³⁷|ᵛᵉʳᵈᵉ-ᵃ́ᵍᵘᵃ

1.
“A cor verde água é um tom que lembra a aparência da água em mares e piscinas. Por ser uma cor ligada à natureza, ela significa equilíbrio, tranquilidade, saúde e vitalidade
2.
Apalavra verde vem do latim “viridis”, cujo verbo correspondente, “vivere”, significa viver, verdejar.

Já a palavra água vem do velho latim, onde tinha a forma aqua.”



⚠️Alerta de gatilho⚠️

•Menção a abusos domésticos,
overdose/tentativa de suicídio,
abuso sexual.
• Crise de ansiedade/ataque de pânico

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FALLON

— Nós nunca falamos sobre os seus pais — A Dra Rossi comenta numa manhã.

— Não gosto de falar sobre eles. — Dou de ombros, trocando a bolinha de anti stresse de uma mão para outra.

— Por quê?

Suspiro, apertando a bolinha com mais força. De quem foi a brilhante ideia de me colocar na terapia mesmo?

Olha, não me leva a mal. Eu sei que preciso fazer isso, que minha cabeça tá muito fodida e tal, mas é fácil assim, ok? Não é só sentar num sofá e sair contando toda sua vida. Se fosse tão simples, era só ir no cabeleireiro e você ainda sai de cabelo feito. Mas na terapia você precisa cavar os lugares mais feios e dolorosos de você e então expor. Não para o seu terapeuta, mas para você mesmo, encarar a verdade, aceitá-la.

E eu não estou pronta para fazer tudo isso de uma vez.

— Eles não foram os melhores pais do mundo — digo mesmo assim, erguendo os olhos para a Dra Rossi, uma mulher negra na casa dos quarenta. — Como a maioria dos pais.

— Eu sinto muito. Por que você se refere a eles no passado?

Dou de ombros.

— Eles não são mais os meus pais — murmuro, desviando dos seus olhos para meu all star. — Não sei se um de foram. Quer dizer, os pais não fazem o que eles faziam, eu acho.

— Como o quê?

— Bater nos filhos, humilhá-los, dizer que você é uma aberração ou que deveria ter te colocado na adoção. — Dou de ombros, jogando a bola para cima e pegando-a de novo. — Esse tipo de coisa.

— E de que forma eles justificavam essas coisas? — Sua caneta se move em sua mão quando ela anota algo em seu caderno.

— Às vezes não justificavam. — A lembrança de papai me batendo com o violão brilha em minha mente e eu deixo a bolinha cair ao jogá-la para cima outra vez.

Ela rola até os pés da Dra Rossi, que pega e me entrega.

Pigarreio, apertando a bolinha.

— Obrigada — murmuro.

Encaro meus dedos muito brancos agora apertando a bola de silicone azul. Será que se eu ficar apertando, ela estoura? Eu me sinto assim alguma vezes: como uma bola de silicone, sendo apertada por mãos fortes demais que não me deixam respirar. Essas mãos às vezes são meus medos, muita das vezes as minhas inseguranças e na maioria, minha ansiedade.

Eu sou como uma bolinha de silicone.

— Fallon? — Ouço a voz da Dra Rossi e ergo os olhos.

— Desculpe, você disse alguma coisa? — Deixo a bolinha de anti stresse de lado e entrelaço minhas mãos em meu colo.

— Você estava falando dos seus pais — a mulher me lembra.

— Certo. Às vezes eles me castigavam quando eu fazia algo que eles não... aprovavam.

— Você poderia me dar um exemplo?

Quase dou risada. Há tantos "exemplos" que eu poderia colocar numa caixinha e deixar ela sortear um.

— Eu tive uma overdose alguns meses atrás — conto, ignorando o meu humor de merda. — Ele me chicoteou até eu estar gritando para que parasse. Foi a minha punição por ter envergonhado nossa família publicamente, por eu ser uma vergonha para eles, uma decepção.

— Eu sinto muito. Ninguém merece esse tipo de tratamento.

Meus lábios se curvam levemente, foi quase a mesma coisa que Atlas me disse.

A Dra Rossi me analisa por um momento, então pergunta com cuidado:

— Você concorda com eles?

