44. Como antes
𓅯 Capítulo 44 | O Canto dos Pássaros 𓅯
O agradável aroma de grama recém-cortada invadiu as narinas de Lucas quando o vento frio entrou pela janela semiaberta do consultório de Edith, que preparava um chá na pequena cozinha do lado de fora. O rapaz aguardava diante da janela, observando o jardim — as rosas perfeitamente ordenadas, o ipê destacando-se com suas flores amarelas e os vasos de barro com pequenos brotos avermelhados. Notou quando Edith voltou com um bule de chá de um aroma igualmente agradável, sentando-se em sua cadeira e ajeitando alguns papéis.
— Quando quiser, podemos começar — ela falou. Lucas permaneceu ali de pé por mais um tempo, um pouco hesitante. Podia vê-la por um pequeno espelho em formato de lua pendurado na janela, bebericando o chá, aguardando o paciente pensativo. O caderno que passaram a chamar de "caderno de comunicação de Lucas" já estava posicionado, ao lado da caneta, esperando que fosse usado.
Lucas trocou o peso dos pés. Tantas coisas vinham em sua cabeça, mas um assunto em especial se sobressaía. Talvez pudesse começar por ele. Estava prestes a se virar, sentar-se diante de Edith e escrever tudo o que estava pensando, mas seus pés se firmaram no chão e seus olhos recusavam-se a observar outra coisa que não fosse as árvores do lado de fora.
— Acho que vou trancar a faculdade — ele disparou, baixinho, como se falasse consigo mesmo. Um mal-estar começou a tomar conta dele, mas Lucas se controlou. Olhou de soslaio para o espelho que balançava, tentando encontrar algum indício de surpresa na expressão da psicóloga. Mas Edith permanecia impassível, parecendo atenta demais aos papéis que manuseava e o chá fumegante ao lado.
Antes de responder, Edith levou a xícara à boca e tomou mais um gole, sem pressa. Nada de surpresa. Nenhum indício que sairia daquela sala e soltaria fogos de artifícios porque o paciente falou com ela pela primeira vez. Parecia bobo, mas Lucas tinha medo das reações. A indiferença dela, entretanto, deixou-o mais relaxado.
— É uma decisão de fato importante — falou, colocando os papéis em uma pasta. — Que tal fazermos essa consulta na varanda?
Lucas concordou com a cabeça. Edith pegou o bule de chá, as xícaras e enfiou o caderno sobre o braço. Guiou o paciente pela varanda, sentando-se em uma das poltronas e colocando o bule e o caderno na mesa entre eles. Nervoso, o rapaz se sentou também. As poltronas estavam posicionadas de forma que eles ficassem olhando para o jardim, e não um para o outro.
— Chá de capim-limão? — perguntou, erguendo o bule em direção à xícara vazia. Lucas assentiu. Um gato tricolor começou a rodeá-los, deitando-se aos pés da dona. O rapaz viu quando Edith empurrou o caderno em sua direção, deixando claro pelo gesto que não estava criando nenhuma expectativa que ele se expressasse verbalmente.
Mas Lucas estava tão cansado daquilo. Já havia conseguido algumas vezes... Por que era tão difícil manter uma conversa completa? O fato de Edith não ter reagido de forma exagerada deu-lhe confiança. É claro que ela, como profissional e especialista no assunto, sabia que qualquer reação, por mais sutil que fosse, aumentaria o seu desconforto.
— Então, você está decidido quanto a isso? — perguntou, sem olhar para Lucas. Tão contemplativa quanto ele, a psicóloga fitou o jardim sem fazer contato visual com o paciente.
— Não sei — Lucas respondeu, sem conseguir aumentar o tom de voz. — Estou perdido.
— Você disse que havia entrado no curso por causa do seu pai, certo?
Lucas assentiu, engolindo em seco. Resolveu tomar um gole do chá, ainda que com as mãos trêmulas, para tentar se acalmar um pouco. Contudo, aos poucos, a frequência cardíaca foi diminuindo e ele conseguiu manter-se no controle de suas emoções.
— Eu não consegui — Lucas sussurrou. — Saíram as minhas notas. Ruins.
— Você queria entrar nesse curso?
— Não sei.
Tantas coisas vinham em sua mente que era difícil colocar em palavras. Lucas sentia tanta dificuldade de expressar-se, de colocar para fora tudo o que pensava ou sentia... Ele queria dizer tantas coisas. Eu vejo as pessoas apaixonadas pelas suas profissões, sendo bem-sucedidas por isso, ansiando pelo futuro... Mas eu não sei para o que eu nasci, o que eu tenho que fazer, o que eu quero fazer. Me sinto tão perdido, as coisas mudaram tão rápido, nada é mais como antes. Mas uma coisa permanece: eu tenho medo de não ser nada na vida.
