18 - A casa de Kalbin
A família de Gálius estava reunida para um jantar especial em homenagem a Orozimo. Gálius não compareceu e deixou um bilhete para a mãe, para que não ficassem preocupados. O Rei-Deus havia proclamado feriado e ele foi convidado por Kalbin para uma reunião no gueto.
A festa ocorria na única pracinha do bairro, numa clareira no alto, perto dos rochedos. Não era uma reunião grande, no entanto. Havia em torno de cinquenta silfos reunidos. A música e a alegria eram suficientes entre os silfos para que Gálius se esquecesse um pouco de sua obsessão por Lerifan. Ele estava bebendo fovasco com suco de marunin. O fovasco era uma aguardente forte produzida pelos silfos. Uma caneca cheia podia deixar uma pessoa sem condições de andar. Ele era o único humano entre eles, e isso não incomodava os moradores do gueto. Ele cantava e dançava como se fosse um deles. Já Maduja, Lomuz e alguns outros silfos que moravam perto do palácio do Rei-Deus, pareciam incomodados com a presença dele.
Gálius nem se deu conta dos olhares enviesados contra ele. Estava se divertindo.
Yté, uma das silfas com quem brincava quando era criança apareceu por lá. Ela havia deixado o gueto há cerca de quatro anos para ir servir no palácio. Era a primeira vez que Gálius a via desde então. Agora ela havia se tornado uma silfa esguia com um rosto triangular e bonito. Ela era muito jovem ainda para os padrões dos silfos, mas um pouco mais velha que Gálius. Eles conversaram um pouco sobre os velhos tempos.
— Ai, eu tenho saudades daqueles tempos — ela disse com alegria, jogando os longos cabelos negros de lado — eu era tão livre!
— Você era a mais rápida da turma — Gálius a lembrou. — Você era a única que eu não conseguia pegar...
Ela riu daquilo. — É mesmo. Você até que era rápido para um humano...
Yté puxou-o para o meio da pracinha onde outros silfos dançavam. Gálius se viu dançando com o corpo colado em Yté. Ele estava um pouco desconcertado com o olhar penetrante dela que não se afastava de seus olhos. Toda aquela proximidade inesperada o deixou excitado e o fez esquecer de vez a morte de Yoltesh e as maldades de Lerifan. Eles estavam prestes a se beijar quando uma mão forte se fechou sobre seu ombro e o puxou.
— Desgruda da minha prima, humano! — vociferou Maduja, um silfo careca. Ele era uma cabeça mais alta que Gálius e os braços musculosos eram mais grossos que as coxas do rapaz. Gálius ficou sem reação, olhando para cima enquanto o olhar de Maduja parecia querer derretê-lo.
— Deixa ele, Má! — ela tentou protegê-lo, mas foi empurrada de lado por Maduja, que avançou para cima de Gálius.
Kalbin correu para acudir o amigo e colocou-se entre os dois — Calma aí, Maduja! O Muni é dos nossos.
O silfo forte e bonito deu um sorriso amarelo. A confusão fez com que os músicos parassem de tocar e todos olhavam para eles, na expectativa. Kalbin sinalizou para os músicos e eles voltaram a tocar.
— Vocês dois, vem comigo! — ordenou Kalbin apontando para Gálius e Maduja. Gálius não entendia bem qual era a função ou papel de Kalbin entre os silfos, mas percebia, cada vez mais que ele tinha ascendência sobre muitos deles. Então, Gálius e Maduja seguiram Kalbin descendo os degraus desgastados da pracinha para entrar nos becos apertados do gueto.
Lomuz e uns três silfos que Gáluis não conhecia seguiram também. Kalbin os convidou para entrar em sua casa. Gálius sabia onde ele morava, mas nunca entrou lá.
Atrás da porta estreita, havia uma sala grande com umas dez banquetas dispostas em círculo em torno de uma cova de cinzas.
— Sentem-se — ofereceu Kalbin enquanto pegou dois feixes de madeira empilhados num canto da sala e os colocou no centro. O silfo estalou os dedos e uma chama azul surgiu sob a madeira. Em poucos instantes o fogo ficou normal enquanto se espalhou pela madeira.
Gálius olhou para Kalbin surpreso.
Kalbin sabe fazer magia? Como nunca percebi isso antes?
Kalbin pegou uma garrafa de cima de um pequeno armário e distribuiu pequenos copos de cerâmica pintados de branco lustroso. Era mais fovasco. Os cinco silfos se sentaram de um lado do círculo e Kalbin e Gálius do outro.