— Por um tempo, sim — respondo após alguns minutos. — Por muito tempo, na verdade. Acho que era mais fácil, sabe? Ser odiada e rejeitada, assim eu nunca decepcionaria ninguém porque uma pessoa amarga, fria e decepcionante nunca seria amada. — A dor dessas palavras é quase física e eu seguro meu colar, para me lembrar que eu não sou assim. Não mais. — Mas alguém me amou. A minha irmã. O meu namorado. Os meus amigos. E eu os decepcionei, mas eles não me abandonaram; eles estenderam a mão para mim mais vezes do que eu merecia e me ajudaram a ver que eu posso ser melhor se eu quiser. E eu quero. Não só por eles, mas por mim, porque... porque eu mereço, porque tiraram isso de mim, transformaram tudo em preto e branco e agora... agora tudo está ficando colorido outra vez. — Encaro a Dra Rossi, piscando para afastar as lágrimas. — Faz sentido?

A Dra Rossi sorri.

— Faz, Fallon. Faz, sim.

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Foram poucas às vezes que vim para a cidade grande, tirando as últimas semanas. O consultório da Dra Rossi fica aqui, então tenho vindo com frequência, mas antes era bem raro. Portia tem me lavado para almoçar no shopping depois de cada sessão. Acho que é o seu jeito de demonstrar que está orgulhosa de mim.

Eu amo, ela sempre me deixa escolher o restaurante. Hoje escolhi comida tailandesa.

Sentadas numa mesa no restaurante, penso se é estranho o fato da minha irmã ter virado minha melhor amiga. Eu mantive Portia afastada desde os meus treze anos e me pergunto como as coisas poderiam ter sido diferentes se eu não tivesse erguido essa barreira entre nós.

Talvez eu converse sobre isso com a Dra Rossi depois.

— Eu já tenho uma resposta — digo de repente após fazermos nossos pedidos.

Os olhos verdes da minha irmã me encaram.

— Eu sinto muito. — Engulo em seco, mas não desvio do seu olhar. — Mas eu não posso ir. Não agora, entende? É o meu último ano e eu quero passar com os meus amigos e...

— E o Atlas — ela completa, assentindo. Minha irmã não parece brava, mas me apresso em continuar mesmo assim.

— É, mas não culpe ele, tá legal? Eu sei que você ainda implica com ele e talvez a minha decisão tenha sim a ver com ele, mas...

— Ei, Fallon, calma, ok? — Portia estende a mão por cima da mesa e aperta a minha. — Eu entendo, de verdade. E parte de mim já esperava por isso.

— Mas Seattle é a oportunidade da sua vida.

Portia ri. Não sei como ela está lidando tão bem com isso. Eu me sinto horrível por ser um peso para ela depois de tudo o que ela fez por mim. Mas não posso ir embora. Falta tão pouco para a faculdade, apenas alguns meses para meus amigos, Atlas e eu ficarmos juntos antes que nos separemos.

— Seattle não é a oportunidade da minha vida. Virão outras. Relaxe, ok? — Ela dá tapinhas na minha mão antes de recolheu a sua e beber um enorme gole de vinho.

Recosto-me na minha cadeira e cruzo os braços, avaliando minha irmã. Ela está estranha. Eu achei que seu comportamento antes tinha a ver com Seattle. Ela está sempre fugindo de mim e chegando tarde, mas desde o Natal, quando fiquei sabendo da sua proposta de emprego, nada mudou. Além disso, ela sai e chega tarde da noite. Não a estou julgando, é só que ela claramente está escondendo algo de mim.

Ou alguém.

— Qual o nome dele? — pergunto por fim.

Portia engasga. Ela literalmente começa a tossir exageradamente. Eu peço água a um garçom, que trás rapidamente.

Depois que ela já bebeu meio copo, arqueio a sobrancelha.

— Então?

Como se não tivesse me ouvido, Portia bebe o resto da água, se abana, põe as mechas do cabelo atrás da orelha, se remexe na cadeira e até ajeita os talheres na mesa.

Portia.

Ela suspira, mas para com seus tics nervosos, colocando as mãos no colo e não me encarando. Ela parece envergonhada.

— Olha, está tudo bem se você está saindo com alguém — digo suavemente. — Sério, eu não ligo, se é por isso que você está tão nervosa. Estou feliz, na verdade, que você tenha encontrado alguém. Só não entendo porque esconder is...

— É o Osmar.

Pisco para ela.

— Você está namorando outro cara chamado Osmar? — Volto a arquear a sobrancelha. — Isso é meio obsessivo, mas tudo bem.

Minha irmã suspira, finalmente erguendo seus olhos para os meus.

— Eu não estou namorando outro cara chamado Osmar. É o mesmo.

Quantas vezes uma pessoa pisca por segundo? Multiplica isso por seis e sou eu nesse momento.

Pego sua taça de vinha e tomo um gole.

Pondo a taça de volta na mesa e respiro.

— Ok. Como?

Minha irmã suspira.

