32. O espelho dentro de nós

𓅯 Capítulo 32 | O Canto dos Pássaros 𓅯

Os encontros terapêuticos com Edith aconteciam todos os sábados. Lucas nunca havia imaginado que se sentiria tão confortável em um tratamento psicológico — na verdade, nem sempre tão confortável ao remexer feridas de seu inconsciente; mas sabia que isso fazia parte. Lucas não esperava mais encontrar respostas imediatas para suas questões internas, sabia que todas elas viriam aos poucos. Era difícil compreender o que se passava dentro dele, mas Edith tinha razão quanto ao diagnóstico: tudo fez mais sentido quando ele aceitou, de fato, que havia tal transtorno e que seus maiores obstáculos eram a ansiedade extrema e a baixa autoestima.

Edith fez com que Lucas voltasse ao passado mais uma vez. As memórias estavam frescas em sua mente; e não foi difícil descrever, através das palavras escritas, sobre sua infância e adolescência. O menino Lucas finalmente estava tendo a atenção que ele queria — não se lamentando pelo passado, não culpando-o pelas coisas que o Lucas de vinte e cinco anos estava passando e sentindo. A culpa não era daquele garoto. Lucas tinha que entendê-lo; e Edith o fez perceber isso de forma muito sutil. O motivou a enxergar seu próprio passado como uma fonte histórica, cheia de respostas para suas perguntas; mesmo com o filtro da autopiedade e constrangimento. O rapaz percebeu mais uma vez que tinha uma vergonha profunda de si mesmo, principalmente de quando era adolescente. Nunca se sentira bonito ou digno de ser amado. Tinha medo de chegar à idade adulta, de não ser "alguém na vida", de continuar se sentindo incapaz das coisas mais básicas.

Aqueles sentimentos ainda existiam dentro dele — e com raízes tão profundas que não conseguiria arrancá-las da noite para o dia. Dar-se conta disso, definitivamente, não fora nada confortável. Às vezes ele ficava triste, mas a pontinha de esperança nunca desaparecia. Apesar de tudo, a forma como Edith o guiava — mesmo que Lucas não conseguisse se comunicar verbalmente — deixou tudo mais cômodo. Ela não lhe trazia as respostas que ele esperava; e sim fazia-o procurar dentro dele enchendo-o de perguntas. Lucas supunha uma resposta, e Edith devolvia-a com mais uma pergunta. Perguntas e mais perguntas que só ele poderia responder. Nem sempre conseguia. Um dia, ela o pegou com uma questão que Lucas não conseguiu solucionar. Tudo começou com uma afirmação dele: Eu sempre acho que incomodo as pessoas e que faço as coisas erradas.

A psicóloga rebateu com mais perguntas: O que você acha que tem de tão negativo para que as pessoas pensem sempre mal de você? Você mesmo não está se julgando? Lucas pensou, procurando por uma resposta lógica. Estava claro que ele incomodava a muitos com a sua mudez; desde que isto os prejudicasse. Como os colegas que não o queriam no grupo. Como os colegas de escola que se afastaram dele por ser considerado estranho. Mas e o resto? Por que não conseguia acreditar que era uma companhia agradável quando Wall escolhera andar com ele, ou quando Beatriz pegou em sua mão e o beijou?

A mente de Lucas lutava para achar justificativas que o levasse a crer que tudo aquilo era uma fachada. Que Wall o usava porque também se sentia estranho e não queria ficar sozinho, e que Beatriz e os vizinhos tinham piedade dele. Por outro lado, o rapaz não conseguia enxergar algo de racional naquilo. O que ele tinha de tão negativo? Por que não se sentia capaz de ver ou acreditar em suas qualidades? Lucas largou a caneta dourada e maneou a cabeça. Edith nada disse; deixou-o pensando o tempo que precisasse. Suspirando, Lucas pegou uma das balinhas de chocolate e se endireitou na cadeira. Já era a quarta consulta e o rapaz já sentia-se confortável o suficiente para comer na frente dela — aquelas balas redondas e recheadas de chocolate eram irresistíveis.

Edith também pegou uma balinha, degustando-a com ele.

— Muitas coisas em mente? — ela perguntou. Lucas assentiu, ainda pensando no que poderia responder.

Por fim, ele escreveu: Acho que eu não vou agradar a todos.

— Da mesma forma que ninguém agrada a todos, também concorda que é lógico dizer que não podemos desagradar a todos? — Edith argumentou. — Costumo dizer que há um espelho dentro de nós. Refletimos para fora o que temos dentro. Você disse que não se acha uma pessoa agradável, e reflete isso nas pessoas. Já parou para pensar que isso pode ser uma grande mentira? Como você age quando as pessoas te elogiam, Lucas?

