31. Vozes ao vento
𓅯 Capítulo 31 | O Canto dos Pássaros 𓅯
O que todos já esperavam acabou acontecendo: Beethoven, não conseguindo reagir à internação e aos medicamentos, falecera na manhã de domingo. A clínica veterinária ligou para Ben logo de manhã, dando-lhe a notícia, e todos se reuniram na mesa de jantar para tomar um lastimoso café da manhã. O mais abalado parecia Luan, que pegou seu copo com achocolatado e voltou para o quarto. Lucas não conseguia comer, e Miriam fungava tentando segurar as lágrimas. Até Mozart parecia abatido. É só um cachorro, alguns diriam. Insensível seria aquele que dissesse tal absurdo diante daquela família que amava peludos vira-latas. Lucas lamentava-se por não ter se despedido dele ou visitado-o no dia anterior; mas, ao mesmo tempo, não queria ver seu corpo.
Em silêncio, Lucas arrastou a foto que achara pela mesa em direção à Miriam — ele, Beethoven e Luan — e a mãe sorriu, esfregando o nariz.
— Que gracinha — ela falou, pegando a foto. — Vou colocá-la na sala. Meu Deus! Por que nos apegamos tanto a esses bichos?
Ben sorriu para Lucas, os olhos marejados, mas sereno como sempre. Bateu de leve nas costas do rapaz, que engolia as lágrimas; tentando inutilmente disfarçar seu sofrimento. Miriam foi até à sala e colocou a foto no quadro de recordações da família. O cheiro de manteiga derretida preenchia a cozinha, mas a fome não vinha.
— Beethoven ficará bem — Ben garantiu, falando baixinho. Mozart colocou as patas sobre suas pernas, e o padrasto acariciou suas orelhas peludas. — Ele está bem...
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Algumas semanas se passaram desde aquele melancólico domingo em que perderam Beethoven. Era estranho não ouvir os roncos do velho cão e sentir sua ausência no canto da sala; mas aos poucos, o ambiente fora ficando mais leve pela rápida aceitação. Até mesmo Luan voltara a ir às festas com os amigos na sexta-feira à noite e aos fins de semana. Miriam dedicava-se aos seus projetos, enfiada no escritório domiciliar e saindo sempre para trabalhar fora. Benício continuou indo à Escola de Música e dando aulas particulares em casa. E Lucas, como sempre, permaneceu preso aos seus dilemas pessoais e tentando se dedicar à faculdade, aproximando-se do fim do primeiro período.
O que quer que Lucas tenha feito com Wallace, o garoto rapidamente esquecera — ou ele não tinha feito absolutamente nada e, como de costume, Lucas se culpava por algo que nunca havia chegado a fazer. Aos poucos, Wall voltava a ser aquele garoto que conhecera nos primeiros dias de aula — tagarela, agitado e às vezes inconveniente. Não com Lucas, pois Wall não insistia mais em fazer perguntas sobre sua mudez e ou que falasse com ele. Era comum vê-lo, em algumas aulas, com seus headphones no volume máximo; o capuz do moletom cobrindo sua cabeça e os pés batendo contra o chão, acompanhando os instrumentos que ouvia enquanto mantinha os olhos fechados. Ele não reparava no barulho que fazia em seus devaneios musicais — até que um dia um dos professores parou a aula e pediu para que se retirasse; pois o ruído dos fones e as batidas da sola de seus pés (e as bolas de chiclete que estourava do nada) atrapalham a aula.
— Me desculpe, professor — ele disse com sinceridade. — Eu vou sair agora mesmo. Foi mal. Boa aula, pessoal!
Alguns alunos riram baixinho quando ele saiu. Alguns porque achavam-no engraçadinho, outros, por puro deboche. Ao longo daqueles meses, Lucas percebera algumas coisas sobre a faculdade e seus colegas: haviam pessoas de todo o tipo. Estava enganado quando pensara que se depararia com pessoas maduras e totalmente dedicadas aos estudos. Wallace mesmo era daqueles jovens alunos que estava totalmente deslocado e desinteressado pelo curso. Não porque era jovem — mas porque estava ali por incumbência dos pais ou por pressão; ele não sabia. Lucas mesmo encaixava-se nessa categoria. No entanto, muitos daqueles alunos ainda pareciam carregar comportamentos de ensino fundamental; a diferença é que tinham mais liberdade. Também havia aqueles realmente dedicados e educados com professores e colegas. Respeitavam Lucas, mas não o incluíam em suas rodas de conversas intelectuais ou trabalhos em grupo.
