17 - Jantar sangrento
O solar dos Tassip estremeceu, pratos e taças caíram no chão. Os criados e familiares de Kerdon gritaram assustados. Aquilo bem poderia ser um terremoto, mas não, era algo pior. Arifa segurou com força no braço de Josselyn. Ambas sentiram algo gelado subindo pelas pernas até a nuca.
— Onde estão nossas coisas, Felipo? — Kerdon gritou do outro lado do salão.
— Por aqui, senhor... — o velho criado tremia.
— Keran — Kerdon apontou para a espada do irmão — fique aqui e proteja-as, vou buscar nossas armas.
— Vou com você — disse Rencock e então resmungou — sob um ataque de demônios, desarmados e vestidos como palhaços! Por Deus!
Keran desembainhou a espada, mas tremia, era mais um ornamento que uma arma propriamente dita em suas mãos.
— Tem algo vindo — Josselyn cochichou para Arifa — concentre-se, teremos que contar com apenas com o jii.
Arifa cerrou os punhos e controlou a respiração e, em instantes, afastou aquela sensação gelada. O calor da ativação do jii emanou de seu tórax fluiu até os braços deixando todos os pelos arrepiados.
Uma criatura escura e veloz passou pela porta. A irmã de Kerdon deu um grito agudo de horror. Havia três pares de pernas compridas, finas e articuladas, como as de um caranguejo. A carapaça do corpo em formato ovalado era formado por placas vermelho-escuras com espinhos roxos e se encaixava em camadas. O rosto achatado e largo lembrava vagamente o de uma pessoa com olhar maligno e tinha uma boca desproporcional, que se abria de ouvido a ouvido com dentes pontiagudos e cobertos de tártaro. O tamanho era comparável ao de uma raposa.
Um segundo entrou, as patas velozes clicando forte contra o piso liso como se fosse uma percussão acelerada.
— São klerggs — Arifa os reconheceu lembrando-se das ilustrações do tomo dos mil demônios. Eram soldados inferiores da horda zimbroniana. — A casca é dura, mas são moles por dentro. Martelos ou maças d'armas são indicadas, mas na falta disso...
Ela correu para a mesa e ergueu uma cadeira sobre a cabeça.
Um deles correu e saltou sobre Keran que foi derrubado no chão, mas consegui evitar ser mordido fazendo a criatura morder a lâmina de sua espada. A criatura soltou sons horríveis e babou em cima do peito de Keran. O hálito horrendo fez a comida subir de volta em sua garganta, mas ele engoliu, apavorado.
Arifa avançou contra o segundo monstro e esmagou-o com uma forte pancada da cadeira que se quebrou no processo. Uma gosma esverdeada e fedorenta espalhou-se em jatos por entre os pontos de junção moles das placas da criatura.
Josselyn chutou o klergg que estava sobre Keran fazendo-o voar por cima da mesa de jantar. Tighas pegou um candelabro pesado e bateu com força no abdômen exposto da criatura. Um pouco de suas entranhas verdes escorreu pelos lados, mas o bicho ainda resistia. Tighas seguiu golpeando com uma expressão de nojo no rosto.
Mais daquelas coisas vinham e a mãe de Kerdon e outro criado também tomavam cadeiras para se defender. Josselyn correu para fechar a porta, mas não conseguiu impedir que mais dois klergs entrassem ali. Um deles era maior, tinha uma tonalidade azul profunda, espinhos longos e um rosto mais humano, com um nariz enorme e verruguento.
Ele saltou sobre o criado antes que ele pudesse golpear com a cadeira. A bocarra se fechou contra o rosto do rapaz e arrancou pele, músculos e um grito agonizante.
Arifa avançou contra o klergg menor e esmagou-o usando uma segunda cadeira. Sua roupa já estava imunda, com entranhas esverdeadas escorrendo, mas desta vez, um jato da gosma fria veio contra seu rosto. Ela se virou e conseguiu fechar os olhos antes de ser atingida. Aquela coisa fedida grudou em seu cabelo fazendo-o pesar. Havia tripas nojentas que rolaram para baixo empapando o chão e tornando-o escorregadio.
Enquanto o criado era devorado pelo klergg grande como um lobo, Josselyn correu para perto da mesa pesadíssima e gritou — me ajudem aqui.
