37. Águas do passado
𓅯 Capítulo 37 | O Canto dos Pássaros 𓅯
Alberto finalmente acertara comprando marmitas com uma deliciosa comida para o almoço. Lucas fez questão de elogiar — apesar de não ter sido obra do pai, e sim do restaurante — e Luan comeu em silêncio, sentado no sofá da sala e assistindo à televisão. O pai parecia um pouco melhor, apesar de ainda apresentar sinais de ressaca. Lá fora, uma fina e gélida chuva caía do céu; e não havia muito o que fazer a não ser ficar em casa. Mas Lucas não pretendia ficar no apartamento durante toda a tarde. Ele gostou de ter saído sozinho de manhã. Sentia-se diferente; ainda um pouco surpreso consigo mesmo por ter tido coragem de falar na padaria. Algo dentro dele vibrava: Lucas desejava fazer mais. Ir além, mesmo que suas tentativas mais básicas lhe causassem desconforto.
Depois do almoço, Luan foi para o quarto e Alberto ocupou o seu lugar na sala.
— Acho que vou caminhar um pouco — Lucas anunciou, colocando uma blusa de frio. — A chuva parou.
— Ok — Alberto relaxou no sofá, largando o controle remoto. — E eu vou tirar uma soneca.
Um minuto depois, Lucas já estava saindo pelo portão do prédio e atravessando a rua em direção à praia. Sem rumo e sem compromissos, ele acompanhou as pessoas dedicadas às suas caminhadas matinais. Algumas delas levavam seus cachorros, outros, seus companheiros ou amigos. Pela primeira vez, o rapaz não se sentiu mal por estar sozinho. Ele queria estar sozinho. Achou que o tédio e o clima invernal o traria ainda mais melancolia e desespero, mas não foi isso o que aconteceu. Era como se Lucas, ao deixar com que sua mente mostrasse os acontecimentos daquele ano, visse tudo por uma outra perspectiva — como se estivesse vendo um filme. Algumas coisas ainda lhe traziam dor e angústia; como pensar em Beatriz e na última vez que a viu. Ou em seu futuro, em suas poucas conquistas pessoais.
No entanto, naquele momento, não havia muito o que fazer. Apenas andar, encolhendo-se todas as vezes que batia o vento, trazendo ainda mais a maresia. Observou as pessoas, a paisagem, os inúmeros prédios e uma roda gigante à distância. Até que, olhando as lojas de bugigangas e outros comércios do outro lado da rua, ele parou. Entre uma lojinha de pranchas e brinquedos infantis e uma lanchonete, havia um salão que atendia homens e mulheres. Lucas passou a mão pelos cabelos, considerando a ideia que veio subitamente até ele: entrar no salão para fazer um corte. Afinal, aquelas pessoas não o conheciam. Não era o cabeleireiro que vez ou outra Lucas ia com sua mãe; aquele que fazia brincadeiras sobre sua mudez. Não... Ninguém ali o conhecia. Mas se ele, pela primeira vez, fosse cortar o cabelo sozinho? Lucas parou diante da faixa de pedestre, e os carros pararam.
— Vamos, Lucas — ele sussurrou para si mesmo. — Não deve ser tão difícil assim.
Mas foi difícil. Quando ele entrou no salão, um sino soou e todos olharam para ele. Lucas teve vontade de sair correndo e jogar-se no mar. Mas ele não fez isso — sabia que não teria mais coragem de passar perto daquele lugar caso fizesse aquilo. Um homem de cabelos e barba grisalhas, muito bem feita, aproximou-se dele com um sorriso caloroso.
— Boa tarde, rapaz! Como posso ajudá-lo? — perguntou o homem. Como de costume, o coração de Lucas começou a disparar. As palmas de suas mãos ficaram úmidas de imediato, e ele começou a ficar tonto. Sem muita alternativa, Lucas colocou a mão sobre o topo da cabeça.
— Cortar o cabelo? — o homem inclinou-se para ele, claramente esperando uma resposta verbal. Começou a fazer sinais com a mão, enquanto falava: — Você é surdo? Eu sei linguagem de sinais.
— Não — Lucas soltou, a voz rouca e trêmula. — Eu... Preciso cortar. O cabelo.
— Ah! — o homem abriu ainda mais o sorriso. — Sente-se aqui, rapaz. Qual é o seu nome? Aceita um cafezinho, ou uma bala?
— Lucas — o rapaz sentou-se no lavatório, tenso. — Não. O-obrigado.
