10 - Outro Rei-Deus

Gálius não precisou se esforçar para evitar o sono. O ciclo de pensamentos raivosos em sua mente deixavam-no desperto o suficiente. Ele se levantou e com um castiçal iluminou seu caminho pela casa. Todos estavam dormindo e ele teve cuidado para não fazer nenhum barulho. Os degraus da escada rangiam um pouco, mesmo quando ele subiu lentamente com toques suaves de seus pés descalços.

Para chegar no laboratório de sua mãe, no terceiro pavimento, tinha que subir pela pequena escada espiralada. O cômodo estava cheio de objetos e livros de história. Sua mãe havia desenvolvido um interesse especial por história antiga e a biblioteca de Tleos tinha muitos livros sobre o assunto. Com a vela, acendeu outras que ficavam em castiçais de parede. Então pode ver a caixa sobre a estante mais alta.

Aí está!

Subiu na mesa para alcançá-la e pegou-a com cuidado. Colocou-a sobre a mesa. A caixa estava empoeirada era estreita e longa, o formato necessário para abrigar a espada. Tinha um fecho metálico simples que abriu produzindo um pequeno estalo. Gálius elevou a tampa e finalmente colocou os olhos sobre a antiga lâmina.

O cabo escuro possuía um discreto padrão espiralado, a guarda era ligeiramente curva e a lâmina sulcada exibiria uma tonalidade esverdeada sob o sol.

Imaginei uma espada mais bonita, mas não preciso de beleza para fazer Lerifan sangrar.

Colocou as mãos em torno do punho da arma e sentiu um comichão subir pelo braço, e com essa sensação, veio um zumbido alto.

— Mas que droga — ele murmurou ao largar a espada.

O som não parava. Era uma porcaria de alarme. Olhou para sua mão, estava escurecida, roxa, na verdade.

Isso só pode ser coisa da mamãe.

Houve um estalo e o som cessou ele ouviu os passos subindo e simplesmente se sentou na cadeira, não dava para fugir, estava marcado.

— Gálius — a voz dela ainda estava um pouco sonolenta — você está encrencado, rapaz.

— Olha mãe, eu só estava...

— Filho, a verdade. — ela parou diante dele com os braços cruzados.

Ele suspirou e afundou na cadeira cabisbaixo. Ficou em silêncio por uns instantes, mas sua respiração acelerou e bufou um pouco antes de falar com a voz embargada.

— Eu quero matá-lo mãe, o maldito assassinou o Yol... Isso não é justo!

— Está falando do Vonu Lerifan?

— Sim, aquele assassino maldito!

Aquilo não era fácil de assimilar.

— Você tem certeza disso, filho?

— Tenho. Eu estava lá. Ele o matou na minha frente. — disse com os dentes cerrados.

— Por que ele faria algo assim? Eu não entendo.

— Ele fez porque podia. Porque tem esse poder. Poder dado a ele pelo Rei-Deus.

— Mas deve haver um motivo.

— Ele fez isso para me atingir, mãe. Estava se vingando de mim.

— Calma filho, você precisa se acalmar — ela abraçou-o — precisa pensar melhor sobre esse assunto.

Ele chorou.

— Não é justo, mãe. Isso não é justo.

Kiorina acolheu o choro do filho e também derramou lágrimas, lembrando-se de tantas injustiças que viu em sua vida. Elas simplesmente não paravam de acontecer, nem mesmo num lugar protegido e pacífico como Tleos. 

Ela queria consolá-lo de alguma forma e então, contou algumas histórias horríveis de seu passado, como a morte de seus pais pelas mãos do regime dos necromantes, em Lacoresh. Mas percebendo que aquilo não estava ajudando tomou coragem para dizer.

— Olha filho, o que vou falar com você é uma opinião minha, acredito que você terá maturidade para compreender o que vou explicar.

— Certo — ele disse já mais calmo e com as lágrimas contidas.

