33. Sonhos singelos

𓅯 Capítulo 33 | O Canto dos Pássaros 𓅯

O final do semestre universitário retirou todo o tempo que tinha para pensar ou para fazer qualquer coisa durante as tardes. Lucas e Wallace empenharam-se nos estudos individuais, às vezes com a ajuda de Bernardo; que literalmente os salvaram de possíveis reprovações. Lucas gostava da biblioteca, mas Wall preferia estudar nas mesas do campus, onde poderia falar à vontade durante os intervalos e beber refrigerante. O garoto não conseguia manter a concentração por mais de meia-hora — e até mesmo Lucas pegava-se, às vezes, pensando em coisas que nada tinham a ver com o que estava estudando. Enquanto ele pensava em coisas da vida, Wall distraía-se com uma simples formiga que carregava uma folha para sua casa ao lado da árvore.

— O que será que tem lá dentro? — Wall perguntou, olhando para o formigueiro. — Será que é muito fundo? Ah, Lucas! Você já assistiu Lucas, um intruso no formigueiro?

Lucas arqueou as sobrancelhas, e Wall soltou uma risada.

— Era um dos meus filmes favoritos! — o garoto disse, contando sobre o enredo do filme e como o protagonista, o menino Lucas, foi parar dentro de um formigueiro. — Moral da história: não faça sacanagem com as formigas. Você pode virar uma delas. Ei, vamos fazer uma pausa?

Lucas olhou para ele, querendo dizer: Já não estávamos fazendo? Wall levantou-se e se espreguiçou, dizendo que compraria algo para eles comerem. O rapaz sentiu seu pescoço dolorido, os olhos cansados de tanto ler — ou tentar ler. Pensou na primeira prova que teria que fazer no dia seguinte, lamentando por ter que desmarcar a consulta com Edith para mais tarde. Era estranho, mas ele passou a gostar de ir às consultas aos sábados de manhã.

O fim de semana chegou mais rápido do que ele gostaria. Estava um pouco mal-humorado por não ter dormido muito bem, mas seguiu para a faculdade meia-hora mais cedo. Wallace já estava lá, ouvindo música, parecendo despreocupado com a primeira prova que teriam que fazer.

— Quer saber? Eu não tô nem aí se eu me der mal — Wall também não estava com um ótimo humor. — Quem quer fazer prova no sábado?

Lucas deu de ombros e o acompanhou até a sala onde fariam a avaliação. Durante os primeiros minutos, o rapaz ficou tão nervoso que não conseguia raciocinar. Sua respiração falhava, e ele temeu ter uma crise novamente. Culpou-se mais uma vez por ter faltado tantas aulas e não ter estudado o suficiente; mas a prova não estava tão fácil assim. Muitos alunos saíram um pouco abalados, e Wall entregou-a com questões em branco. Lucas foi um dos últimos a terminar, com as costas úmidas e a respiração entrecortada. Foi um alívio sair daquela sala e deparar-se com o ar do campus, onde esforçou-se para controlar e acalmar os próprios pulmões. Não vira Wall em parte alguma — provavelmente fora embora, ansioso demais para aproveitar o fim de semana longe da universidade.

Ao chegar em casa, viu que Wallace havia mandado mensagens. Estava sentado diante da escrivaninha, observando a movimentação da rua através da janela, quando voltou a atenção para o aparelho.

Hoje, 10:41 a.m:

Wall: Lucas meu brother, foi mal não ter te esperado sair. Um amigo veio me buscar

Wall: Como vc se saiu? Eu achei difícil pra caramba

Lucas Evans: Oi, Wall. Acho que fui mais ou menos

Os dedos do rapaz pairaram sobre o teclado, refletindo se deveria dizer o que estava prestes a dizer. Não costumava elogiar as pessoas, receando ofendê-las de alguma forma. No entanto, a tarde em que ouviu Wall cantar com Susane ainda voltava em sua memória; deixando-o com uma sensação agradável.