Lucas e Wallace começaram a estudar juntos para as provas finais que aconteceriam em alguns sábados do mês de maio e junho. Às vezes, Bernardo os auxiliava, mas na maior parte do tempo eles tinham que se virar sozinhos. O rapaz queria perguntar o que havia acontecido para que Wallace parasse de andar com os colegas que costumava conversar — os mesmos que rejeitaram Lucas no grupo do seminário. Quem sabe Wall notara finalmente que não eram pessoas tão agradáveis; apesar de serem mais velhos que ele. Embora Wall fosse um dos mais novos da sala — manifestando, muitas vezes, certa inocência — ele possuía uma mentalidade diferente dos demais. Wallace podia ser considerado mente aberta; ou ainda tão ingênuo que não havia sido contaminado por completo pelo julgamento humano. Só pelo fato de estar com Lucas e não julgar ninguém que seja diferente já agradava-lhe. No lugar do julgamento, Wall dispunha de altas doses de curiosidade. O fato de Lucas não falar enchia-lhe de dúvidas; o rapaz sabia. Entretanto, em nenhum momento Wallace o julgou pelo seu jeito.
O rapaz gostava disso em Wall. Talvez não fosse tão inocente quanto Lucas pensava, mas foi o suficiente para que começasse a revelar a ele seus pequenos segredos. Como a terapia. Sua família sabia das idas de Lucas à psicóloga, mas não perguntavam nada a respeito. Um dia, quando Lucas revelou a Wallace que estava fazendo terapia, o garoto contou que já havia ido a psicólogos quando era criança.
— Eu era muito inquieto e estava indo muito mal na escola — ele revelou. — Quero dizer...eu sou bem inquieto. Mas acredite, eu era muito pior. Me diagnosticaram com TDAH. Acho que melhorei um pouco, mas ainda tenho...hum, algumas dificuldades. Tipo de prestar atenção nas aulas de Economia ou Contabilidade. Ou no que estamos estudando aqui agora. Esqueço rápido de algumas coisas.
Lucas assentia enquanto escutava-o. Apesar de ter consciência de que aquelas dificuldades traziam-lhe prejuízo, sentiu-se consolado e menos sozinho. Foi como se aquela conversa sobre terapias e inquietudes (Wallace falando, Lucas sempre escrevendo) os aproximasse ainda mais. O rapaz notou que, por ficar tão próximo de Lucas, os outros colegas que chamavam Wallace de cara gente boa e engraçado simplesmente começaram a ignorá-lo. Era o preço a se pagar por ser amigo de Lucas: ser tão invisível e desprezível quanto ele.
No entanto, Wallace não parecia ligar muito pra isso. Um dia, o garoto chamou-o para estudarem em um lugar diferente. As aulas haviam terminado e eles almoçaram na faculdade, pretendendo ficar até às três da tarde com a cara enfiada em artigos e anotações que Lucas fazia durante as aulas. Wall revelou que o levaria até o pátio da Faculdade de Artes. Então, com a fome saciada, eles se puseram a andar pelo campus.
A Universidade de Belmontine era grande, mas as enormes placas e as construções imponentes, cercadas por jardins e árvores, deixava tudo muito visível e intuitivo. Em menos de dez minutos de caminhada ao lado de Wall, Lucas logo viu a placa na calçada de pedra com os dizeres FACULDADE DE ARTES ↑. O rapaz olhou para cima; para o caminho que se erguia até o edifício cercado por árvores e algumas obras de artes clássicas. Era uma construção peculiar — como Wallace havia comentado, parecia-se realmente com um pequeno castelo. Colunas erguiam-se nos quatro cantos do prédio e, mesmo ao longe, ele pôde ver as janelas de vidro e suas cortinas coloridas.
Os estudantes iam e vinham, alguns carregando mochilas e instrumentos musicais. Wall levou Lucas até as mesas de concreto espalhadas pelo pátio arborizado. Um vento frio cortou o topo de uma árvore próxima, fazendo com que os rapazes se encolhessem um pouco. À distância, Lucas observou uma velha fonte de querubins ao lado esquerdo do jardim, e, à direita, uma réplica da Vênus de Millo se erguia, imponente, à entrada lateral do edifício.
Sentaram-se à mesa e começaram a estudar um dos artigos que seria importante para a prova. Lucas olhou para as próprias anotações, percebendo que não havia compreendido totalmente; apenas anotado. Verificaram antigas provas disponibilizadas por Bernardo, releram os principais conceitos da disciplina e tentaram fazer resumos de definições importantes. Wallace ficava o tempo todo girando uma caneta na mão, lendo, relendo e mexendo as pernas.