— Sabe que eu e seu pai somos estrangeiros aqui. E que a crença local é do poder absoluto e inquestionável do Rei-Deus. Vou contar o que penso, mas preste atenção, isso é para te ajudar a pensar melhor no assunto. Não vá sair falando essas coisas por aí, pois sei que o simples fato de desafiar os dogmas do Rei-Deus pode levar um cidadão à morte. Você e seus irmãos nasceram aqui em Tleos, sob a proteção do Rei-Deus, e assim, aprenderam os seus costumes e crenças.

— Certo, certo, já entendi. Fala logo mãe...

— Então, o poder do Rei-Deus é grande, não há dúvida, mas não penso que ele seja de fato um Deus, mas sim, um mago muito poderoso. Um mago que usa esse poder para governar a cidade do seu modo, e usa o direito divino como uma maneira de não precisar enfrentar quaisquer discordâncias por parte da população. É um ditador, mas não um mau ditador, segundo minha opinião. Como você sabe, eu e seu pai já estivemos em diversos reinos e até mesmo lugares que não eram governados por reis e tão pouco sujeitos à religião e crença real em deuses.

— Então... O que isso quer dizer? Que o Rei-Deus não é um Deus de verdade?

— Sei que você tem muitos amigos entre os silfos... Já deve ter percebido que muitos deles proferem a devoção à Deusa Mãe, enquanto juram obediência ao Rei-Deus. Eu e seu pai já vivemos durante algum tempo entre os silfos do mar, de quem os silfos aqui de Tleos são parentes distantes. A devoção dos silfos, de modo geral à Deusa Mãe é grande e antiga, anterior mesmo à fundação de Tleos.

— Mas Tleos sempre existiu.

— Bem, isso faz parte da crença local, mas a verdade é que Tleos não foi a primeira das cidades. A primeira delas, Umm, fica em outro continente e muito distante daqui. O Rei-Deus, na verdade, é um do Hölmos, talvez o último desse povo antigo e extinto que habitava a primeira cidade. Os Holmös, Vetmös e Elfos, eram os povos mais antigos e poderosos deste mundo, mas suas civilizações ruíram há muito tempo, durante a Era Maldita. Nós homens e os silfos somos linhagens descendentes dos antigos. Somos um povo mais fraco e perdemos a imensa longevidade de nossos antepassados devido ao fim da Era dos Deuses.

— Que loucura! — Gálius coçava a cabeça — Porque nunca nos contou sobre essas coisas?

— Filho, eu e seu pai viemos para cá em busca de um lugar pacífico e protegido para viver. O poder do Rei-Deus é imenso, mas aparentemente, limitado à nossa cidade e arredores. Mesmo durante a Era Maldita, quando a terra foi invadida por incontáveis hordas de demônios, Tleos manteve-se em paz. O poder do Rei-Deus evitou guerras e sua política de não se envolver em conflitos militares entre povos e reinos, fizeram dessa cidade, talvez, o único lugar no mundo onde foi e é possível ter uma família e viver-se em paz e sob proteção.

Gálius deu um sorriso torto — Incrível! Incrível que mesmo com tanto poder o Rei-Deus deixe que um de seus vonu cometa tão horrível injustiça.

— Filho, talvez, o Rei-Deus não esteja ciente de tudo que acontece na cidade, como muitos acreditam. Ainda que seu poder seja imenso, eu não acredito que ele veja e escute tudo o que se passa na cidade. Talvez, se ele fosse mesmo um Deus... Mas não é nisso que acredito. Ele ainda é um homem, como nós, todavia imensamente poderoso.

— Sim, isso faz sentido. Vonu Perembo disse que os vonus não são imunes ao erro. Talvez eu precise apenas descobrir um jeito de levar essa questão ao Rei-Deus. Se ele perceber que Lerifan foi injusto, que errou, talvez possa puni-lo e assim fazer-se justiça.

