36. Ressentimentos e pizzas
𓅯 Capítulo 36 | O Canto dos Pássaros 𓅯
Era perceptível o quanto Alberto se esforçava para abrandar a situação, mas nada parecia favorável. A pizza que o pai pedira chegou à noite, fria e dura, e o queijo sobre a massa mal dava para saciar a fome de um rato. Lucas, que estava com muita fome, comeu duas fatias tentando não expressar desagrado. Mas Luan, que não fazia questão de disfarçar, olhou para a pizza e fez uma expressão de nojo. Lucas tinha certeza de que, se não fosse pelo estômago clamando por um pedaço de comida, o caçula se recusaria a colocar aquilo na boca.
Lucas teve que intervir mais uma vez quando Alberto ligou para a pizzaria, xingando o atendente. Ele queria poder falar ao telefone, reivindicando educadamente seu direito de degustar uma boa pizza, mas Lucas não conseguia. Então, pediu ao pai que não ofendesse o atendente; que só estava fazendo o trabalho dele.
— Não, eu não quero outra! — Alberto vociferava ao telefone, desprezando o conselho de Lucas. — Olhe, enfie essa porcaria onde quiser. Vão se foder!
O pai encerrou a ligação, fechando a tampa da embalagem da pizza com violência. Todos estavam estressados demais pela viagem e pela limpeza que fizeram no apartamento; por isso, Lucas aconselhou-o a descansar um pouco. Sabia que seria assim por toda semana: o rapaz tentando abrandar as explosões do pai (e de Luan), matando baratas e comendo fast-food. Tentou não ficar desanimado ou desejando voltar para casa, pois seria inútil. Ele já estava ciente de que não seria uma viagem normal. Primeiro, porque estavam na praia no inverno. Segundo, porque estava com duas pessoas que compartilhavam dos mesmos genes, mas mal conversavam entre si.
Estranhando as camas e com frio, Lucas e Luan demoraram a dormir. O caçula estava deitado na cama de cima da beliche, remexendo sem parar; e por um momento Lucas temeu que o estrado da cama caísse sobre ele. O irmão não parava de espirrar. Mesmo com tudo limpo, sem poeira e com cobertas novas, o cheiro do mofo permanecia. Lucas levantou-se e abriu um pouco a varanda.
— Eu vou morrer congelado — Luan reclamou, fungando.
— É só um pouco. O cheiro vai nos fazer mal... Principalmente pra você — Lucas respondeu, erguendo a cabeça para o irmão. — Não quer ficar embaixo? O ar circula melhor.
— Não — Luan balbuciou. — Se eu ficar doente, a culpa é de Alberto.
— Ele não sabia que o apartamento estava assim — Lucas falou, exausto. Voltando para a cama, encolheu-se nas cobertas e sentiu o ar úmido adentrar pelo aposento. O cheiro da maresia e o som do mar invadiu o pequeno quarto.
— É claro que ele sabia — Luan rebateu. — Alberto quer sempre economizar, economizar e economizar. Mas sempre está duro. Sempre tem ótimas desculpas — havia muita raiva na voz do irmão, que falava mais alto que o necessário. Lucas quase mandou-o falar baixo, mas sabia que Luan fazia aquilo de propósito.
Lucas não retrucou. Deitou a cabeça no travesseiro, olhando para a varanda. A escuridão além mar era um tanto assombrosa, e ele não estava acostumado com o som incessante das ondas indo e vindo. Vencido pelo cansaço, Lucas adormeceu minutos depois; sentindo os pulmões aliviados e o aroma familiar da fronha que havia trazido de casa. Poderia ter dormido mais tempo, aproveitando o sono pesado que lhe abateu, mas o rapaz acordou sobressaltado quando ouviu um estrondo vindo de alguma parte do apartamento.
Com o coração disparado, Lucas sentou-se na cama. Viu as pernas de Luan penduradas na cama de cima, também acordado. Olhou as horas no celular: eram quatro da manhã.
— O q-que é isso? — Luan gaguejou. Em seguida, falou baixinho, vendo que o mais velho se aproximava da porta: — Lucas...esse lugar é assombrado. Eu tenho certeza. Sai daí!
Sonolento, Lucas olhou para o irmão e maneou a cabeça.
— Deve ter caído alguma coisa — sugeriu — Vou dar uma olhada.