Tighas, Cléria e Keira vieram ajudá-la a erguer a mesa, o restante de comida, pratos e talheres escorreu caindo no chão produzindo uma barulheira infernal. Arifa, do outro lado, mal conseguia sair do lugar, tentando limpar o rosto das entranhas viscosas. Com esforço viraram a mesa tentando atingir o klergg, mas no último instante ele percebeu o ataque e saltou grudando-se no teto como uma aranha. A mesa esmagou o que restava do criado, pondo fim de vez a seu sofrimento.
O klergg preso ao teto tinha sangue abundante escorrendo pela boca fina e longa. Sorria de modo sinistro, exibindo longas fileiras de dentes pontiagudos. Ele saltou sobre Arifa. Ela tentou pular, mas escorregou no chão gosmento e ao cair, escapou de ser abocanhada por um triz.
O klergg virou-se rapidamente, mas antes que afundasse os dentes na carne tenra da moça, teve a sola de uma das botas de Josselyn se afundando no meio da face. O nariz verruguento e grande afundou e a demônio encolheu-se atordoado para dentro da carapaça.
Arifa se arrastou para longe do demônio e Josselyn caiu de mau jeito diante dele. Com muco verde escorrendo pelas narinas e os olhos vermelhos faiscando de raiva, o monstro avançou contra Josselyn. O chão coberto de entranhas escorregadias impediu Josselyn de se por de pé, no lugar disso, as penas e braços fizeram movimentos rápidos e desajeitados quase sem conseguir sair do lugar.
Uma cadeira atirada por Tighas atingiu o monstro em cheio, dando um pouco mais de tempo para Josselyn escapar. Cléria, pisando numa parte seca do piso, puxou a guerreira para fora da poça de tripas verdes.
O klergg avançou contra Keira que conseguiu se defender, colocando duas pernas de cadeira na boca do demônio. Keran, recuperado do susto inicial avançou bateu com força a espada na carapaça da criatura. Era mais robusta e mais veloz que as demais. A lâmina desviou sem causar dano e caiu de sua mão, pois o choque do impacto fez a mão dele doer.
— Vou comer todos vocês! — disse com uma voz gorgolejante, parecendo uma tuba estragada sendo soprada sob a água.
Keran fugiu para o canto do salão, mas Arifa avançou para onde ele estava, vendo na espada derrubada uma esperança de vencerem a criatura. Tighas correu para cima do klergg usando uma cadeira como escudo e empurrando-o para trás. Arifa conseguiu pegar a espada de Keran e avançou com um golpe certeiro que perfurou o olho esquerdo. A espada deslizou para dentro da criatura com facilidade enterrando-se até o punho. O klergg estremeceu e suas pernas se abriram quando foi ao chão, morto.
— Pelos deuses... — choramingou Keira — Martin está morto!
O corpo do criado jazia esmagado sob o tampo da pesada mesa de madeira. A sala, imunda, cheia de corpos de demônios, mas aquilo não era o fim. O chão voltou a estremecer e se inclinou, fazendo com que todos ali caíssem. Paredes se romperam, a madeira e pedras produziram um som terrível.
Quando a casa parou de se mover ouviram os gritos de diversas vozes que vinham lá de fora. "Demônios! Socorro! Cuidado!"
A sala de jantar tinha o piso inclinado, e todos procuravam se levantar. Velas e archotes derramaram suas chamas aqui e ali e vários focos de incêndio começavam a dar sinal. O piso do salão estava inclinado cerca de quinze graus as paredes lascadas davam visão, aqui e ali para cômodos adjacentes.
Sons de batidas fortes vieram do corredor, na direção em que o solo havia afundado. Eram acompanhadas por um ruído horrível que se repetia. Uma voz inumana dizia algo incompreensível e que fez a alma de todos ali gelar. Arifa se colocou à frente dos demais, segurando a espada de Keran com firmeza.
A porta dupla veio abaixo num estrondo. Uma criatura corpulenta e gorda começou a se espremer para entrar no salão.
Era uma massa de carne disforme em que havia meia dúzia de bocas de tamanhos diferentes. Uma delas, na altura do que seria a barriga da criatura, era enorme e cheia de dentes afiados como pequenas facas. No centro da criatura, havia uma pequena cabeça humana careca, cheia de cicatrizes, a cor de pele doentia, os olhos caídos, cheios de pelancas, bochechas gordas caindo de lado e uma enorme papada que se juntava ao corpo roliço. Os braços do demônio eram muitos e assimétricos, um misto de tentáculos com espinhos, alguns terminando em pontas outros em mãos.