O homem assentiu e começou a lavar seus cabelos, e Lucas sentiu-se um pouco sufocado em ficar tão inclinado para trás, mas não ficou por muito tempo ali. Poucos minutos depois, já estava diante do espelho, com os cabelos úmidos e bagunçados. A franja cobria as suas sobrancelhas e suas orelhas, as mechas totalmente desgrenhadas. Ao seu lado, outro homem cortava os cabelos de uma moça. Ir ao salão parecia ser tão comum para as pessoas; quase banal. Mas para Lucas, aquilo estava sendo uma loucura.
— Que tipo de corte você quer? — o cabeleireiro perguntou, cobrindo o corpo do rapaz com uma capa. — Gostaria de ver o catálogo?
Lucas assentiu, levemente enjoado. Por baixo da capa, suas mãos estavam inquietas. O homem mostrou-lhe um catálogo com cortes de cabelo curto, e o rapaz procurou por algum que o agradasse. Não fazia a menor ideia de qual corte ficaria bom nele. O cabeleireiro, notando a sua indecisão, deu-lhe algumas sugestões de acordo com o formato de seu rosto. Então, Lucas apontou para um deles; um corte que deixava a testa e as orelhas à mostra. Seria uma mudança e tanto, mas aproveitou a sua ousadia momentânea.
— Clássico comportado! Boa escolha. Não é um corte da moda, mas é muito bonito — o homem pegou uma tesoura e um pente, e Lucas prendeu a respiração quando ele começou a cortar.
O rapaz fechou os olhos enquanto o homem trabalhava no corte. Seu coração aos poucos voltava à frequência normal. Ainda não acreditava que estava fazendo aquilo. Sozinho. E falando. Ainda sim, agradeceu mentalmente ao homem por não lhe fazer muitas perguntas ou puxar assunto. Ele estava concentrado em seu trabalho, penteando e cortando as mechas loiras escuras de Lucas com rapidez e habilidade. Quando terminou, Lucas estranhou a sua própria imagem no espelho. Era outra pessoa. Não havia reparado o quanto as suas sobrancelhas alouradas marcavam bem o seu rosto, e o quanto seu maxilar parecia mais quadrado.
O cabeleireiro, seguindo o modelo do catálogo, penteou os cabelos de Lucas, deixando-o pronto para qualquer ocasião formal que por acaso viesse a ter. Depois de pagar, o rapaz saiu do salão ainda um pouco atordoado. Estranhava a ausência dos cabelos na testa e na nuca, sentindo-se um tanto exposto. Passava pelas pessoas, envergonhado, mas todas elas estavam ocupadas demais fazendo suas caminhadas matinais ou indo ao trabalho. Ninguém ligava para ele.
Quando o prédio ao qual estava hospedado ficou visível, Lucas parou quando viu o irmão sentado na areia da praia, observando o mar. Decidido, o rapaz foi até ele. Luan segurava um pacote de batatas lisas e mastigava-as, distraído, quando Lucas parou ao seu lado.
— O que está fazendo aqui? — perguntou o mais velho.
Luan não olhou para ele, enfiando mais batatas à boca.
— Estou esperando a deusa Afrodite sair do mar para me beijar — murmurou.
— Ela não vai querer te beijar — Lucas brincou, sentando-se ao lado do irmão.
Luan estava prestes a dar uma resposta atrevida; quem sabe querendo citar os seus dotes divinos, quando virou-se para o irmão e fitou o alto de sua cabeça.
— Ah! Você cortou o cabelo! — ele exclamou, surpreso.
Lucas deu um sorrisinho, erguendo a mão para pegar uma batata. Luan estendeu o pacote para ele, ainda encarando-o.
— Cortei — Lucas disse o óbvio. — Alberto está em casa?
— É claro. Assistindo à televisão e com cara de bunda — Luan fez uma careta. — Acho melhor trancarmos ele em casa, antes que faça merda de novo.
Lucas suspirou, desejando poder dar-lhe um sermão. Mas conhecia o irmão o bastante para saber que aquilo não daria certo. Tinha que tomar cuidado com Luan. Não queria brigar com ele, mas também não queria que as coisas ficassem daquele jeito durante toda a viagem.
— Por que está fazendo isso com ele, Luan? — Lucas perguntou. — Se o odeia tanto, por que veio a essa viagem?
O rapaz sabia a resposta, mas queria ouvi-la da boca do irmão.
— Você se esqueceu de tudo o que ele fez? — Luan o questionou em tom colérico. Lucas não olhou para ele. — Você sabe por que eu vim. Para fazer com ele o que ele fez comigo. Ignorá-lo, ser grosseiro, abandoná-lo quando ele mais precisa.
— Você não está sendo melhor que ele agindo dessa forma... — Lucas começou, mas o irmão o interrompeu.
— Mas eu sou como ele, não sou? É o que todos falam. "Você tem a personalidade do seu pai, Luan!" "Você tem o rosto do seu pai, Luan!" — o caçula proferiu, gesticulando. — Eu só espero não ser uma porcaria de pai como ele. Não, aí eu serei diferente.