Sozinho, Lucas acendeu a fraca luz do corredor e foi até a sala. Alberto, inclinado sobre o sofá, havia derrubado a televisão. Um cheiro azedo de álcool penetrou nas narinas de Lucas, fazendo-o levar a mão no rosto. O pai, em uma posição estranha sobre o sofá, balbuciava frases indecifráveis. Estava totalmente bêbado. Como se já não bastasse, havia vomitado no tapete. Lucas ficou irritado. Por que Alberto sempre piorava as coisas?
Apertando os punhos, controlando a raiva que crescia dentro dele, o rapaz voltou para o quarto que dividia com o irmão. Luan ainda estava na cama, os olhos arregalados fixados na porta.
— Alberto derrubou a televisão — Lucas anunciou. Da sala, ouviram outro barulho; dessa vez de um corpo caindo no chão. — E está bêbado.
— O quê? — Luan inclinou-se na direção do irmão. — Ele saiu pra encher a cara?
Incrédulo, Luan foi até a sala e tampou o nariz. Alberto não estava mais no sofá — havia caído no tapete, expelindo mais bebida. Luan olhou para a janela da sala, talvez cogitando lançar-se prédio abaixo ou quem sabe vomitar também. Qualquer que fosse suas intenções, Lucas agradeceu mentalmente pelas grades de ferro e agachou-se ao lado do pai, prendendo a respiração.
— Devemos deixá-lo com a cara enfiada no vômito? — Luan sugeriu, colérico. Lucas puxou o pai, deixando-o sentado com as costas apoiadas na base do sofá.
— Não faça isso — Lucas pediu. — Me ajude a levá-lo para o banheiro.
— Haalnjower? Jiturinshsd — Alberto balbuciava, colocando a mão sobre o estômago. — Deeskcolpa, deskdkcooolpa.
— O que é isso? Norueguês? — Luan franziu a testa, debochado. Ignorando o pedido do irmão, permaneceu onde estava.
Suspirando alto, Lucas arrastou o pai pelo apartamento, sozinho, até chegar ao banheiro. Colocou-o debaixo do chuveiro, arrancando a blusa de botões com certa rispidez. Não julgava o desprezo do irmão para com o pai; por mais que soubesse que aquilo não estava certo. O próprio Lucas estava irritado. Era como se voltassem ao tempo, quando Alberto ainda se comportava de forma ainda mais estúpida.
Luan parou à porta do banheiro, os braços cruzados e o olhar rancoroso.
— Olha, se não for ajudar, saia daqui! — Lucas jogou a camisa molhada do pai para o lado. Alberto tentou se levantar, mas o rapaz impediu-o. — E você fique quieto!
— Qual é aquela frase mesmo? — Luan olhou para o teto, fingindo esquecimento. — "O que você planta, você colhe." É isso mesmo. Que coisa! E eu não estou falando da ressaca. Estou falando de carma.
— Luan! — a voz de Lucas reverberou pelo banheiro. — Saia!
Com um ar satisfatório e arrogante, Luan se retirou. Lucas apoiou a testa nos ladrilhos da parede, observando o pai abaixo dele soltar um arroto. Queria poder chorar de raiva, de cansaço, de arrependimento. Onde ele estava com a cabeça ao aceitar ir para aquela viagem estúpida? Ele não sabia exatamente porque estava ali, mas sabia porque Luan estava. O irmão resolvera ir por vingança, por ressentimento; e sabia que aquela batalha inútil devido a mágoas do passado permaneceria até a semana seguinte.
— L-lucas — o pai ainda enrolava as palavras. — Me d-desculpe? D-deesculpa.
Lucas suspirou mais uma vez, controlando a cólera. Sabia que Alberto não estragava as coisas de propósito; e sabia o motivo da bebedeira. O pai fazia aquilo quando ficava deprimido. Tentando compreender a situação, Lucas limpou-o o máximo que conseguiu e o levou até a cama. Suas costas e todos os meus músculos doíam, mas sabia que estava fazendo a coisa certa. O pai adormeceu após tomar alguns litros de água, mas Lucas não teve a mesma sorte. Teve que limpar a sujeira da sala, enxugar o banheiro e carregar a pesada televisão de volta ao seu lugar. Quando se deu conta, já eram seis da manhã.
Sem alternativa, Lucas decidiu que era melhor fazer um café para acordar de vez. Como um zumbi, Alberto surgiu na cozinha de repente, arrastando os membros inferiores com dificuldade. Seus olhos estavam inchados; seu aspecto era péssimo. Parou diante da bancada onde Lucas coava o café, encarando-o com os olhos tristes.
— Me perdoe — o pai falou, a voz cansada. — Eu...eu havia parado de beber. Mas você sabe, temos recaídas. Eu estava indo bem...