— Meu carro deu problema de novo há um mês e eu levei a oficina. Eu não sabia que Osmar estava trabalhando lá e o ignorei completamente, até que ele me ligou naquele dia que Brittany, você e eu viemos ao shopping comprar os vestidos de vocês.

Lembro-me disso. Quando perguntei a ela o porque dele estar ligando, ela disse que não sabia.

— Eu fui na oficina, então, não para ouvir o que ele queria dizer, mas para mandá-lo me deixar em paz. — Portia suspira outra vez, voltando a ajeitar os talheres. — Quando cheguei lá, ele começou a falar antes que eu  pudesse dizer alguma coisa. Osmar se desculpou por ter deixado você beber naquele dia e ter lhe dado drogas. Ele disse que parou depois daquele dia, não... trafica mais. — Portia fecha os olhos, balançando a cabeça. — Eu o conheço, Fallon, e sei quando ele está mentindo para mim e ele não estava.  Talvez eu tenha sido ingênua em acreditar nele e talvez eu esteja cometendo um erro, mas...

— Mas você precisava tentar. Dar essa chance a ele.

Portia abre os olhos e eles estão marejados e carregados de culpa.

— Eu sei o que ele fez com você. Você podia ter morrido, meu Deus. — Ela expira, tremendo. — Eu não sei qual o meu problema. Acho que estou ficando louca. Isso não é racional, certo? Eu tenho que terminar com ele e eu vou, só que eu...

— Você o ama — contesto, por algum motivo, surpresa. — Você nunca deixou de amá-lo, não é?

Ela desvia dos meus olhos outra vez, corando.

— Ele nem sempre foi assim, sabe? Ele tinha um trabalho decente, não usava drogas e nem traficava. Mas a mãe dele ficou doente e ele não tinha dinheiro o suficiente e começou a fazer essas coisas. Me senti horrível quando terminamos, porque ele precisava de mim e eu não podia continuar com ele naquela situação. Mas sim, eu nunca deixei de amá-lo, mesmo que tenha sido culpa dele você ter ido parar no hospital. E eu sinto muito, Fallon, por ser tão inconsequente...

— Pare. — Fico surpresa em como minha voz soa firme e ainda mais surpresa que minha irmã obedeça. Descruzando meus braços, digo a ela com calma: — Osmar não tem culpa de nada. Ele não me forçou, Portia. Eu não sou uma criança que não sabe o que é certo ou errado. Eu escolhi me drogar, eu sabia que eu podia ter uma overdose... E eu não me importei.

Não era meu plano fazê-la chorar, apenas entender que não deve se sentir culpada, mas são lágrimas molhando suas bochechas agora e eu percebo que nunca tinha admitido isso para ela antes. Talvez nem para mim mesma.

Provavelmente indo contra as regras do restaurante, levanto e ponho minha cadeira ao lado da minha irmã. Acomodada novamente, seguro sua mão e enxugo seu rosto com a outra.

— Osmar não teve culpa — repito mais suavemente. — Eu sou responsável por minhas ações e não quero que você se martilize por isso. Fico feliz que ele tenha largado as drogas e esteja colocando a vida nos trilhos outra vez. Estou feliz que ele tenha você. Você, que me deu várias segundas chances, também merece uma segunda chance no amor. E se você não é capaz de aceitar isso, não é só eu que preciso de terapia.

Portia ri e eu sorrio, dando-lhe um beijo na bochecha.

— Estou feliz por vocês.

— Obrigada. — Ela me abraça, fungando. Eu ignoro todas as pessoas no restaurante que tentam não olhar para nós, mas falhando terrivelmente. — Sinto muito que você tenha se sentido daquela forma.

— Eu também sinto. — Mas não quero falar sobre, já tive minha dose de conversas sérias. — Ok, vamos parar com o melodrama. Posso chamar o garçom agora? O coitado tá ali há uns cinco minutos.

— O quê? — Portia segue meus olhos, vendo o pobre do garçom esperando com duas bandejas na mão, sem saber se deve interromper. Faço um sinal de legal para ele, que relaxa e começa a vir na nossa direção. — Ai, meu Deus, que vergonha.

— É porque você ainda não se viu no espelho, tá toda borrada e vermelha. — Faço uma careta.

— Você é terrível. — Ela fica de pé, pegando sua bolsa. — Eu já volto. Não comece a comer sem mim.

Anuo.

No momento que o garçom põe nossos pratos, eu começo a devorar o meu.

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Passamos o resto da tarde no shopping e está quase anoitecendo quando chegamos a Greenwood.