Arifa tremeu diante do demônio, sem conseguir pensar direito o que ele era. No entanto, viu que ele estava preso no marco da porta e viu oportunidade para atacar. Baixou a espada contra um de seus braços-tentáculos cortando a ponta fora. O monstro guinchou e revidou com seu braço mais forte que se desenrolou e atingiu-a no peito, como um chicote, lançando-a para trás.
— Arifa! — Josselyn gritou.
A moça rolou duas vezes antes de parar inconsciente. A espada caiu girando no meio do salão. Josselyn se apressou para pegar a arma. Keira e Cléria gritavam, desesperadas e Keran urinou-se, paralisado ao ver tal monstruosidade.
— Temos que fugir! — Tighas foi até a porta que estava mais perto dele, mas não conseguiu abrir. Estava emperrada. Era a porta por onde Kerdon, Rencock e Felipo saíram para buscar os equipamentos dos lacoreses.
Keira correu para o outro lado do salão e conseguiu chegar até a porta.
— Abriu! Venham! — ela gritou desesperada.
Cléria notou que Keran estava paralisado e o sacudiu para que fugisse também.
— Filho! Vamos! Anda! Anda logo! — dizia enquanto o empurrava para a saída.
O som de madeira rangendo e se partindo cresceu e terminou num grande croque. O demônio finalmente conseguiu atravessar o marco da porta, destruindo-o em parte.
— Vou comer todos vocês! Rwa wa wa! — dois de seus tentáculos se esticaram na direção de Keran e Cléria. Um deles se enroscou na perna da mãe de Kerdon e o outro no braço do irmão. Eram músculos fortes e os espinhos penetraram na carne deles fazendo com que gritassem.
— Mãe! — gritou Keira impotente.
Ao mesmo tempo, uma forte batida veio na porta que Tighas tentava abrir. Ele ouviu a voz de Rencock dizendo.
— Vamos juntos, com tudo!
A porta rachou e se abriu violentamente. Tighas conseguiu sair da frente a tempo. Rencock que levava as armas amarradas num molho caiu no chão, no salão inclinado, mas Kerdon conseguiu se equilibrar.
Josselyn avançou com a espada contra um dos tentáculos e o partiu. Keran caiu para trás, enquanto Cléria foi puxada com força na direção do demônio. Ela tentava se segurar em algo, arfando e tomada pelo terror.
— Mãe! — Kerdon correu para o demônio com sua espada em riste.
A bocarra da barriga se abriu enquanto o tenáculo erguia Cléria pela perna como se fosse um petisco. Uma boca na ponta de um tenáculo avançou mordendo o ombro dela. Kerdon avançou contra o tentáculo cortando-o a tempo. A mãe caiu no chão desengonçada e com a perna esmagada e ensanguentada. Um naco de carne foi arrancado do ombro levando junto parte do vestido.
O braço forte do demônio acertou um soco violento na face esquerda de Kerdon atirando-o no chão. Ele caiu sentado e cuspiu um grande lasca de dente com uma massa de sangue.
Cléria reuniu forças para fugir, mas mal conseguia se arrastar para longe. Enquanto isso, ele ria e falava usando sua boca humana.
— Comeremos todos vocês humanos em nome de Lorde Grevos! Sugaremos suas almas! Ah, sim! Rwa wa wa.
Enquanto isso, Rencock se punha de pé e Tighas foi até o local onde Arifa estava caída e desacordada.
Keira voltava para acudir a mãe, mas foi interceptada por Keran.
— Vem! Temos que fugir! — ele a segurou e arrastou em direção à saída. O fogo ia se alastrando daquele lado e uma fumaça densa já os fazia tossir.
Kerdon ficou observando, zonzo tudo aquilo como se acontecesse muito devagar.
Sua mãe, chorando, se arrastando em frangalhos, quase sem forças e deixando atrás de si um rastro de sangue.
O irmão, arrastando a irmã para fora do salão.
O demônio avançando para cima dele, aquele monte de bocas se abrindo e se fechando.