De imediato, vieram até ele as mensagens de Beatriz. Suas considerações sobre ele; aquelas palavras que ele poderia julgar como elogios. Ele de fato não acreditou quando a moça disse que Lucas era uma boa companhia para ela. Não acreditou e não aceitou que poderia ser aquela pessoa; disse que não a merecia. O rapaz coçou o pescoço e olhou para a caneta. Depois, olhou para a mulher à sua frente, que aguardava a resposta com uma expressão serena. O que Edith estava fazendo com ele? Parecia às vezes ler a sua mente, esmiuçando suas ponderações mais íntimas; colocando seus monstros internos à luz da razão. Eles tinham medo disso. Medo de que Lucas cedesse e o deixassem morrendo de fome.

Lucas escreveu o óbvio: ele não aceitava elogios pois não acreditava que os merecia. Depois daquela sessão, Edith ofereceu-lhe um momento à sós do lado de fora da sala de atendimentos; em seu belo e organizado jardim. Pelo visto, o contato com a natureza também fazia parte de suas consultas. O rapaz então deitou-se em uma das espreguiçadeiras espalhadas pelo gramado, deixando com o que os raios do sol tocassem em seu rosto. Já eram dez da manhã, mas não estava mais tão calor quanto antes. Tentou não pensar no almoço com o pai ainda naquele dia; tentou não pensar em faculdade ou qualquer outra coisa que o tirasse daquele estado. Contudo, não pensar em Beatriz foi quase impossível depois de relembrar a última conversa deles.

Em sua mente, Lucas imaginou-a ali, deitada ao seu lado. Beatriz adoraria aquele lugar. Com certeza tentaria tirar fotos das andorinhas que por ali voavam, da fonte rodeada de flores e o gatinho tricolor adormecido sobre um dos galhos da enorme mangueira. O rapaz olhou para o lado, enxergando Beatriz perfeitamente através da mente. Conseguia ver cada detalhe de seu rosto, de seu sorriso, de suas sobrancelhas marcantes, de seus cabelos escuros. Eu sinto sua falta...muito mesmo, ele disse à moça. Sempre penso naquela noite, no aniversário de Raoni. Queria tanto não ter fugido...

Para a sua surpresa, o holograma de Beatriz respondeu-o com uma pergunta:

Você contou a Edith sobre mim?

Não, eu tenho vergonha — Lucas respondeu. — Eu não revelo a ninguém quando estou apaixonado.

Beatriz ficou em silêncio por alguns segundos. Depois, fez mais uma pergunta:

Quem é você?

Eu sabia... Já se esqueceu de mim, não é?

Não, não. Eu não me esqueci de você — a moça imaginária rebateu, depois questionou-o mais uma vez: — Quem é você?

Lucas engoliu em seco, abrindo os olhos. Só percebeu que estavam fechados quando os abriu e viu Edith, ao longe, andando pelo jardim. Um pequeno cachorro malhado a seguia, saltitante, enquanto a dona regava a roseira.

Eu não sei — Lucas respondeu por fim. Estendeu a mão, desejando tocá-la usando sua imaginação, mas Beatriz havia se levantado e desaparecia aos poucos. Cuide de você, Lucas, ela repetiu; sua voz soando tão nítida na mente do rapaz que ele quase achou que poderia ser real.

Mas seu devaneio durou pouco tempo. Logo estava sozinho novamente, o corpo espalhado pela espreguiçadeira e os braços pendendo ao lado do corpo, imóveis. Alguns pardais pousaram na grama à procura de pequenos insetos. O barulho da fonte era tranquilizante. A harmonia da natureza se opunha à sua desordem emocional. O oxigênio em abundância o permitia respirar com mais vigor, apesar da sempre presente ansiedade. Poderia ficar ali por longas horas, permitindo que o cantarolar dos pássaros dissipasse o restante de sua tagarelice mental.

— Lucas, o seu irmão chegou — ele ouviu a voz de Edith próxima. O rapaz levantou-se, meio letárgico, e seguiu a mulher até o portão. Pedro o esperava, como sempre, estacionado do outro lado da rua. — Espero você no próximo sábado?

O rapaz olhou para ela e assentiu, confirmando. Ele com certeza voltaria.