Segunda-feira é a volta as aulas e eu estou estranhamente animada para isso.

Meu celular vibra no meu bolso e eu pego para ver. É o nosso grupo, com Drew, Brittany, Atlas e eu.

B: Vamos de roupas combinando na segunda? [17:23]

Drewzinho: Eu esperava isso do Atlas, mas n de vc. [17:25]

Eu: Verdade, é a cara dele essas cafonices. [17:25]

B: Não é cafona! Nós vamos ser vistos oficialmente como um grupo. [17:26]

Eu: Geral acha q a gente faz poliamor e vc ainda quer usar roupas combinando? Eu tô fora. [17:26]

Drewzinho: Tô com a Fallon [17:27]

B: Odeio vcs. @Atlas, cadê vc???? Preciso de uma ajudinha aqui!!!!!!!!!!!!!!! [17:28]

Eu: Ok, Rainha da Exclamação, pq vc n pensa em algo menos chamativo? [17:28]

Drewzinho: E q n faça parecer q a gente é um grupo de orgia. [17:28]

Eu: Isso aí [17:29]

Portia estala os dedos na minha frente, roubando minha atenção.

— Chegamos. Larga esse celular ou não vou comprar sua geleia de morango.

Reviro os olhos, mas guardo o celular no bolso ao descer do carro.

Portia queria comprar algumas coisas para casa, então paramos no mercado. Eu preferia ficar no carro, tá fazendo frio pra caralho, mas então não teria chance de colocar algumas coisas no nosso carrinho enquanto minha irmã não estivesse olhando.

Cumprimentamos uma mulher do caixa ao passar por ela — cidade pequena e tal — antes de eu me separar de Portia.

Vou praticamente saltitando até a seção de doces.

— Doce de leite... Doce de leite... cadê você... — cantarolo enquanto procuro pelo meu pote de vidro preferido.

Achei! Quase solto um gritinho ao achar.

Eu simplesmente amo doce de leite e não vou dividir com Portia. Ela nunca me dá um pouco daquelas batatinhas também, então não me sinto culpada.

Estou voltando para procurar a geleia de morango quando ouço uma voz que me faz parar.

Você quer ajuda? Parece muito alto para você — o homem diz. Ele não está falando comigo, há uma seção inteira entre sua voz e eu, mas os pelos dos meus braços se arrepiam mesmo assim.

Eu não percebo o que estou fazendo até esbarrar em uma mulher que estava no meu caminho. Não peço desculpas, continuando andando até chegar na outra seção, de onde ouvi a voz.

— Qual que você quer? Esse?

Parada no início da seção, eu observo o homem que assombrou os meus pesadelos por anos; que tirou mais de mim do que eu não sei se vou ser capaz de super um dia. Quem deixou minha vida em preto e branco.

Deixo o pote do doce de leite cair no chão, assustando a garotinha que está segurando uma boneca de pano. Atrás dela está o Sr Morris.

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Acho que alguém está me chamando, possivelmente a minha irmã, mas minha visão está borrada. Não porque eu estou tonta, mas porque as lágrimas me impedem de enxergar direito enquanto ouço meu coração bater rápido e rápido e mais rápido.

Ele está aqui. O homem que fez aquilo comigo, está aqui. Eu quase posso sentir suas mãos calejadas e suadas pelo meu corpo; seu hálito podre enquanto ele sussurra por cima do meu choro, ignorando meus apelos para parar.

Me curvando, eu vomito, como vomitei depois que ele me deu banho e penteou meu cabelo, que me pôs na cama...

— Fallon — Portia me segura. — Ei...

Mas eu não consigo explicar a ela. Não consigo parar de tremer.

As lembranças daquela noite parecem frescas, me sufocando e eu não consigo respirar, mesmo quando meu peito sobe e desce com inspirações rápidas demais para serem normais.

— Por favor — sussurro para minha irmã. Por favor, não deixe que ele faça isso comigo de novo. Por favor.

— Está tudo bem — minha irmã sussura. — Fallon, está tudo bem, ok? Nós vamos embora.

Tudo se torna um borrão enquanto me deixo ser levada pela minha irmã. Eu não noto que estamos no carro até Portia colocar meu cinto de segurança, nem ouço suas palavras. Há apenas um zumbido agora enquanto encaro minhas mãos através das lágrimas.

Eu posso estar errada? Podia ser outra pessoa? Talvez conversar com a Dra Rossi sobre meu passado tenha despertado essa lembrança em particular e eu comecei a imaginar coisas...