— Estou nervoso com o seminário — ele falou de repente, interrompendo a própria leitura. — Tipo, eu consigo, mas não gosto muito de apresentar trabalhos. Fico muito ansioso. Mas o professor disse que eu posso levar algumas anotações na ordem que eu preciso falar. Mas... — Wall largou a caneta. — Eu acho que não consigo.
Lucas virou a página do artigo, procurando alguma parte sem texto impresso. Escreveu rapidamente: Você consegue sim!
— Obrigado... Só estou nervoso mesmo. Eu vou tentar. — Wall deu um sorrisinho. — Você não vai fazer, né? Eu acho que eu deveria ter falado com o professor que você não conseguiria apresentar.
Não, não se preocupe comigo. Acho que eu não vou passar do 1º período, o rapaz escreveu.
— O quê?! É mais fácil eu não passar — Wall riu, pegando a caneta novamente. Começou a rodá-la nos dedos. Lucas balançou a cabeça, demonstrando que estava falando sério. Sem os pontos do seminário, era quase impossível passar sem dependências. As provas não seriam o suficiente, pois provavelmente sairia muito mal. — Bom, então acho que estamos no mesmo barco.
Wallace franziu o cenho e ergueu a cabeça quando notou alguém se aproximando deles. Seu rosto logo relaxou e ele abriu um sorriso quando reconheceu Susane, os longos cabelos esvoaçantes cobrindo-lhe o rosto. Ela sorriu, colocando uma mecha atrás das orelhas. Carregava, nas costas, uma capa bag em formato de violão.
— Como vocês estão? — perguntou. — Posso me sentar aqui?
— Claro! Senta aê — Wall organizou a mesa, empilhando papéis e cadernos. — Nós estávamos estudando, mas fizemos uma pausa.
Susane piscou para ele. Seus olhos amendoados fitaram Lucas por um momento, mas depois voltou-se para o instrumento que carregava. Tirou um belo violão da capa, posicionando-o no corpo. Dedilhou alguns acordes, e Wall inclinou-se sobre a mesa e encarou o instrumento e a moça.
— Ela toca muito bem — ele disse, atento às mãos habilidosas de Susane. — Já ouvi. Aí, pode tocar a última parte do refrão de novo? Acho que já sei o que podemos colocar nessa parte — Wall olhou para Lucas. — Estamos compondo uma música juntos.
Lucas sorriu, percebendo o brilho em seus olhos. Susane maneou a cabeça, concordando.
— Tudo bem. — ela disse. — Mas antes disso, gostaria de cantar uma música para vocês. Posso?
Wallace olhou desconfiada para ela, mas assentiu. Lucas fez o mesmo, e logo a moça começou tocar. Ela era realmente boa naquilo — não só como violonista, mas como cantora. A música era calma, a harmonia das notas que soavam do violão eram suaves. No entanto, a letra era intensa e misteriosa. O rapaz tentava identificar qual música se tratava, mas nunca a tinha escutado antes.
Estive pensando sobre você
As estrelas brilhavam sobre nossas cabeças
E você fazia um pedido aos céus
Desejando mais uma chance, uma vida menos cruel
Ouça, ouça se for possível de onde estiver
Você fez um pedido ao céus
Será que tudo valeu a pena?
Onde posso encontrá-la sob esse véu?
Wallace ergueu-se na cadeira, tomou fôlego e começou a cantar junto com a Susane. A dolorosa letra e os acordes do violão pareciam preencher todo o pátio; o vento levando suas vozes pelo campus. Algumas pessoas pararam para observá-los, de longe; mas Wall não parecia se importar. Lucas estava um tanto surpreso. O garoto cantava surpreendentemente bem. O rapaz não entendia nada sobre técnicas de canto ou música, mas ele não conseguia identificar nenhuma falha na forma como a voz de Wall soava. Seu timbre era agradável de se ouvir — a voz grave, levemente rouca e ao mesmo tempo suave.
Quando terminaram de cantar e Susane finalizou a música com os últimos acordes, escutaram algumas pessoas baterem palmas e seguirem seus caminhos pelo campus. Susane também bateu palma, jogando a palheta para Wall. O garoto parecia diferente — mais calmo, mais confiante. Nada se parecia com o Wallace de minutos atrás; que admitira estar nervoso com a apresentação do seminário.
— Sua vez, Cup Wall — a moça disse, entregando-lhe o instrumento.
Wall pegou a palheta, olhou para o amigo e sorriu. E então Lucas soube, em uma súbita revelação silenciosa, quem havia composto aquela música. Foi ali que o rapaz deu-se conta que Wallace era muito mais que apenas o garoto ruivo e tagarela que se dispôs a ser seu amigo. Ele era um gênio.
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