Sentiu que morreria e chamou pelos deuses com lágrimas nos olhos. Foi quando Josselyn e Rencock passaram por ele, ambos acendendo as espadas com uma invocação em uníssono.
— Icti flamare!
Os dois deram combate ao demônio cortando fundo na carne gorda. O demônio gritou de dor, chamando por ajuda. Kerdon conseguiu se arrastar para trás e foi de encontro a mãe. A fumaça já tomava conta do salão. Tossindo muito, ajudou a mãe a se arrastar em direção à saída. Viu que Tighas apoiava Arifa nos ombros que mancava para também sair dali.
Josselyn e Rencock conseguiram manter o demônio ocupado por pouco tempo e recuaram também, quando um bando de klergs avançou entrando no salão.
— Malditos lacoreses! Logo avançaremos sobre suas cidades! — disse o demônio que recebera muitos ferimentos, mas ainda estava longe de ser derrotado.
Rencock partiu um klerg em dois com sua espada flamejante, mas outro saltou sobre seu braço mordendo-o. Josselyn empalou a criatura que caiu no chão agonizando.
Com muita dificuldade, conseguiram chegar à saída lateral da mansão da família. Ali fora, banhados pela luz azul da torre, se viram salvos do avanço dos demônios. Muitas outras pessoas estavam no meio da rua, apavoradas e gritando.
Porém, podiam ver locais de sombra, apinhados de demônios. Em um deles, havia um disco que faiscava uma tênue luminosidade púrpura. Era um portal e dele se derramavam klergs, pigxorns e outras criaturas disformes que não sabiam nomear. Eram as hordas zimbronianas. Alguns demônios se arriscavam na luz na direção das pessoas, mas gemiam e tinham a pele queimada, recuando de volta às sombras. Se a luz da torre se apagasse, seria o fim de Lirr.
— Olhem! — apontou Tighas para um raio de luz amarela que vinha voando na direção do portal.
— O que é aquilo? — indagou Rencock, ofegando e com a voz rouca.
O raio de luz envolvia uma silhueta escura de uma pessoa. Era um homem magro e careca numa capa esvoaçante. Em uma de suas mãos, um longo cajado com um cristal amarelo e brilhante.
— É um mago... — constatou Kerdon, segurando a mãe inconsciente em seu colo.
O mago apontou seu cajado para o disco cintilante lançando nele um feixe de energia amarela. Em instantes, o disco se fechou interrompendo o fluxo de demônios que atravessavam. O mago voltou-se para os estrangeiros e os examinou por alguns instantes.
— Lacoreses! — chamou-os com sua a voz potente. Seus olhos brilhavam na noite embevecidos de energia mágica. — Lutem!
Então, Rencok e Josselyn sentiram-se compelidos a lutar ao lado do mago. Ele os liderou para dentro das sombras do quarteirão onde havia uma centena de demônios. As espadas de Rencock e Josselyn voltaram a flamejar e tiveram sua potência aumentadas por um toque do cajado do mago homenasiano. Eles avançaram sobre os demônios tendo as retaguardas cobertas pelo mago que disparava jatos de chama consecutivos sobre as criaturas.
Enquanto isso, Arifa e Tighas ajudavam com os ferimentos da mãe de Kerdon. Arifa rasgou parte de seu vestido para fazer uma bandagem e pressioná-la contra o ombro de Cléria que ainda sangrava muito. A mulher estava pálida e os lábios cianóticos.
Kerdon e Keira choravam ao ver a mãe em tais condições. Atrás deles, a mansão da família fora engolfada pelas chamas. Vários focos de incêndio ocorriam por toda a cidade. Aquele ataque parecia ainda mais terrível que as invasões de demônios que ocorreram em Kamanesh em anos passados.
Arifa percebeu que a vida de Cléria estava por um fio.
— Kerdon — ela pegou em sua mão — preciso que você relaxe e deixe eu usar sua energia vital. Estive aprendendo cura com Mestre Nermick, não sei se sou muito boa, mas vale a tentativa.
O professor concordou com um aceno. Logo em seguida, ela começou a fazer uma transfusão de energia de Kerdon para Cléria. Ele trincou os dentes e conteve um grito, todos seus músculos ficando tensos e cheios de dor. A magia praticada por Arifa beirava a necromancia, mas conseguiu evitar a morte da mulher.
Ao menos, por algum tempo...
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