Trago meus olhos joelhos ao peito e escondo meu rosto entre eles quando meus soluços ficam descontroláveis. Era ele. Eu não imaginei ou alucinei, ali era o Sr Morris, livre e impune depois do que fez comigo. Por que você não o denunciou, ficou calada. A culpa é sua.

— A culpa não é minha — sussurro, tentando acreditar no que digo ao invés do  meu inconsciente.

— Fallon? Nós chegamos. Vamos descer do carro agora, ok?

Eu não respondo nem reajo quando ela me ajuda a sair de dentro do carro. Não noto nada até que estou na minha cama, me encolhendo.

— Me fale o que está acontecendo. Por favor — o sussurro de Portia chega aos meus ouvidos enquanto ela alisa meus cabelos. Eu me afasto, lembrando das mãos enormes do Sr Morris fazendo isso. — Eu vou ligar para a Dra Rossi, ok? Ela deve...

— Atlas — sussurro, abrindo os olhos. — Chame o Atlas. Por favor.

— Ok. Ok. Eu vou ligar para ele.

Não sei se sussurro um obrigado, mas ela sai rapidamente do quarto e eu torço muito que ela faça o que eu pedi.

ATLAS

Seria muito bizarro se meu pai pedisse que eu o ensinasse a tocar piano? Sim, não é? Eu sei que nós meio que nos acertamos no Natal quando ele me deu aquelas partituras, mas achei que tivesse sido apenas seu espírito natalino.

Agora, sentado ao meu lado no banco, eu tento não ficar nervoso demais enquanto mostro a ele o que eu sei. Apesar de papai dizer que desaprendeu a tocar depois de muito anos rejeitando a música, ele pega o jeito de novo muito rápido, surpreendendo-me. Nunca imaginei que um dia estaria tocando piano ao lado do meu pai, sorrindo.

— Você toca igual ao seu tio — meu pai comenta enquanto caminhamos para a sala de jantar, algum tempo depois. — E isso é um grande elogio.

— Obrigado — agradeço, ainda desconcertado com a sua súbita mudança. Eu sei que não devia abusar da sorte, mas preciso saber.  — Isso significa que você apoia a minha escolha de não fazer direito, mas me dedicar à música?

Meu pai sorri um pouco, pondo a mão em meu ombro.

— Sim, filho. Talvez você posso até fazer direito depois.

Pai.

Ele ri e bagunça meu cabelo como se eu tivesse cinco anos.

— Estou brincando, garoto. Não vou mais interferir na sua vida e nas suas decisões. Eu prometo.

Um peso enorme sai dos meus ombros. Mesmo que eu já tivesse decidido que seguiria meu sonho com ou sem o seu apoio, é muito bom saber que agora eu o tenho.

— Obrigado.

Papai faz uma reverência, o que é engraçado. Ele parece mesmo de bom humor como eu não o vejo há muito tempo. É legal passar esse tempo com ele e que tenhamos voltado a ser cordiais um com o outro.

Antes que eu alcance a mesa de jantar, onde mamãe já está aguardando e para onde meu pai vai, dando um beijo na esposa antes de se sentar, meu celular toca.

Franzo as sobrancelhas para o nome de Portia que aparece na tela, então peço licença aos meus pais para atender.

— Portia?

Você precisa vir para cá. Agora. — O desespero em sua voz me faz ficar tenso.

— O que aconteceu?

É a Fallon, ela está chorando e tremendo... Eu acho que ela está tendo uma crise, mas não sei o que fazer, eu nunca a vi assim. Ela pediu para eu chamar você.

Eu já tinha pegado minhas chaves quando ela disse o nome de Fallon e já estou saindo de dentro de casa quando ela termina de falar.

— Eu já estou indo. — Desligo, destravando o carro. Eu o deixei do lado de fora porque pretendia mesmo ir ver Fallon mais tarde.

Atrás de mim, ouço a voz de meu pai quando estou entrando no veículo.

— Atlas, o que houve?

— Não sei. Aconteceu alguma coisa com a Fallon. Eu preciso ir — digo acima do rugido em meus ouvidos ao ligar o motor. Acho que meu pai falou mais alguma coisa, mas não prestei atenção. Dirijo para casa de Portia o mais rápido que posso.

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Quando chego na casa de Portia, ela me puxa para o quarto de Fallon e eu paro por um segundo ao ver sua figura encolhida na cama. Faz muito tempo que eu não a vejo assim e o aperto em meu peito fica insuportável conforme me aproximo. Não sei o que aconteceu para deixá-la assim, mas deve ter sido algo muito, muito ruim.

— Fallon — chamo baixinho antes de tocá-la. Quando seus olhos se abrem, quase caio de joelhos com a dor que vejo neles.

