11 - Dia de folga

Como eu detesto esses dias de folga! Deveriam estar todos treinando ou melhorando as defesas da cidade!

Certas tradições, como dias de folga, não faziam muito sentido para Arifa. Afinal, ela cresceu sob a terrível noção de que o mundo acabaria a qualquer momento e que era preciso lutar, treinar, se preparar para evitar isso a todo custo. Os lacoreses se agarravam à vida que tinham, mesmo que ela muitas vezes fosse cheia de temores e sofrimentos.

Não obstante, era de fato o nono dia, o dia de folga. Em dias assim, era a tradição da família de Arifa reunir-se para almoçar juntos. Antes da coroação de Edwain, isso tudo ocorria no salão da residência dos Desbrin, no bairro das espadas, mas agora, ocorria num lugar seis vezes maior: o grande salão do castelo de Kamanesh. Não era propriamente um almoço intimista, havia convidados de modo que a grande mesa para vinte pessoas estava quase cheia.

Só mais um pouco disso e vou poder ir para o pátio treinar...

Arifa conseguiu conversar um pouco com o pai, enquanto os criados serviam aperitivos, mas era quase impossível conversar com as tias Augustine e Hilda. Elas conversavam sobre frivolidades impossíveis, poderiam esta vivendo em qualquer uma das luas, menos em Lacoresh, um reino à beira do abismo.

Arifa já se via, pela próxima hora, afundada naquilo e tentava controlar sua irritação crescente quando um dos criados chegou anunciando um visitante. Augustine, magra e elegante não reconheceu a figura do rapaz que ficou parado, logo atrás da porta entreaberta.

Por Leivisa! Tinha me esquecido disto!

— É um mensageiro? — ela indagou erguendo as sobrancelhas.

— Não irmã, é aquele coleguinha da Arifa. — disse Hilde torcendo os lábios.

— Ah, aquele rapaz... — assentiu Augustine como se falasse de um inseto, ou coisa pior.

— Papai, esqueci de avisar, convidei o Tighas para almoçar conosco. — Na verdade, ele havia enchido a paciência dela a semana inteira, pedindo para ir almoçar lá. Ela relutou o quanto pode e sabia se arrependeria de ter cedido, mas agora, não tinha mais jeito.

O duque tinha seus próprios convidados, do outro lado da mesa, estava rodeado de conselheiros da cidade. Ele não deu muita atenção à chegada do rapaz e apenas indicou ao criado que o deixasse entrar com um gesto.

Tighas entrou, com um sorriso vacilante. Sua melhor roupa estava longe de ser algo que a alta nobreza vestia. Ele se esforçou, fazendo uma vênia para todos e sentou-se ao lado de Arifa. As tias de Arifa retribuíam sorrisos azedos e fuzilavam o rapaz com os olhos. Ele era praticamente um ex-mendigo, um trombadinha e uma ameaça para Arifa. Temiam, acima de tudo, que ela pudesse se envolver com ele atrapalhando o sonho dourado de ver a sobrinha casada com o rei. Para elas, um problema maior que hordas de demônios prestes a invadir as muralhas.

Tighas encolheu os ombros ao se sentar e cochichou para Arifa.

— Suas tias têm umas caras de enguia com dor de barriga.

Arifa reprimiu a gargalhada e ficou toda vermelha. O rapaz, sem muita cerimônia foi se servindo do que havia ali e acenou para um criado para lhe trazer uma bebida.

— Eu podia me ascustumá com isso — ele sorriu para Arifa e tocou a mão dela sobre a mesa.

Sua tia Hilde quase se engasgou e Arifa entendeu logo a brincadeira.

— Ora, ora! Cês num precisam me olhar com essas caras... É só uma brincadeira, né Arifa? — Tighas olhou com malícia para Arifa — Comé que alguém como eu ia ter uma chance contra o Ed, digo, contra o Rei Edwain? Conta para elas Arifa.

Arifa ficou branca. — Contar o quê?

— O que você estava falando outro dia...

— Tighas! — Arifa ralhou entredentes.

— Ora, que despois de se formar na academia, ano que vem, você decidiu finalmente aceitar o pedido de casam... ai-ai!

Todos na mesa pararam por um instante para olhar para Tighas que acabara de gritar após tomar um pisão no pé por baixo da mesa.

Se arrependimento matasse...

Tighas ergueu a mão e contendo uma lágrima pediu desculpas a todos. Todo aquele constrangimento foi logo deixado para trás, pois o primeiro criado foi perspicaz em mandar servir o almoço. Meia dúzia de criados serviu os convidados e colocando um fim àquela pantomima e início à comilança.