Lucas baixou a cabeça. Sabia do que ele estava falando e não poderia julgá-lo tão rudemente. Assim como Lucas tinha suas dores, seus ressentimentos e tristezas, Luan também as tinha — e Alberto tinha muita culpa nisso, ele sabia. No entanto, não concordava com o comportamento do irmão. Aquilo não melhoraria as coisas.
— Eu compreendo — Lucas disse calmamente. — Mas é inútil. É inútil tentar machucá-lo. Não vê que ele já está arrependido o bastante?
— Por que está do lado dele, Lucas? — Luan enfiou uma batata na boca, mastigando-a com violência. — Hein?
— Não estou do lado dele. Não estou do lado de ninguém — o rapaz olhou para o irmão. Queria perguntar: Você nunca fez uma bobagem na vida e temeu nunca ser perdoado? Mas sabia que aquilo só pioraria as coisas. Para Luan, soaria algo como: Aceite o que ele fez e pare de drama!, o que não era a intenção de Lucas. Então, escolheu as palavras com calma, demonstrando que entendia o lado dele: — Eu estava lá quando as coisas aconteciam, não lembra? Eu me recusava a deixar nossa mãe sozinha cuidando de você. Ficava com muita raiva de Alberto, muita raiva. Mas tem coisas...tem coisas que não podemos mais ver com os olhos de uma criança, ou agir como uma.
Lucas esperou que Luan gritasse com ele a qualquer momento, argumentando contra qualquer coisa que o mais velho dissesse. Mas isso não aconteceu. Luan continuou fitando o oceano, parecendo indiferente; quem sabe ainda aguardando que uma bela mulher saísse do mar para acalentá-lo.
O rapaz arriscou-se a apanhar mais uma batata. Por trás daquela expressão fria e adulta de Luan, Lucas ainda via uma criança machucada. Por isso não o culpava; não podia culpá-lo.
— Acha que eu devo perdoá-lo? — Luan finalmente disse, ainda ríspido. — Você o perdoaria?
Lucas passou a mão pela areia úmida, deixando com que seus grãos caíssem por entre os seus dedos.
— Não sei... — ele admitiu. — Eu não sei. Não me conheço o suficiente. Mas...hum, eu saberia que a vingança não é a melhor solução.
— Então qual é a melhor solução? — Luan perguntou. Lucas ficou um pouco surpreso ao perceber que, por trás da insolência, havia uma dúvida verídica. No entanto, o rapaz também não sabia a resposta. Não sabia o que responder sem que soasse simplista demais. Edith certamente daria uma resposta mais sábia.
— Não quero te dar uma lição de moral. Eu também estou tentando lidar com os meus problemas — ele falou. — Cada um lida de uma forma. Eu não sei o que você sente.
— Alberto também o rejeitou — Luan lembrou-lhe. — "Um doente e um mudo! O que você quer que eu faça, Miriam?" Não se lembra das coisas que ele dizia? Eu me lembro! E olha que sou mais novo do que você.
— Eu me lembro, Luan. Eu... — Lucas não queria se recordar daquelas coisas. Luan se lembrava mais detalhadamente, o que era curioso. — Eu não quero guardar rancor. Isso me faz mal. Pesa o meu estômago.
As batatas de repente não eram mais tão apetitosas. Luan amassou o pacote, enfiando-o no bolso.
— Pois bem — o caçula proferiu, apoiando os cotovelos nos joelhos. — Eu guardo e não consigo sair disso. A vontade que eu tenho é de machucá-lo por dentro até fazê-lo sangrar. Deixá-lo lá, sangrando e vomitando, como ele me deixava.
Os olhos de Luan estavam marejados, o que era inédito. Marejados de dor e raiva, muita raiva. Lucas trincou o maxilar, sentindo a angústia do irmão. Queria poder fazer algo para resolver aquilo, mas sabia que não dependia dele. Pela primeira vez em muitos anos, Lucas sentiu aquela antiga preocupação pelo irmão; redescobrindo o seu afeto por ele.
— Ainda não entendo... Por que veio a essa viagem, se estar ao lado de Alberto só vai te trazer lembranças ruins? — Lucas insistiu, tentando expressar-se da forma mais gentil possível.
— Por que eu sou como ele — Luan disparou, levantando-se bruscamente. — Gosto de me machucar e machucar os outros. É isso. Sou tão covarde quanto ele.
Sem dizer para onde ia, Luan saiu caminhando pela areia com passos bruscos. Lucas ficou sozinho, contemplando o mar e deixando com que as ondas levassem as palavras de Luan para longe. Mas as ondas sempre voltavam. Iam e voltavam; com lembranças infelizes das águas do passado.
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