Sento-me na cama e ela me abraça. Fico aliviado de pelo menos poder consolá-la, mas ela estremece conforme chora, soluçando.

— Está tudo bem. Você está bem. Você está segura — sussurro, passando a mão por suas costas. — Ok?

Ela demora, mas anue.

— Repita comigo.

Fallon se afasta para apoiar sua testa na minha, os olhos fechados, mas transbordando de lágrimas.

— Está t-tudo bem — sua voz treme, frágil e quase inaudível, mas ela continua. — Eu e-estou b-bem. Eu estou s-segura.

— Isso. Agora vamos respirar e inspirar, ok? Até o seu coração ficar calmo.

Controlando o meu próprio coração e com uma calma que eu não tenho, pego sua mão e ponho em meu peito.

— Inspirar — instruo, mas Fallon balança a cabeça, abrindo os olhos.

— Eu não c-consigo.

— Você consegue. — Ela ainda está negando e tremendo. — Fallon, olhe para mim. — Seguro seu rosto. — Meu amor, olhe para mim.

Ela olha e me mantenho forte.

— Inspire comigo. Você consegue.

— Tudo b-bem.

Nós fazemos o exercício de respiração que eu aprendi ao pesquisar sobre como acalmar pessoas com crise de ansiedade ou pânico ou os dois. Eu queria estar mais preparado caso algo assim acontecesse com ela de novo enquanto eu estivesse presente. Uma outra coisa que eu li é que preciso me manter no controle numa situação dessas. Fallon precisa de mim e eu não posso ajudá-la se surtar, por mais que eu esteja, de fato, surtando internamente.

Quando sua respiração fica estável, ela me abraça novamente, ainda chorando, mas não está mais tremendo ou soluçando. Eu a abraço tão forte quanto ela me abraça, esperando que entenda que está segura de seja lá quais forem os medos que vieram atormentá-la dessa vez.

Olho para frente, para Portia parada observando toda a cena. Ela parece não saber o que fazer, o olhar assustado e devastado. Lembro-me que ela disse que nunca viu Fallon assim.

— Eu vou cuidar dela — garanto a Portia. A mulher anue, atordoada.

— Eu vou... — Pigarreia. — Eu vou estar na sala, se ela precisar de alguma coisa.

Ela espera mais um pouco, mas vai embora, fechando a porta atrás dela.

— Você quer deitar? — pergunto baixinho a Fallon.

Ela anue minimamente e nós deitamos. Ela volta a me abraçar no mesmo instante.

— Quer falar sobre isso? — Continuo lhe acariciando, esperando que isso possa acalmá-la mais.

Fallon ergue os olhos, lágrimas ainda se derramando deles.

— E-eu... — Ela fecha os, escondendo o rosto em meu peito.

— Tudo bem — sussurro, torcendo para que ela não note o tremor em minha voz e em meus dedos, a prova de como estou assustado.

Isso não foi só uma crise de ansiedade. Eu tenho mais certeza disso a cada hora que passa e ela não consegue parar de chorar.

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Eu não dormi, apesar de ter fechado os olhos depois de muito tempo encarando o teto. E eu só fiz isso porque Fallon parou de chorar. O sono a venceu e eu suspirei de alívio ao puxar as cobertas sobre ela.

Deimos veio nos fazer companhia e ficou perto da sua dona, vigiando-a como eu.

— Não. — A palavra me faz abrir os olhos e eu encaro Fallon. Seu abajur está ligado, iluminando suas sobrancelhas franzidas enquanto ela murmura. — Por favor, não.

— Fallon? — Com cuidado, toco seu rosto, mas ela se afasta. Meu peito aperta.

Não, não. Para — a dor na sua voz é real e meu coração parece se partir de verdade também.

— Fallon. — Não me arrisco a tocá-la outra vez, mas minha voz é mais alta.

Está doendo. — Lágrimas voltam a transbordar de seus olhos mesmo enquanto ela dorme.

Totalmente paralisado, eu observo ela se debater, sua voz se tornando mais nítida, assim como sua dor.

Eu não quero. Isso dói. Para, por favor. — Sua respiração fica instável. — Não!

Meu corpo parece acordar novamente e fico de joelhos na cama na mesma hora que a porta do quarto é aberta.

— O que está acontecendo? — Portia pergunta ao acender a luz.

— Ela está tendo um pesadelo — explico, segurando os pulsos Fallon. — Fallon, acorde. Você está tendo um pesadelo. Não é real.

Seus olhos ainda estão fechados com força e ela não dá sinal de que me ouviu quando começa a gritar. Literalmente gritos de pavor.