Lucas Evans: Tem uma coisa que eu queria ter te dito antes

Lucas Evans: eu estava lembrando daquele dia em que estávamos na faculdade de artes, com Susane

Lucas Evans: você canta muito bem

Lucas Evans: muito mesmo. Já pensou em ser cantor?

Wall: Ahhh, obrigado, obrigado 😁😁

Wall: Ei, eu tinha uma banda, esqueceu? Eu era o vocalista

Wall: Não sei se canto tãão bem assim, mas era o meu sonho ser cantor!

Wall: na verdade, ainda sonho com isso

Wall: AAAAAAAAA eu fiquei empolgado

Wall: estou me segurando para não contar

Lucas abriu um sorriso de forma automática. Ele podia quase escutar a voz de Wallace falando aquelas coisas.

Lucas Evans: O quê? Agora estou curioso

Wall: foi mal, não posso falar agora

Wall: sabe a música que a Susane cantou?

Wall: Eu que compus

Wall: oq achou?

Lucas Evans: Eu achei demais, Wall. A letra e a melodia são muito bonitas

Wall: valeu!

Wall: não acredito que vou fazer isso

Wall: 🎤 (Mensagem de voz)

Lucas colocou os fones de ouvido, conectando-os ao celular. Quando reconheceu a melodia — a mesma que Susane havia tocado — já soube que se tratava daquilo que Wallace chamava de demo*; uma gravação totalmente caseira. Apenas o violão e a voz que ficara ainda mais audível em primeira voz. A segunda parte era em inglês. O timbre do garoto soava tão maduro, tão certo, que era possível sentir a emoção por trás daquela letra.

Antes de lhe dizer qualquer coisa, Lucas ouviu a música mais uma vez — mas sabia que não seria a última.

Lucas Evans: Wallace, por um momento eu esqueci de todos os meus problemas

Lucas Evans: vc é uma estrela, meu brother

Wall: Valeu, valeu

Wall: eu fazia aula de canto, mas tive que parar. Então não sei se tô muito bem agora

Wall: você gostou mesmo?

Lucas Evans: por que eu mentiria?

Wall: seilá

Wall: pra me agradar?

Lucas Evans: Eu não falo para agradar. Você tem talento, Wallace

Lucas Evans: posso mostrar para o meu padrasto? Ele é músico

Wall: nãããããããão

Wall: que vergonha

Wall: espera, seu padrasto é músico??

Lucas Evans: ele é pianista

Wall: vc não me disse isso

Wall: aí, e quando vai me mostrar seus quadros?

Wall: vc disse que pintava

Lucas levantou os olhos, encarando o cavalete vazio do outro lado do quarto. Suspirando, ele respondeu:

Lucas Evans: faz tempo que eu não pinto mais

Wall: mas vc desenha, eu vi

Wall: já pensou em desenho digital?

Lucas Evans: não tenho mesa digitalizadora

Wall: vc vai fazer a capa do meu primeiro álbum!! Tá contratado

Lucas Evans: qual vai ser o meu pagamento?

Wall: coxinhas e suco natural da minha mãe

O rapaz riu sozinho. Quando se deu conta, havia entrado no sonho de Wallace — no singelo e utópico sonho de Wall, que havia confiado a ele uma de suas músicas mais íntimas. Viajavam por um futuro que para eles era totalmente possível naquele momento. Lucas se surpreendeu quando percebeu, no meio da conversa, que também tinha sonhos — mesmo que fossem nebulosos, ainda sim eram sonhos.

✦✦✦

Na segunda-feira, o grupo de Wallace foi o primeiro a apresentar o seminário. Lucas sentiu-se nervoso só de olhá-lo diante de mais de quarenta alunos, trêmulo e com o rosto sonolento. Parecia distante demais dos outros colegas do grupo, que se posicionaram um ao lado do outro. Lucas havia conversado com Wall na noite anterior, tentando acalmá-lo, mas não sabia se tinha sido útil. Finja que está se apresentando em um palco e nossos colegas são seus fãs, ele havia dito. Wallace mandara um áudio, rindo e cantando uma música (que provavelmente havia acabado de inventar) sobre o tema do trabalho. Também disse que não costumava sentir-se tão nervoso e envergonhado quando apresentava trabalhos na escola. Eu era considerado o palhaço da turma, e agora eu sou o ruivo esquisito!, ele mandou.