Lucas fechou os olhos quando um bolo se formou na sua garganta. Segurou o choro, dispensando as lágrimas abruptamente. Não as queria ali naquele momento. Talvez seria melhor se escrevesse, mas nem tocou na caneta que o aguardava ao lado. Apesar de todo o seu falatório interno, ele apenas disse:
— Me sinto perdido.
— Não há problema. Vamos achar o caminho — Edith olhava para as samambaias penduradas. — Primeiro, precisa encontrar uma resposta. Você disse que entrou no curso por causa do seu pai. Mas o seu desejo era o mesmo que o dele?
— Não. Era o curso que ele q-queria fazer e não fez — a garganta de Lucas estava seca, e ele tomou mais chá. Queria agradá-lo, recompensando tudo o que eu não fui para ele. Queria que ele sentisse orgulho de mim; que percebesse que eu era capaz, ele falava mentalmente. O filho que não fala finalmente seria útil...
Aquilo era mais profundo do que pensava. Em nenhum momento pensou no que realmente queria; mas ele não sabia o que desejava de verdade. No entanto, Edith tinha razão quando disse que era uma decisão importante. Lembrou-se das vezes que se sentia mal quando entrava em sala de aula, de suas crises ansiosas, das vezes que tentava prestar atenção nas disciplinas que, no fundo, não fazia questão de entender. Chegara achar que não era inteligente o suficiente, mas não era verdade. Ele não queria estar ali. Seu único reconforto era Wallace e seus passeios pelo belo campus.
Edith fez algumas considerações sobre a situação, deixando-o ainda mais pensativo. No fundo, estava aliviado por se permitir pensar em desistir. Apesar de nunca ter mencionado diretamente suas intenções, Ben já havia lhe dito que teria o seu apoio. Miriam não o julgaria. Alberto talvez fizesse um sermão, mas não tinha mais certeza depois da brusca mudança de comportamento dele.
Era uma decisão difícil e sujeita a grandes julgamentos de pessoas que nada tinham a ver com a sua vida. Mas só de pensar que as férias estavam acabando e que ele teria que enfrentar aquela sala, repetir as matérias que fora mal, aprender outras que não se interessava, já o deixava angustiado. Apertava-lhe o peito, como se seu coração dissesse: Ei, esse não é o seu caminho! E Lucas rebatia: Então, qual é?
— Já lhe perguntei isso nas primeiras consultas, mas gostaria que me respondesse de novo — Edith continuou. — O que você gosta de fazer?
— Eu não sei — Lucas disse automaticamente.
Edith sorriu serenamente.
— Não, não... — ela balançou a cabeça. — Você não me respondeu isso. Quer dar uma olhada no seu caderno?
Lucas suspirou e pegou o caderno. Já havia tantas coisas escritas — respostas às perguntas de Edith, pensamentos, tudo o que ele queria falar e não conseguia. Nas primeiras folhas, o rapaz havia escrito: Eu gosto de pintar, de desenhar, gosto de escutar música e caminhar no parque do meu condomínio. Ele até mesmo havia desenhado uma plantinha que estava na mesa ao seu lado, como se para provar suas habilidades. Parecia algo estúpido; e aparentemente não trazia uma resposta adequada ao seu dilema.
— Às vezes não enxergamos o nosso próprio talento. Talento este que podemos ou não explorar em nossa vida profissional. Mas isso depende de nossas vontades, o que sentimos que devemos ou não fazer — Edith acariciava o gato. — Dione, querida, você está soltando muito pelo!
Lucas ficou com aquilo na cabeça, mas nada disse. Observou a gata espreguiçar-se no colo da mulher, sonolenta.
— Eu não sei o que fazer da vida — o rapaz insistiu.
— Conheça-se, Lucas. É por isso que estou aqui, para ajudá-lo nisso — Edith disse. — Não se apresse, você descobrirá. Está indo muito bem, saiba disso. Reconheça a sua evolução. Percebe o quanto já alcançou?
Ele assentiu. Queria contar a ela que havia conseguido falar com a atendente da padaria, e até mesmo cortado o cabelo sozinho. Que havia falado com uma garota aleatória na praia. Que havia conseguido falar uma palavra para a moça que gostava — e que ele não havia contado sobre ela. Talvez contasse depois. Sentia certo orgulho de tudo aquilo, e com certeza a psicóloga ficaria feliz por ele.
No final da consulta, Edith o acompanhou até o portão. Lucas já podia ver o carro de Pedro entrando na rua para buscá-lo, como de costume. Antes de passar pelo portão, o rapaz parou e mais uma vez sentiu-se congelado. Mas ele precisava falar.
— Edith — Lucas falava tão baixo que temeu que a mulher não escutasse. — Obrigado.
— De nada, Lucas — ela sorriu, segurando a gata manhosa no colo. — Não esqueça de se agradecer também. Te espero semana que vem!
Lucas sorriu de volta, assentindo. Depois daquela conversa ele soube, no fundo do seu ser, que nada mais seria como antes — e no futuro, seguindo o conselho de Edith, agradeceria a si mesmo por isso.
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