Ficaram em silêncio por algum tempo. Tighas prestava atenção na conversa do duque e dos conselheiros, do outro lado da mesa. Então, resolveu falar novamente.

— O cavaleiro Rencock vai viajar novamente, amanhã. A cavaleiro Josselyn e o professor Tassip vão junto.

— É mesmo? — Arifa encarou-o parando de comer.

— Eles estão indo para Lirr, em Homenase.

— Como você fica sabendo dessas coisas, Tighas?

Ele encolheu os ombros e encheu a boca com uma fatia suculenta do pernil, para evitar dar qualquer resposta.

— Shabe... — disse ainda mastigando — podhe sher'ma oporthunidadhi...

Arifa cutucou-o com o cotovelo — termine de mastigar!

— Foi mal. Pode ser uma oportunidade de ganharmos créditos.

— Quê?

— É. Trabalho de campo.

— Ah! o rosto de Arifa se iluminou — é até que seria legal, mas...

— Mas?

— Suponho que não será possível.

— Por que, não? É só pedir... Olha, seu eu fosse pedir qualquer coisa pra qualquer professor, corro o risco de ganhar uns tabefe. Mas cê é a queridinha da Mestra Ailynn... Aposto que ela diria sim.

Arifa parou para ponderar o que ele dizia. Realmente nunca havia ido a Homenase. Além disso, começou a gostar da ideia de viajar na companhia de Josselyn de Waterbridge. 

Ela era um modelo a se seguir, assim como a capitã. Alguém que ela admirava. Alguém com que podia aprender coisas.

— Sabe, Tighas, você é um estrume, mas às vezes até que tem boas ideias.

O rapaz abriu a boca para reclamar, mas desistiu no meio do caminho. Preferiu enchê-la com outra porção de pernil, afinal, não se comia tão bem assim no dia-a-dia.

***


Depois do almoço, a dupla saiu do castelo seguiu para atravessar a grande ponte sobre o rio. Kamanesh era uma cidade quase pacata nos dias de folga. Sem o ruído de ambulantes, sem o fuzuê do mercado na praça de meia-lua. Via-se crianças brincando aqui e ali com pedaços de paus nas mãos, brincando de cavaleiros e zumbis. Tighas olhou para as crianças brincando e se demorou um pouco ali, no final da ponte.

— O que foi? — Arifa perguntou, toda tensa, farejando ameaças. — Viu algo?

— Não foi nada... Só tava me lembrando de quando eu era gurizinho. Sinto falta de brincar assim na rua.

Arifa encolheu os ombros e torceu os lábios — Eu nem sei o que é isso. Meu pai não me deixava sair de casa, nada de brincar além do jardim.

— Sua infância deve ter sido chata, com aquelas tias suas.

— Nem me fale!

— Eu fui livre por um tempo... Mas isso não durou tanto quanto eu gostaria.

— Você não fala muito sobre sua vida antes da academia. Apenas sei que você morava em Lacoresh. Afinal, como você ingressou na academia?

— Eu fui recrutado pelos homens de Kain.

— Quê?

— É... o príncipe Kain, sabe?

— Como assim?

— Ele tinha homens por toda cidade que trabalhavam para ele. Muitas vezes esses homens precisavam de garotos espertos, como eu, para entregar mensagens, ficar sabendo das coisas, contar sobre o que estava acontecendo em cada canto.

— Você era um espião?

— Você faz isso soar estranho. Eu apenas estava ajudando o reino... Sabe, havia muita gente querendo tomar o poder em Lacoresh, o tempo todo. Gente que não aceitava a Rainha Hana e o Príncipe Kain. Ele precisava estar sempre informado, sempre um passo adiante. Eu não posso reclamar. Eu nem tinha família direito, acabei ganhando um lar, amigos e proteção. A vida não é fácil para os miseráveis, sabia miladi Desbrin?

— Não me vem com isso de miladi!

— Enfim, acho que o pessoal da guilda viu potencial ni mim e mandou eu aqui para Kamanesh para fazer os testes. Sinceramente, eu num acho que tenha ido tão bem nos testes assim... Não duvido que o príncipe não tenha mexido uns pauzinho pra eu ser aceito... Enfim, num posso reclamar de nada.

— E você ainda tem contato com a guilda?

— Ué? É claro... Só não sai contando isso por aí, tá? Eu só tô te falando por que cê é minha melhor amiga, tá?

Arifa olhou para ele, meio desconcertada.

Tighas, meu amigo? Eu sempre pensei nele como esse garoto que preciso tolerar.

— Espera aí! Você pediu para ir almoçar lá em casa para poder espionar para a sua guilda?