Lomuz, que era muito parecido com Maduja, mas tinhas meia cabeleira loira trançada caindo sobre as costas, afirmou — Você é um dos filhos dos estrangeiros dos bambus. Recebeu o apelido de pensador.
— Sim... — retrucou Gálius reconhecendo o uso da palavra munenidiir não como nome, mas como seu significado.
— Então, pensador — Maduja deu um risinho sarcástico — nos ilumine com um de seus pensamentos.
— É! — outro concordou gargalhando — Qual é o pensamento do dia?
Gálius coçou a ferida recente nos braços e olhou para cima.
O que posso falar com esse silfo antipático?
Viu que a fumaça do fogo subia por uma chaminé grossa e redonda bem no meio da sala. Dava para ver uma faixa de estrelas logo abaixo do telhado da chaminé, dali de onde estava.
— O Rei-Deus não é imortal.
— Quê? — Lomuz parecia indignado. — Mas é claro que é!
— Não é... Não prestou atenção no que ele disse hoje a tarde?
Lomuz franziu as sobrancelhas loiras e ficou em silêncio, com os demais silfos.
— Ele disse que Orozimo irá receber a todos no salão da eternidade.
— Ele não disse todos nós — observou Lomuz.
— Mas enfatizou, todos. — retrucou Gálius.
— Você nunca foi à pregação nos templos? — indagou Gálius — Não sabe que Tleos não durará para sempre? Nossa cidade vai deixar de existir, um dia, e com ela, o Rei-Deus.
— Besteira! — Maduja cuspiu no fogo para reforçar seu desprezo por Gálius. E os amigos dele concordaram dizendo coisas como "humano idiota" ou "pensador de uma figa" ao mesmo tempo.
Todos ficaram quietos quando Kalbin falou — Não trouxe vocês aqui para discutir a imortalidade do Rei-Deus. Eu os trouxe para que o Muni possa contar a vocês a respeito da morte do Yol e sobre o vonu Lerifan.
Lerifan!
Gálius se lembrou do amigo e toda sua raiva voltou num único instante.
Controle-se! Não posso parecer um chorão.
Apertando os punhos e se segurando para não gritar, fez seu relato de tudo que aconteceu, e também de suas suspeitas em relação aos planos de Lerifan para o gueto.
Os silfos palacianos escutaram tudo com atenção, deixando a atitude anterior de lado.
— Se o Rei-Deus é mortal, eu duvido... — disse Lomuz após ouvir a história de Gálius — Mas que Lerifan é um problema, tenho certeza.
— Então, vão me ajudar a matá-lo? — indagou Gálius esperançoso.
— Poderíamos ajudá-lo a fazer isso — retornou Lomuz — mas sua família sofreria terríveis consequências, assim como as nossas.
— Então, vamos deixar que ele continue impune? Ele vai concorrer ao cargo de oxivonu... — Gálius ia dizendo, quase em desespero.
— Você entendeu errado, menino — retornou Lomuz — nós não podemos matar Lerifan. Mas não quer dizer que alguém na cidade não o possa fazê-lo.
— Mas quem?
— Lerifan não é o único templário ou nobre da cidade com desvios graves de conduta. Pode parecer que o Rei-Deus não perceba nada disso, mas não é nisso que acredito.
— Não estou entendendo.
Maduja deu uma risada — é porque você ainda não pensou no assunto direito, não é, pensador?
Os silfos deram uma tímida risadinha da piada.
— Muni é esperto o suficiente — defendeu-o Kalbin — a questão é que ele não ainda conhece o funcionamento da cidade.
— É, concordou Lomuz — pelo que sei, ele conseguiu despertar a ira de Lerifan. Há muito tempo os inimigos dele estavam esperando que ele mostrasse suas garras, que ele perdesse o controle. Essa façanha é um mérito seu. — disse a Gálius — Os silfos estão abaixo demais para conseguir fazê-lo sair de si, mas um filho de zenos conseguiu isso.
— Agora, Lomuz — Kalbin disse num tom grave — quem devemos escolher para ser o próximo Oxivonu, Maltar ou Beguino?
Gálius arregalou os olhos.
Como assim? Sempre pensei que os silfos fossem a casta mais inferior da cidade. Mas o que Kalbin estava dizendo? Que eram eles que escolhiam quem ia ser o oxivonu? Se eles podiam decidir isso, até onde mais iria sua influência?
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