Fallon! — Eu não quero machucá-la, mas seguro-a com mais força, com medo do que ela pode fazer a si mesma.

— Não! Me solta! Por favor! — seus gritos ficam descontrolados quando ela começa a debater mais forte ao tentar se livrar do meu toque.

— É um pesadelo, Fallon. Acorde. Sou eu, Atlas. — Solto seus pulsos para poder sacudir seus ombros, não me importando quando ela começa a me arranhar. A se defender. — É um pesadelo, acorde. FALLON, ACORDE.

Como se estivesse debaixo d'água, ela abre os olhos, sentando-se, inspirando e depois começando a tossir.

Eu me afasto um pouco, lhe dando espaço.

Ela me encara, assustada e depois a sua irmã.

— O que aconteceu? — pergunta, a voz rouca.

— Você teve um pesadelo, meu amor. — Ou uma lembrança.

Como se tivesse se lembrado, ela abraça o próprio corpo.

— Eu quero tomar banho.

Quase perco meu autocontrole. De fato, não foi só um pesadelo, mas a lembrança do que aconteceu quando ela tinha treze anos. Quando foi estuprada.

— Venha, eu ajudo você — Portia diz gentilmente, ajudando Fallon a ficar de pé. Minha namorada não me encara nos olhos ao passar por mim e sair do quarto.

Quando tenho certeza que as duas estão dentro do banheiro, soco o colchão. De novo e de novo.

Eu quero matar aquele desgraçado. Eu já pensei nisso um milhão de vezes, mas agora a raiva beira a irracionalidade e eu tremo, tentando contê-la. Fallon não precisa disso, é o que fico me lembrando. Não posso perder o controle, preciso apoiá-la e cuidar dela, não ter um ataque de raiva.

— Você está tremendo. — Ouço a voz de Portia e ergo o rosto, olhando por cima do seu ombro. — Ela está tomando banho.

Anuo, saindo da cama para arrumá-la, precisando de algo para fazer.

— O que significa tudo isso? Que pesadelo foi esse? Ela não estava falando de você quando pediu para soltá-la.

— Há coisas que a Fallon só irá contar a você quando estiver pronta.

— Então você sabe o que está acontecendo?

Não exatamente. Não faço ideia do que despertou essa lembrança em Fallon hoje. Estou inclinado a acreditar que tenha a ver com a terapia, talvez ela tenha mencionado algo sobre isso hoje na sessão, mas foi 10h00 da manhã e Portia me ligou quase 18h00. Talvez eu esteja errado em supor que falar sobre seu passado tenha demorado para fazer efeito, mas algo me diz que há mais nessa história.

— Eu disse: Fallon irá lhe contar quando estiver pronta.

— Eu sou a irmã dela, cacete! Eu tenho o direito de saber o que está acontecendo.

Endireitando-me, encaro Portia, que se aproximou para fazer suas exigências.

— Eu entendo que você esteja preocupada...

— Você entende? Não foi você que esteve lá na hora. Eu fiquei...

— E onde você esteve em todos os outros anos, porra? — Minha voz é baixa, mas firme e eu não me desculpo pelo palavrão. — Sabe de uma coisa? Eu tentei justificar a sua cegueira, mas eu estou cheio dessa merda. Você ama tanto a sua irmã e se preocupa com ela, mas não foi capaz de ver o que estava debaixo dos seus olhos? Uma porra que não. Quer saber o que eu acho? Que você sabia ou pelo desconfiava de tudo o que estava acontecendo, mas estava confortável demais sendo a filha preferida e perfeita, o exemplo, o orgulho da família, para se importar se a sua irmã aparecia com um arranhão ou a porra de uma perna quebrada. E sabe o quê mais? Mesmo depois que você viu do que o merda do seu pai é capaz, você ainda se recusa a ver a verdade porque é uma hipócrita e covarde.

Eu não fico surpreso quando sua mão atinge meu rosto com um tapa.

Ela não diz nada, porém e eu me volto para ela.

— Pode me bater quantas vezes quiser, mas isso não vai tirar as verdade das minhas palavras, então lave a porra da sua boca para falar sobre ter direito de saber o que está acontecendo, porque você não estava lá quando ela mais precisou de você.

Saio do quarto, deixando uma Portia trêmula de raiva e chocada para trás.

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A porta do banheiro não está trancada, mas eu bato na porta antes de abrir um pouco.

— Posso entrar? — pergunto a Fallon.

— Pode.

Entro, fechando a porta atrás de mim. Encosto-me na pia e suspiro, sentindo o cheiro do seu sabonete.

