Estamos quase chegando.
— Que ótimo! — retrucou Yurkan sorrindo. Falava lacorês muito bem — essa foi uma viagem bem cansativa, não acham?
Arifa concordou por educação, mas a viagem de volta estava sendo bem mais tranquila que a ida. Salvo alguns solavancos que a carruagem dava aqui e ali, era muito melhor viajar assim que no lombo de um cavalo.
— É culpa sua, professor. Quem mandou convencer sua irmã e mãe a vir para cá?
— Nem me fale. E aquele imbecil do meu irmão ainda fez a maior cena.
— Eu realmente pensei que vocês iam para as vias de fato.
Kerdon torcia a boca se recordando das palavras duras de seu irmão. Arifa, distraiu-se, embarcando na percepção daqueles pensamentos.
— Se você for com ele, mana, saiba que vai passar dificuldades. Tivemos grande perdas e vai ficar sem ver o dinheiro dos negócios da família. — dissera o Keran.
— Deixe de ser cabeça dura, mano. — ela returacara — em Kamanesh estaremos mais seguros. O que vale mais, dinheiro ou nossas vidas?
Keran argumentara — O concelho não sabia que os demônios podiam abrir portais, mas conversei pessoalmente com Lorde Kirlan, ele disse que estão já estão preprarando uma defesa contra os portais. Estaremos seguros aqui!
Kerdon intrometera-se — Olha Keran, tudo bem. Você fica com o dinheiro e eu com a família, para mim, é uma boa troca.
Keran ficou com as orelhas vermelhas — Você já era um idiota antes de ir para Lacoresh. E agora, dá para ver que além de idiota se tornou um porco manipulador, como todos eles!
— Parem de brigar, vocês dois! Ainda parecem crianças! — irritara-se Keira. — Kamanesh vai ser mais seguro para cuidar da mamãe, e quando as coisas se acalmarem, voltaremos para visitar.
Kerdon cruzara os braços, discordando. — Eu não...
— Eu quis dizer eu e a mamãe, Kerdon. Se você não quiser vir, é problema seu!
Kerdon ficara calado, chateado com aquilo tudo. O irmão é que era um idiota, é claro. Mas ela não conseguia enxergar.
Keira então se despedira do irmão com beijos e abraços, mas Kerdon partira magoado e sem se despedir do irmão.
Relembrando a discussão, Kerdon fixava o olhar na paisagem com a cara fechada enquanto alisava os cabelos da mãe deitada em seu colo.
— Que cara é essa, mano? — Keira tirou-o de seus pensamentos.
Arifa se assustou. Só então percebeu que sua mente estivera ligada a de Kerdon enquanto ele rememorava fatos recentes.
— Ah, nada — mentiu ele — só estava pensando que logo mais terei de voltar a dar aulas... É um saco!
— Você é muito ranzinza, sabia irmão?
— Você dá aula de que? — indagou Yurkan curioso.
— Luta... luta com ah... — Kerdon não sabia bem como explicar.
Arifa o fez em seu lugar — Kishar, uma arte marcial antiga dos silfos. Faz parte do treinamento dos cavaleiros de Kamanesh.
O senhor ergueu as sobrancelhas — Ah sim! Já ouvi falar. É assim que vocês conseguem enfrentar fantasmas e zumbis, não é mesmo?
— Isso.
— Já não tenho idade para aprender algo assim, mas pode ser interessante para o meu sobrinho. Digam-me, Kerdon, como um homenaseano pode ser aceito na academia?
— Da mesma maneira que os lacoreses, deve fazer uns testes e, principalmente, pagar os custos de manutenção da escola.
— Que ótimo, vou providenciar para que ele se instrua então. Pelo que vimos, a situação não vai ficar nada melhor daqui para adiante.
— Nisso o senhor está certo — concordou Kerdon.
***
Antes do fim daquele dia chegaram e Kamanesh, mas as notícias do ataque a Lirr chegaram antes. Todos pareciam alvoroçados e haviam mais soldados patrulhando as ruas e os arredores da cidade que o normal.
Kerdon alugou um quarto para a irmã e a mãe na estalagem onde morava. Enquanto isso, Arifa foi relatar tudo o que viveu a seu pai, ao menos a parte relativa à viagem e a invasão de demônios. O mesmo foram fazer Josselyn e Rencock para o conselho de mestres da academia.
O senhor Yurkan também foi ao palácio com Arifa e deixou com o duque uma carta confiada a ele pelo conselho de Lirr. Yurkan cobriu a atuação de Arifa de elogios, expressou também que Lirr estava mais uma vez em débito em relação a Kamanesh. O duque recomendou a Yurkan que fosse ver o velho Lorcas no sentido de buscar um imóvel em Kamanesh para constituir sua residência.
Depois que Yurkan deixou-os, o duque disse para a filha.
— Ele é muito simpático, não acha?
Arifa encolheu os ombros — até um pouco demais, pai.
— Como assim?
— Ah! Deixe estar. Na verdade, estou exausta.
— Vá descansar, minha filha. Amanhã conversamos mais sobre a viagem durante o desjejum.
— Certo, eu... — ela foi interrompida por um inesperado e apertado abraço do pai.
— Estou muito feliz que voltou a salvo, filha!
Ela se aninhou nos braços do pai — eu também, pai. Essa invasão foi... foi... Aqueles demônios... Eram horríveis, simplesmente horríveis!
Então, o duque Galdrik, que também era sensitivo, estremeceu ao ver a imagem dos demônios em sua mente. Mas não foi a única coisa que viu. Por um instante, viu a imagem de Josselyn nua numa banheira. E viu também como quando ela e sua filha se aproximaram. O pai empurrou a filha bruscamente.