Lucas ainda pensava sobre aquela frase. Será que Wall era considerado esquisito porque andava com ele? O rapaz não duvidava que aquilo fosse verdade. Mesmo de longe, sentado no conforto de sua carteira ao lado da janela, Lucas tentou motivá-lo. O amigo olhou para ele, dando um sorriso amarelo, e Lucas ergueu o punho fingindo que estava segurando um microfone. Finja que vai cantar! Ele queria dizer. Wallace deu início à apresentação — talvez por escolha dele, para que terminasse sua parte logo — e Lucas achou que ele se saiu muito bem. Gaguejou algumas vezes, sempre trocando o peso das pernas e amassando a barra do moletom. Mas as palavras saíram claras e precisas, e o papel com as anotações que segurava pareceu lhe dar mais confiança. Lucas nunca conseguiria fazer aquilo — só de pensar em ficar em pé diante de tanta gente já causava-lhe dor de barriga.

Quando tudo terminou — fora uma apresentação de aproximadamente vinte minutos — Wallace praticamente correu para a sua carteira, soltando o ar dos pulmões. O rapaz pôde sentir o seu alívio. Por cima dos ombros, Lucas olhou para ele e sorriu, como se dissesse: você foi muito bem!

Valeu, Lucas meu brother — Wall sussurrou, o rosto ruborizado como se tivesse corrido sem parar pelo enorme campus. Ele ainda se preocupava com os pontos que Lucas iria perder por não ter entrado em nenhum grupo, mas o rapaz garantiu-lhe que já estava fadado às notas vermelhas.

Com isso, estudaram feito loucos durante toda a semana para a próxima prova. Apesar da exaustão, Lucas gostava de ficar em Belmontine durante as tardes com Wall. Afastar-se de casa era afastar-se da janela de seu quarto, onde procurava a todo momento por Beatriz; remoendo o que havia acontecido e lamentando-se pela sua ausência. Com a companhia de Wall e os estudos, era como se Lucas afastasse um pouco aquela angústia que sentia sempre que pensava na moça. Assim, naqueles últimos dias de aula, passou a almoçar com Wall no restaurante universitário. Depois, brincavam com os gatos que acabaram se alojando no pátio e escolhiam o lugar ideal para estudarem. Às vezes, Wall tirava um cochilo, e um dia Lucas teve a brilhante ideia de desenhá-lo. A cena era perfeita: Wallace estava deitado sob a árvore, a mochila servindo como travesseiro, o corpo torto e a boca aberta. A touca que usava na cabeça cobriam-lhe os olhos, e uma latinha de suco estava próxima de sua mão. Concentrado, Lucas retratou tudo com detalhes — desde os cachos saindo da touca até a marca do suco. A boca aberta e a posição das pernas pareceu-lhe ainda mais cômico.

Quando o garoto finalmente despertou, Lucas mostrou sua obra de arte. Wall arregalou os olhos, expressando surpresa e incredulidade.

— Ah! Por que não fez isso quando eu estava em uma posição mais sexy? — ele observou os detalhes do desenho. — Minha boca está maior que o normal! Tenho certeza que foi proposital. Oh, até rimou. Seu idiota. Vai ter vingança!

Apesar dos adoráveis elogios, Wallace guardou o desenho e disse que mostraria para todos; mesmo que aquilo de certa forma o humilhasse. Ele havia adorado. Lucas fez algumas pessoas rirem com aquilo — o que lhe trouxe um sentimento de satisfação que ele nunca achou que seria possível.

___________________________________________________

*Demo tape ou fita demo é uma gravação musical demonstrativa amadora, feita em ou não, sem vínculo com , para estudos musicais, ou primeiras propostas do que futuramente pode vir a ser um de música.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top