— Esquece, pai — Lucas desviou o olhar, pegando duas xícaras. Ainda estava um pouco ressentido, mas sabia que era inútil discutir. Bebeu um pouco de café com leite, oferecendo a Alberto.
— Seu café é melhor que o meu — o pai murmurou, dando um grande gole. Seus olhos se abriram um pouco mais, revelando-se avermelhados. — Aposto que aprendeu com o seu padrasto.
— Também. Mas aprendi a fazer com Miriam — Lucas disse.
— Hum — Alberto apoiou-se na bancada, como se não suportasse o peso do próprio corpo. — Como vão as coisas na casa de vocês? Miriam ainda trabalha?
— Como nunca — Lucas não gostava de falar de sua mãe para Alberto. — Acho que vou comprar pães. Tem uma padaria aqui perto?
— Na esquina mais próxima — Alberto falou, observando o filho sair da sala. Parecia não acreditar que ele seria capaz de comprar um mero pão. Nem mesmo Lucas. O rapaz só queria sair um pouco dali; daquele apartamento abafado que já lhe tirara energia o suficiente.
Respirando fundo, ele andou pelas ruas desconhecidas à procura de uma padaria. Muitos prédios compunham o litoral da cidade, e a areia não era tão limpa como nas praias do interior. Observando o mar cinzento, o rapaz conferiu o dinheiro no bolso, e seu ventre gelou quando deu-se conta do que estava prestes a fazer. Você só vai comprar pão, ele disse para si mesmo. Não vai precisar falar nada. Pegue os pães, vá ao caixa e entregue o dinheiro. Não tem segredo.
Um pouco trêmulo, ele achou a padaria; muito próxima do prédio a qual havia saído. Desconhecendo o lugar, procurou pelos pães, e viu um senhor sair do balcão com um pacote nas mãos. O cheiro de pão recém assado fez com que o seu estômago roncasse um pouco.
— E você, moço? Posso ajudar? — a mulher atrás do balcão olhou diretamente para ele. Lucas ficou petrificado por um momento. Ele não teria que pegar os pães, tinha que pedir para pegá-los. Lucas estava prestes a sair da padaria, ignorando a mulher, quando lembrou-se de algo que Edith havia dito. As pessoas desconhecidas literalmente não sabem quem é você, e é muito provável que o verá apenas uma vez. Tentar falar com essas pessoas seria menos desconfortável para você?
Lucas engoliu em seco pela décima vez. Olhou para a moça, que o encarava com dúvida. Estava apenas fazendo o seu trabalho; atendia muitas pessoas por dia e não era de sua cidade. Com um sorriso, o rapaz esfregou os olhos — não precisou fingir que estava com muito sono — e se aproximou. Abriu a boca, mas nenhum som saiu. Ele não conseguiria... Ele não ia conseguir. Seu coração começou a disparar, e ele fechou os olhos com força.
— Oito pães — ele praticamente sussurrou. — P-por favor.
A moça assentiu como se nada de mais houvesse acontecido. Pegou os pães, colocando-o em um pacote, e entregou a Lucas. Ele maneou a cabeça em agradecimento, tremendo dos pés à cabeça. Mal conseguia acreditar que sua voz simplesmente havia escapado de sua boca. Quando chegou ao caixa, o homem o atendeu com um bom dia, e Lucas respondeu com um sorriso nervoso. Poderia ter lhe respondido, Lucas, condenou-se, percebendo de repente que estava se pressionando demais. Um passo de cada vez, a voz de Edith vinha em sua mente junto com o bater das ondas do mar à distância. Já fora do estabelecimento, ele teve que parar no meio do caminho para respirar fundo, controlando a ansiedade; quase deixando os pães caírem no chão.
Lucas olhou para a areia que ele ainda não havia pisado, para o mar que ainda não havia se aproximado. A umidade ajudou-o a respirar melhor, e o cheiro da maresia era reconfortante. O rapaz agarrou um dos pães dentro da sacola, mordendo-o devagar. Aos poucos, a fome e o peso no estômago diminuíram. Ele havia falado com a atendente da padaria. Quando se deu conta daquilo, um misto de nervosismo e euforia o invadiu. Uma coisa tão pequena, mas que parecia tão impossível antes.
À beira da praia, o vento frio deixava seu nariz gelado — mas o rapaz não se importou em ficar um pouco ali, arrancando os tênis e sentindo a areia úmida sob seus pés, olhando para o além mar e saboreando um pão quentinho e saboroso de uma cidade desconhecida.
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