— Que foi pai?!
Ele a olhou, como os olhos arregalados.
— Que foi?
Galdrik engoliu seco e olhou para baixo, envergonhado. — Desculpe, filha. Eu me assustei. Estava distraído e... eu também vi... Vi os demônios. Klerggs e outras criaturas zimbronianas, não é mesmo?
Às vezes Arifa se esquecia que seu pai era um forte mentalista e tinha visões a partir do toque de objetos e até mesmo de pessoas.
Mas ele não conseguia se decidir sobre o que lhe causou mais espanto. Ver as cenas com aqueles demônios horrendos atacando e ferindo pessoas em Lirr, ou ver a filha se relacionando com um outra mulher. E então, ele começou a entender um pouco mais a filha. Entender o motivo da recusa do pedido de casamento por parte do Rei Edwain.
— Filha — ele colocou a mão no ombro dela. — Eu quero que saiba... Você é tudo para mim. Se quiser conversar comigo, qualquer coisa. Eu vou sempre apoiá-la... Sabe disso, não sabe?
Arifa sorriu para o pai, feliz. Ele era mesmo um pai maravilhoso, mas ela não fazia ideia do que se passava na mente dele.
— Eu sei pai. Pode deixar.
Ele deu um beijo na testa dela e disse — Vá descansar, filha.
Arifa saiu da sala comunal íntima da ala real e seguiu para seu quarto. Era engraçado pensar que o quarto dela era justamente onde Ed havia dormido por quase toda sua vida. Ainda havia, aqui e ali, algo que a fazia pensar nele. Uma criada a ajudou a trocar de roupas. Conversaram um pouco sobre como as coisas estavam no castelo.
— Esteve envolvida em lutas, senhora?
— Sim.
— Não entendo o senhor, meu duque...
— O quê?
— Como ele deixa que a própria filha saia por aí, arriscando a vida. Eu não deixaria que minhas filhas...
— Eu perguntei a sua opinião? — Arifa retrucou irritada.
— Desculpe, senhora, eu não pretendia.
— Vá! Eu termino sozinha...
A criada saiu se curvando e pedindo desculpas, muitas vezes antes de fechar a porta.
Arifa apagou a chama dos archotes na parede e deitou-se na cama, olhando para o brasão na parede, pouco iluminado pelas velas sobre a mesa de cabeceira. Aquele brasão fazia que pensasse em Edwain. Assim que pensou nele, ouviu sua voz em sua mente.
"Arifa?"
Ela deu um salto.
"Arifa, pode me ouvir? Sou eu, Ed."
"Ed, você está aqui em Kamanesh? Está no castelo?"
"Não, estou em Lacoresh."
"Em Lacoresh, não brinque comigo. Isso é impossível!"
"Não, na verdade, estou usando o Dragão Negro."
"Dragão Negro?"
"Sim, eu pretendia lhe contar a respeito um dia, mas faltou oportunidade. É um artefato de Tisamir que recebi do Príncipe Kain. Ele é um amplificador do jii."
"Pelos deuses, Ed! Que poder..."
"Eu fiquei sabendo de sua viagem para Lirr..."
"Foi horrível, Ed. Aqueles demônios..."
"Sim, soube que a cidade quase foi perdida. Você descobriu algo sobre Kain?"
"Você sabia Kain tinha um filho com a Rainha Hana? O Barão Calisto?"
"Ouvi um boato, mas não dei crédito".
"Ah! Mas acredito que seja verdade. Suponho que Kain foi tentar encontrar o filho... Para matá-lo."
"Que estranho, eu não consigo pensar em Kain como alguém que mataria o próprio filho."
"É... Algo muito terrível mesmo. Fora isso, não descobri muita coisa, Ed. Apenas sei que ele pode ter ido até Tisamir. Mas todos acreditam que ele morreu."
"Não, eu sei que não. Estive procurando por ele. Eu sei que ele está vivo, mas algo está bloqueando o Dragão, alguma coisa poderosa."
"O que seria?"
"Eu não sei... Será que você vai conseguir ir até Tisamir para investigar?"
"Acho difícil, Ed. Muito difícil. Mas se surgir uma oportunidade farei isto."
"Obrigado... É difícil não ter muitas pessoas com quem eu possa contar." os pensamentos de Edwain vieram carregados de pesar.
"Como você está?"
"Vou levando... É muito difícil governar. Mesmo podendo sondar a mente com o Dragão Negro, o que facilita as coisas, é difícil conciliar interesses. Tem horas que me dá vontade de assumir o controle, sabe. Usar o poder do Dragão para controlar a mente deles todos, e assim todos colaborariam para proteger Lacoresh."
"Não, Ed. Isso não está certo."
"Eu sei, eu sei... Não é o que meu avô me ensinou... Mas..."
"Você vai conseguir, Ed. Nós vamos conseguir proteger Lacoresh... Temos que ter fé nisso."
"Claro... Olha, conversar assim, de tão longe... É muito cansativo. Continue investigando. Se eu descobrir algo eu volto a fazer contato."
"Certo, Ed. Boa noite!"
"Boa noite, Arifa".
Ficou pensando um longo tempo naquela conversa. Ela soprou as velas, fazendo o quarto mergulhar no breu. A escuridão a fez pensar em Josselyn. Como ela havia fechado os olhos e se entregado aos seus toques.
Ah! Se pudéssemos morar em Homenase! Lá, a relação entre mulheres, ou entre homens é comum. Já aqui, não se tolera! É algo que deve ser escondido e apenas ocorrer entre quatro paredes.
Pensando naquilo e na falta que sentia da companhia de Josselyn, Arifa adormeceu.
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