— Ei, nada disso! Foi só pela comida...

Arifa estreitou os olhos, lembrando-se de como ele ficara ligado na conversa de seu pai. — Sei... Melhor amiga...

— Ei! É verdade! Eu nem precisava ter contado nada disso pr'ocê, sabia?

— Está bem... Vamos... A casa da mestra Ailynn é por ali.

***

A casa de Ailynn pertencera a seu falecido tio, o antigo professor da academia, Will Crafith. Tighas bateu na porta e eles esperaram um pouco até que foi aberta por uma moça. Ela era uma jovem bonita de uns quinze ou dezesseis anos. Ficou olhando desconfiada para a dupla e finalmente disse.

— O que querem?

Tighas abriu a boca para falar, mas não disse nada.

— Queremos falar com a Mestra Ailynn, somos alunos da academia. — Arifa explicou.

— Esperem. — a moça fechou a porta.

Arifa olhou para Tighas que ainda estava com a boca aberta.

— Ei, seu estrume! Vai entrar uma mosca nessa boca.

Tighas piscou e deixou escapar um sorriso. Parece que conheço aquela moça de algum lugar.

— Deve ser dos seus sonhos...

— Não, é sério... — Tighas ficou pensando... Tentava se lembrar onde vira aquele rosto, em especial, aqueles olhos.

— Acredito que ela é a enteada da mestra.

A porta voltou a se abrir e a garota disse — podem entrar.

Tighas seguiu Arifa para o interior da casa. Passaram por um vestíbulo pequeno onde havia casacos pendurados e botas enlameadas. Escutaram uma cantoria adiante e passaram pela cozinha, onde uma senhora idosa cantarolava enquanto cozinhava.

A moça e Tighas ficaram se encarando por alguns instantes até que ela desviou o olhar, apontou para a outra porta e voltou para dentro da casa. Dali, chegaram num pequeno quintal de onde vinham gritinhos animados de uma criança.

O quintal era bem iluminado. Tinha chão de terra capinada, uma pequena horta e duas árvores mais ao fundo, junto à cerca feita com galhos de madeiras tortas fincadas no chão e amarradas por cordas velhas e sujas.

— Não! Eu ganhei. — uma menina de uns três ou quatro anos argumentava zangada.

— Filha, você perdeu — explicou a mãe.

— Mentira, mamãe. Eu que venceu!

Arifa e Tighas olhavam para a cena perplexos. Ver sua mestra com os cabelos soltos, vestida como uma mulher comum, sem uniforme, armadura, etc, e brincando com uma criança era algo impactante.

— Eu vi quando a pequena acertou a vara e venceu — mentiu Tighas.

— Viu mamãe, eu disse!

Ailynn olhou para Tighas com dureza no olhar. Aqueles olhos completamente negros da mestra podiam ser realmente assustadores. O rapaz escapou daquilo agachando-se para cumprimentar a menina que veio animada em sua direção.

— Oi mocinha, qual é o seu nome?

— Lali.

— Que nome bonito! — ele sorriu de volta. Era uma menina adorável, os olhos muito grandes, alegres e verdes, os cabelos negros e escorridos como os da mãe.

— Eu sempe ganho da mamãe!

— Sei que sim! — Tighas deu uma gargalhada. Arifa ficou olhando para a cena tensa, com medo de serem repreendidos.

— Vocês querem que eu autorize uma viagem de vocês para ganharem créditos. — a mestra foi direto ao ponto.

Arifa arregalou os olhos, mas concordou com um aceno. Era um pouco assustador estar perto de uma mentalista forte como a mestra Ailynn.

— Muitas vezes quando ficam pensando demais em mim, não posso evitar captar os pensamentos. Eu os ouvi de longe, mas não vou forçar nenhuma leitura agora, podem relaxar. — explicou a mestra.

Tighas saiu do foco no momento em que aceitou brincar com Lali. Logo foi ensinando uma brincadeira dos seus tempos de infância.

— Julgo que uma experiência assim pode ser importante, e...

— Não precisa argumentar — Ailynn respondeu sem olhar para Arifa, observando Tighas e sua filha brincando.

— Mas...

— Eu estou disposta a dar a autorização sob uma condição.

— Qual mestra? — retrucou a moça, ansiosa.

— Que venham aqui uma vez por semana brincar com a minha filha. Ela é incansável e todos nós aqui estamos precisando de uma folga, às vezes.

— Podemos fazer isso, não é Tighas? Tíghas!

O rapaz estava no chão enquanto a Lali pulava por cima dele.

— Que foi? O que cê disse?

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