✦✦✦

Alberto ainda não havia desconsiderado a viagem de julho. Lucas havia se esquecido completamente daquilo, acreditando que o pai desistisse da ideia devido às condições financeiras. No entanto, Alberto estava fiel demais aos encontros semanais; sempre tentando dar a maior atenção possível ao filho. Ainda falava sobre o trabalho, reclamando dos funcionários incompetentes e o fato de não conseguir contornar a situação difícil da empresa. Mas, ao mencionar a viagem, ele parecia ainda mais entusiasmado.

— Se Luan não quiser ir, não tem problema. Vamos nós dois — disse, girando o garfo na deliciosa macarronada. Lucas quase disse, indiretamente, para que ele desistisse daquilo; focando em investir na loja e deixando a viagem para depois. Mas, mais uma vez, não teve coragem. Além disso, seria bom sair um pouco daquela cidade, daquele condomínio. Afastar-se um pouco das coisas que o fazia lembrar o tempo todo de seus problemas.

— Vou falar com ele de novo — Lucas garantiu, duvidando que o irmão aceitaria. O pai sorriu, pedindo uma lata de refrigerante ao garçom que passava. De forma espontânea, Lucas falou: — Ah, eu vou querer um suco de morango.

O pai arqueou as sobrancelhas e encarou-o, mas Lucas fingiu que não viu sua expressão surpresa. Estava falando com ele, Alberto, e não com o garçom. No entanto, certamente o rapaz desconhecido com avental e touca ouviu o seu pedido. O pai não precisou passar o recado. Indiretamente, Lucas havia falado com o garçom, apesar de se dirigir a Alberto. O rapaz não havia planejado aquilo, mas saiu de forma tão natural que ele mal teve tempo de pensar em sair correndo.

Lucas continuou comendo a macarronada em silêncio. Agradeceu ao garçom quando lhe trouxe o suco, maneando a cabeça, e colocou bastante açúcar. Alberto estava calado. Escutava-se apenas o tinido dos talheres e o murmurar de alguns frequentadores do restaurante.

— Você pensou sobre o estágio na loja? — o pai quebrou a quietude entre eles. Lucas assentiu.

— Eu não posso — ele disse — Tenho que fazer coisas em casa e às vezes tenho que ficar na faculdade durantes as tardes.

— Talvez só no sábado? E no domingo, durante a parte da manhã...

— Me desculpe, eu não posso — Lucas falou com firmeza. No fundo, ele sabia que talvez estivesse fugindo pelo medo e pela insegurança de não conseguir. Contudo, ele não ia conseguir. Não naquele momento. Mal conseguia falar com um garçom, ou dar um bom dia ao atendente de um caixa. Alberto havia deixado claro que ele substituiria um dos vendedores e a secretária durante o seu turno. Como falaria com as pessoas?

Aquilo o deixava triste, impotente; como se não fosse capaz das coisas mais básicas. Mas lembrou-se de algo que Edith havia lhe dito em uma das consultas: O ideal é sair aos poucos de sua zona de conforto, mas sempre respeitando os seus limites. Tentar ir muito além do que pode só trará frustrações. Lucas teria que atender clientes, falar ao telefone, e sabia que estava longe de conseguir fazer aquelas coisas. Mas é claro que ele não se explicaria ao pai. Ele não entenderia. Para Alberto, o fato do filho não falar era uma escolha, uma bobagem que Lucas herdou da infância, e aquele inocente convite para que ele trabalhasse em sua loja talvez fosse mais uma das emboscadas para forçá-lo a abrir a boca. Então, Lucas arranjou uma desculpa qualquer, sempre mencionando a faculdade. Para o pai, aquela tinha que ser a sua prioridade. Era visível o quanto Alberto estava feliz por Lucas estar no ensino superior, e não queria que nada o prejudicasse.

Mal sabia ele que Lucas estava totalmente ferrado nesse quesito. No próximo sábado já teria a primeira das muitas provas finais, e o rapaz não se sentia preparado para nenhuma delas.

— Tudo bem, tudo bem — Alberto parecia um pouco contrariado, mas não o pressionou mais. Lucas estava decidido, mas uma centelha da culpa que costumava sentir ao negar algo que supostamente o faria uma "pessoa normal" se instalou nele. E se estivesse mais uma vez fugindo? E se houvesse limites para a fuga?

Quando se deu conta, estava se culpando por não conseguir ser aquele que as pessoas esperavam. Aquele que ele queria ser. Abatido, o rapaz voltou para casa tentando manter as palavras da psicóloga em mente. Respeitar seus limites... Lucas ainda não sabia ao certo até onde poderia ir com todas as suas limitações — e nem onde queria chegar quando finalmente as vencesse. 

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