— Não é má ideia, filho, mas pense com cuidado em como proceder. Vonu Lerifan é muito poderoso e, ao que parece, não gosta nada de você. Confrontá-lo não vai trazer coisas boas para você e nem para nossa família. Dê um tempo ao tempo. Tente esfriar a cabeça. O mal contra seu amigo Yoltesh já está feito e não há volta. Resolver essa questão amanhã, ou daqui a alguns meses, não fará tanta diferença.

Gálius cruzou os braços e balançou a cabeça, irritado — Não concordo, mãe. Se eu não fizer nada, esse assassino vai continuar ferindo as pessoas. Preciso descobrir um jeito de fazer ele pagar pelo que fez quanto antes.

— Acredito que você tenha razão...

— Tenho? — ele ergueu as sobrancelhas, surpreso.

— Sim, filho. Mas ainda assim, não quer dizer que você deva agir de modo impensado. Prometa-me que não vai sair por aí fazendo nada sem me contar o que pretende.

— Certo, prometo.

— Estou aqui para ajudar. Eu também tenho uma boa relação com alguns vonus. Talvez consiga descobrir algo. Por que você não volta a falar com Vonu Perembo? Talvez ele possa agir a favor de restabelecer a justiça, não acha?

— Sim, Vonu Perembo é uma boa pessoa. Obrigado, mãe. Eu ia acabar fazendo uma besteira se não fosse por você.

Kiorina sorriu e o envolveu num abraço. — Ai filho, me doí muito ver você sofrendo. A vida aqui tem sido tão boa que eu já tinha me esquecido do que significa sofrer.

— Não te incomoda o fato de haver guerras e injustiças fora de nossa cidade e ficarmos aqui, sem fazer nada a respeito?

— Olha, nisso, eu prefiro confiar em seu pai. Ele teve contato com um Deus de verdade através de seu oráculo. Essa questão dos problemas do mundo, sempre nos atormentou durante anos, mas ele descobriu, através de suas visões, que a dor e o sofrimento dos povos são inevitáveis. E acredite, nós fizemos todo o possível para ajudar não só o nosso povo, como também outros reinos. Lutamos muito, fizemos diferença, mas continuar lutando, não iria alterar o destino do mundo.

— A mãe do Yol, Nashay, me falou sobre o levoorê, o Destino dos Seres. Conhece essa doutrina?

— Um pouco... O que descobri em minhas viagens é que, no fundo, as diferentes doutrinas religiosas têm muitas coisas em comum.

— Fico imaginando porque o Rei-Deus não expulsou os silfos, ou os proibiu de manter essa crença na Deusa Mãe, ou mesmo o levoorê.

— Certamente ele viveu muito e tem grande experiência. Deve saber que não dá para controlar de verdade a crença das pessoas. As leis mais básicas de Tleos são respeitadas pelo povo, e assim, há uma convivência harmônica. Isso é o mais importante. Quanto aos vonus que são os executores das leis, ainda que passem por rigorosa preparação para assumir o cargo, são homens e falíveis.

Gálius ficou olhando para a mãe em silêncio. Estava muito surpreso com aquela conversa. Não esperava que sua mãe pudesse ajudá-lo.

— Vá dormir filho, amanhã será outro dia.

Descansar parecia uma ótima ideia, mas, na prática, foi difícil ficar deitado e não rever as imagens de Yoltesh morto, seus olhos esbugalhados e fumaça saindo da boca. O rosto de desprezo de Lerifan e suas palavras ásperas repetindo-se em sua mente deixavam-no louco.

Gálius revirou na cama, sem conseguir recorrer às orações ao Rei-Deus que aprendeu na infância. Naquela noite, tudo aquilo desmoronou e Gálius viu-se desamparado de suas crenças. Pensando e pensando na conversa que teve com Nashay, Perembo e sua mãe. Parecia que tudo o que supunha ser verdade havia ruído de uma só vez.

Mas que droga! E agora? Como resolver isso? Minha mãe e Nashay acham que devo esperar, mas só penso em enganar aquele desgraçado! Queimá-lo... Fazê-lo pagar... O que eu faço?! O que eu faço?!

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