— Você está melhor? — pergunto, cruzando os braços enquanto ouço o barulho da água caindo do outro lado da cortina.

— Não sei.

Apesar de tudo, amo que ela não esconda como se sente de mim.

A água para e a cortina é aberta, revelando Fallon. Desvio os olhos.

Depois de um momento, ela aparece na minha frente, de toalha, com o cabelo molhado por cima do ombro. Encaro seu rosto, tensionando a mandíbula ao notá-lo inchado e seus olhos vermelhos.

— Você não precisava desviar o olhar — Fallon comenta, a voz ainda rouca.

— Não quero que fique desconfortável. — Eu sei que ela estava tendo um pesadelo barra lembrança quando me afastou, mas me fez pensar.

— Eu não fico desconfortável com você. O que aconteceu... no meu passado, não muda nada entre nós. — Ela franze as sobrancelhas. — Por que está sendo cauteloso agora? Quer dizer, você sempre foi carinhoso, gentil e cuidadoso, mas parece que algo mudou.

Ponho os fios molhados de seu cabelo atrás da sua orelha e acaricio sua bochecha.

— Enquanto você se debatia e gritava... Foi como olhar para uma Fallon mais nova. — Engulo em seco, sentindo aquela raiva outra vez. — Eu sei que você era, de fato, nova, mas ver e ouvir você, foi... — Expiro, tentando achar uma palavra que possa descrever como me senti. — Devastador. O que foi tirado de você, quão nova você era e como você teve que lidar com tudo isso sozinha... Eu me sinto enjoado.

Fallon fica pensativa por um momento, mas por fim anue.

— Compreendo. — Claro que sim. Ela literalmente viveu isso, porra. — Mas não quero que isso mude nada entre nós. Você promete?

— Eu prometo.

Fallon anue outra vez, ficando na ponta dos pés para me beijar, mas para de repente, franzindo as sobrancelhas para o meu rosto.

— Eu fiz isso? — pergunta baixinho ao tocar meu rosto. Certo, isso.

— Não.

Ela relaxa, mas fica tensa novamente.

— Então... Quem fez isso com você?

Desvio dos seus olhos, tensionando a mandíbula outra vez.

— Diga-me que não foi...

— Sua irmã.

Eu conto até cinco antes de ter que passar o braço pela cintura de Fallon quando faz menção de se afastar, com certeza para ir atrás da irmã.

— Está tudo bem. Não foi nada — garanto a ela, puxando suas costas contra meu peito.

— Não foi nada? Ela bateu em você! — Fallon tenta se soltar, mas abraço ela completamente, apoiando meu queixo em seu ombro.

— Nós discutimos. Ela queria saber o que estava acontecendo, eu disse que você contaria quando estivesse pronta. Ela não gostou, então eu disse algumas coisas que ela não gostou de ouvir também e aí ela me deu um tapa.

Fallon para de tentar se soltar.

— Que coisas?

— Coisas que prefiro não repetir.

Penso que ela vai insistir mais, mas ela diz:

— Isso ainda não justifica ela ter batido em você. Vou fazê-la pedir desculpas.

Dou um beijo em sua bochecha, achando sua reação fofa.

— Não será necessário. Nem está doendo.

— Foda-se! Ela bateu no meu namorado.

Sorrio, enchendo seu pescoço de beijos.

— Minha gatinha selvagem.

Meu coração se enche de alegria quando ela ri, fazendo-me sentir como se fizesse séculos que eu não ouço esse som. E considerando todas as últimas horas, é como se fosse.

Por isso eu não pergunto a ela o que aconteceu. Além de saber que ela me contará quando estiver pronta, não quero trazer de volta essa tristeza quando o som da sua risada preenche o ar de vida e alegria.

~•~

Oooi, vou parar de pedir desculpas pela demora de postar ksks.

Esse capítulo foi bastante pesado para mim e eu já tenho ele em mente há um tempo. Acho que todos esperavam por isso — um confronto da Fallon com o passado dela — mas não deixa de ser doloroso.

Se despertou gatilho em alguém, peço mil desculpas.

Apesar disso, estou com orgulho da Fallon, pelo o que ela falou na sessão de terapia e a conversa dela com a Portia. Achei que ela foi bastante madura, prova do seu crescimento. Além disso, eu penso como ela: Osmar não forçou a Fallon a nada e eu não o odeio.

Mas quero saber a opinião de vocês sobre tudo isso.

Não sei quando terá um novo capítulo, mas espero que logo <3

Fiquem bem e até ♥️

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2bjs, môres♥

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